A noite em horas
Eu mal consigo me lembrar do meu primeiro dia no serviço, alias não haveria tanto para se lembrar, cuidar de um mercado na sua maior parte do tempo vazio não era lá das coisas mais animadas, chegava em torno das 22hrs, alguns poucos clientes terminavam suas compras enquanto o alto-falante anunciava em auto e bom som “Senhores clientes nós agradecemos a preferência, mas gostaríamos de lembrar que em minutos encerraremos as atividades, uma boa noite e voltem sempre” Eu as vezes até repetia aquilo para mim mesmo de tão viciante e bobo são essas mensagens gravadas.
Pedro era o responsável pelo fechamento dos caixas e por tanto o último a sair, não eram poucas as vezes em que falávamos sobre futebol, Pedro era um homem negro e imponente, daqueles que poderiam facilmente conseguir uma vaga como segurança vip, mas, ao mesmo tempo, contrastava contra isso seu temperamento extrovertido de um homem vindo do interior de minas.
–Moço eu não passo a noite aqui de jeito nenhum, tu já pensou entra alguém ai. Ele ria, mas sei que no fundo havia um enorme receio.
-Sabe que eu nem ligo, eu fico na base então é tranquilo. Realmente a base tinha um ar de tranquilidade, não era uma sala grande, muito pelo contrário ela acomodava com certo aperto 3 pessoas, mas haviam três monitores onde eu poderia vigiar todo o lugar e um ar-condicionado que estava quebrado há 2 meses, mas sabe como são empresas, você é importante desde que não reclame e aprenda a se virar com o que tem.
–Pedi um uber e já está chegando, vou indo nessa Caio, boa noite.
–Vai lá Pedrão e vê se economiza na bebida. Eu ri e ao fechar a pequena porta de aço, digitei como de costume o alarme da entrada. Meu serviço consistia em ficar até as 05hrs da manhã quando o senhor João chegava para o turno da manhã, João já era um homem beirando os 60 anos, porém era forte e demonstrava ser bem mais novo, chegava sempre 1 hora mais cedo e tinha o costume de falar sempre sobre a política, no Brasil a gente sempre acha que entende de tudo pela manhã.
01hrs
O banheiro ficava um no sentido oposto a base, era um corredor grande, as lâmpadas eram automáticas e eu odiava aquela maldita sensação de luz ascendendo enquanto eu andava, lembrava sempre dos filmes de terror e em como as coisas aconteciam assim que uma luz apagava e algo aparecia gritando, sei é idiota, mas sempre foi a sensação que tive, lavo as mãos no banheiro e pela primeira vez na noite eu posso dizer que algo me gelou a espinha, não havia som nenhum fora do normal, mas eu senti algo inominável, o coração disparou e eu olhei o celular e coloquei um vídeo no youtube, sei lá eu só não queria me sentir sozinho.
02hrs
Não deveria confessar esse tipo de coisa, mas eu costumava cochilar após as rondas, porém quem liga eu não estou escrevendo isso para alguém ler mesmo, então de certa forma tanto faz, aquela hora fazia um frio que a tempos não se via igual, mesmo com uma manta cobrindo as pernas e uma jaqueta eu ainda sentia como se estivesse com uma roupa totalmente inapropriada para a ocasião, só mais tarde eu perceberia que os monitores estavam com as imagens paralisadas e mesmo que um local parado não aconteça nada, naquele momento eu não via nada em tempo real.
02:45hrs
-Droga de alarme despertando essa hora. No monitor a mesma imagem parada, e aquele barulho infernal na madrugada, imagino até onde alguém conseguiria escutar aquele som apitando de modo incessante, desço e vou até a porta de entrada, o maldito alarme está acionado e não tem nada de errado, talvez porque eu não esteja tão preocupado em procurar algo na verdade.
03hrs
–Droga de novo! Sinceramente achava que aquela giringonça havia quebrado, nunca vi aquilo disparar uma vez se quer a noite, quanto mais duas, não havia nada anormal, era como se o vento conseguisse despertar algum maldito movimento. Abro a porta e desço com certa velocidade. -Vou deixar desligado, só mais duas horas e estou indo embora mesmo e quem perceberia? Falar sozinho era um hábito que confesso ainda pratico enquanto escrevo isso. Ao descer as escadas até o solo principal todas as luzes estão acesas, você já sentiu o coração bater tão forte e intenso que parece não se aguentar no peito? Juro que não sei o que fazer, minha mão invariavelmente começa a tremer e eu mesmo sem querer penso em tudo que há de mais assustador, olho corredor por corredor e nada, não há ninguém, um animal sequer, só eu e meus passos. Cada passo que dava era como se eu pesasse o dobro do meu peso.
04hrs
Estou trancado, o frio só aumenta, eu nem sei bem o que pensar, tenho em mim a sensação de que não estive sozinho durante toda aquela noite na loja, o próprio exercício de pensar me martirizava, poderia jura de pés juntos que haviam pegadas no corredor, não saberia dizer se eram pessoas, mas morreria dizendo que naquele momento algo passava no corredor, o som ensurdecedor que dominava meu ser só me dava uma única certeza, eu não abriria a porta por motivo algum, estava cada vez mais petrificado em minha posição quase fetal numa cadeira, cada parte de mim sabia que não importava o som, o sentimento ou qualquer que fosse o sinal, eu estava mais protegido ali dentro.
04:30hrs
O senhor João chega, o frio é bem menos latente após 30 minutos e sinto como se uma paz enorme invadisse minha alma, nunca fui religioso, mas rezei a todos os santos que os minutos fossem segundos e que pudesse sair daquele local o mais depressa possível.
– Bom dia, tudo tranquilo a noite?
-Sim sim Sr João, eu, eu, nada não, o alarme despertou duas vezes, mas não havia nada e fora isso está tudo tranquilo.
–Normal, isso acontecia bastante comigo antigamente, sabe Caio talvez você nem acredite, mas eu sempre achei que esse lugar tivesse pessoas trabalhando a noite toda, ótimo descanso Caio.
–Para o senhor também.
Naquele dia sai 30 minutos mais cedo, eu queria mesmo sair daquele lugar e falar sobre o que senti naquela noite com alguém, porém não parecia fazer tanto sentido, talvez eu estivesse somente com medo, eu nunca acreditei nisso, mas há muito mais do que simples olhos podem ver.
Nunca mais presenciei algo parecido e ainda guardo comigo a mesma sensação de que nem todas as portas precisam ser abertas.