Densidade a minha direita

Muitas vezes na minha vida não gostei de ficar com os olhos fechados, manter a calma na escuridão sempre foi uma atividade difícil do cotidiano, não que o escuro me atrapalhe, pois, acostumei-me com a sensação de solidão em uma casa de nove cômodos. Porém, quando se trata de fechar os olhos, a história muda, encarar a escuridão e o silêncio de olhos abertos, mesmo que você enxergue nada não se compara quando entrega à escuridão o seu sentido de visão. Quando comecei a fazer aulas de meditação pela internet, para conseguir me acalmar pelo ambiente solitário da minha casa, entendi algumas formas de me sintonizar com o ambiente, não somente estar nele mas fazer parte dele.

De forma que eu me sentava primeiramente, no meio da minha sala que haviam poucos móveis, um conjunto de sofás, uma mesa com um vaso de flor em cima, um rack com uma televisão de tudo em cima com os aparelhos dos canais fechados em cima da mesa, sentei-me no chão sentindo o frio do inverno nas pernas. A janela e porta de madeira estavam fechadas, a janela e porta de vidro que dava para o corredor juntamente com a porta da cozinha também estavam fechadas.

Olhei fixamente ao quadro na parede e logo fechei meus olhos, a sensação horripilante de entregar um de meus sentidos era desconfortável, queria logo abrir meus olhos, mas, se não tentasse, não conseguiria nunca manter a calma em nenhum lugar. De momento, senti um calafrio, abrindo os olhos para procurar conforto no sentimento de enxergar a casa como sempre esteve, respirei fundo, bebi um pouco de água da garrafa ao meu lado e novamente, entreguei meu sentido ao escuro.

O silêncio em morar sozinho é ensurdecedor, a nossa mente é programada para nos amedrontar como forma de proteção a nossa integridade, principalmente contra o que não podemos controlar, a sensação de estar sozinho é ruim, mas quando você está ciente que está sozinho é muito pior, pois você começa a criar hipóteses, acontecimentos, personagens e possibilidades que possam lhe afligir. A tortura psicológica se esvaeceu quando eu abri meus olhos novamente, vendo os mesmos móveis nos mesmos lugares.

Contudo, ao avançar os dias no foco com os olhos fechados, percebi que nosso cérebro memoriza o contorno e a posição dos objetos ao nosso redor. Passados alguns dias, ao fechar os olhos na sala conseguia ver o contorno dos móveis presentes no cômodo, conseguia até mesmo, por mais fino que seja o quadro, saber o tamanho e a posição do quadro na parede. Me perguntava toda vez que fechava os olhos, a quem pertence a densidade a direita, ao lado da porta de madeira. Abria meus olhos para me reconfortar, somente para ter certeza de que não havia nada ali.

Desta forma, passei a me focar na cozinha, havia quatro cadeiras, mesa suspensa de granito, armários embutidos nas paredes, a porta para outro corredor com um tapete em frente, micro-ondas, geladeira, pia com uma janela em sua frente, cesta de frutas. Todas essas coisas ao longo dos dias ganham contorno quando se faz, de forma calma, a meditação que me foi ensinada.

Mas, como da forma anterior, sinto de forma sucinta, a densidade a direita presente na sala, eu juro que não havia nada, abria os olhos e a luz que entrava da janela me confirmava a informação que não existia nada ali, mas, a medida que os dias passavam, eu fechava meus olhos e conseguia sentir a densidade a direita sempre presente. Comecei a tentar relaxar e fechar meus olhos no meu quarto, tendo como móveis, mesa, televisão, computador, guarda-roupa, cadeira, cama, cesta de roupas, porta, janela de madeira, janela na outra parede, cortinas. Eu fechava meus olhos e aos poucos iria contornando os objetos tal como a sua proximidade do meu corpo imóvel.

Mas, ao lado da mesa do computador, encontrava-se a densidade a direita, permanecendo presente na minha falta de visão, nunca a presenciei a não ser com os olhos fechados, nem nas madrugadas no escuro ela se fazia presente. Por um impulso, um simples pensamento para tentar me aliviar, se eu me centralizasse com a densidade a direita? Manter meu corpo estático e olhar a densidade somente com os olhos não surgiam efeito, mas se por um momento, eu virasse minha cabeça?

Ofegante, comecei a virar a cabeça aos poucos para manter a densidade em minha frente, contudo, ela manteve-se a direita do meu campo de visão coberto, não conseguia, de forma alguma, colocá-la em minha frente. Por um instante, ela aproximou, abri os olhos de imediato, confirmando a inexistência de qualquer coisa no canto do quarto. O silêncio se mantinha, os móveis em seus devidos lugares, estremeci. Passei a mão nos braços e ombros para a sensação de frio ser temporariamente interrompida, saí da posição de lótus, esfreguei os joelhos e me levantei para o banheiro.

O chão é feito de cerâmica cinza, o box em granito com uma entrada oval, uma pequena bancada, uma janela redonda ao alto, chuveiro, porta xampus, banquinho, uma parede com um espelho enorme. Me despi, coloquei o chuveiro para o quente, abrindo-o e logo me sentando no banco. A água caindo na cabeça e descendo ao corpo me fez relaxar, os dias frios de inverno castigavam na casa de piso de pedra e madeira taco, não retinham calor fazendo as madrugadas serem geladas.

Fechei meus olhos, conseguia visualizar os xampus e a bancada, a água caia nos meus olhos criando pequenas ondas na tela negra projetada pelas minhas pálpebras, entretanto, estava lá, a densidade a direita presente no meu banheiro, ao lado da parede, poderia senti-la, meu corpo se recusava a tentar alcançar com a mão, meus olhos tentavam de alguma forma restaurar a visão para apaziguar minha mente, mas me mantive inerte, a densidade criando suas camadas e camadas de pressão, como se houvesse um buraco negro tentando sequestrar tudo presente naquele cômodo. Abri os olhos, a visão demorou para retornar, do canto da minha visão a densidade se esvaia numa fumaça negra aos poucos. Eu me assustei, num pulo, alcancei a torneira do chuveiro, puxei a toalha e fui direto me secar.

Olhei-me no espelho, pouco pálido, a água pingava do cabelo, fechei meus olhos desejando o sentimento confortável de que aquilo era somente um sonho, para minha surpresa, a densidade a minha direita não estava mais a direita, permanecia no centro, como se fosse olhasse para meu reflexo, não quis abrir meus olhos, movi a mão e a densidade acompanhava o movimento, me afastei aos poucos em direção a porta e a mancha ficava a medida que eu procurava com os dedos a porta, girei a tranca, aos poucos ela vinha em minha direção, eu não podia ver, não podia abrir os olhos, somente procurava, trêmulo, girar a maçaneta e alcançar os outros cômodos.

Saindo ao corredor, tive coragem suficiente para abrir os olhos e, olhando apressado, não vi nada ao meu redor se não os móveis em frente ao corredor, o conjunto de sofás e as bordas de madeira do quadro. Estava aliviado, concreto em pensamento que estava seguro. Aos poucos, nos ínfimos intervalos entre as piscadelas, a densidade a minha direita se manifestava, mas o tempo com os olhos fechado era insuficiente para que tomasse toda a minha visão. O frio que fazia me deixava trêmulo, o zumbido do silêncio não trazia conforto a minha alma, a cada piscada eu sentia a densidade a minha direita crescer, até que, em um surto de pensamentos do que poderia ser aquilo, fechei meus olhos e procurei conforto.

A densidade a minha direita se fazia presente, vívida e cada vez mais próxima do corredor que eu havia saído correndo, lentamente ela chegava, sem forma específica, apenas um bolo de presença pesada, não fazia barulhos, não havia cheiro, não sentia sua forma térmica, muito menos humanidade. Eu me concentrei, os móveis permanecendo em seus lugares. Os sofás, a mesa, o rack com a televisão, as janelas e portas fechadas. A densidade estava lá, não tão somente a minha direita, mas cobria grande parte da minha frente, se eu virasse meu rosto, ela permanecia, se eu olhasse para trás, ela estava presente, se eu mirasse na luz dos lustres, continuava pertinente. Não tão somente estava em minha frente como sabia que eu a sentia, para meu desespero, ela sabia que eu havia a encontrado, havia a colocado em minha mente que sua presença é possível. A densidade a minha direita permanecia imóvel, meu corpo ansiava pela abertura dos olhos, mas, meus instintos humanos lutava para permanecer fechado. Foram minutos com o silêncio ao meu redor, já são minutos com a densidade viva na minha frente.

Ela, sem pressa, sabe que a curiosidade humana me fará abrir os olhos a qualquer momento, para minha desgraça, um dia terei que enxergar a realidade a minha frente, por mais que nunca havia visto a densidade a minha direita, nenhuma das vezes que retomei a visão, tenho certeza que, ao abrir os meus olhos novamente, não tão será uma sombra.

Eu quero abrir os olhos. Eu quero viver. Tenho certeza de que não me espera somente uma densidade, tampouco é imaginação e nem superstição da minha mente inquieta.

Esforço para mudar a cabeça de posição, mas ela está ali e permanece, densamente e ansiosa, a minha direita.

Corvo Cerúleo
Enviado por Corvo Cerúleo em 17/06/2020
Reeditado em 17/06/2020
Código do texto: T6979963
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