A árvore do Diabo
     
     No município de Guadianópolis
cidadezinha pequena, dessas tipicamente interioranas contava-se, em épocas passadas, uma lenda bastante peculiar. A história falava a respeito de uma árvore que existia na zona rural, no terreno de uma certa casa já abandonada e caindo aos pedaços.
     A árvore se tratava de um velho pé de juazeiro, enorme, com uma grande copa frondosa, com um tronco tão largo que era preciso quatro pessoas para dar a volta completa. Como era o único da sua espécie na região, os viajantes que passavam por ali durante o dia tinham o costume de se protegerem do sol escaldante debaixo da sua sombra refrescante. Porém, ao cair da noite, ninguém se aventurava a passar por ali perto, por medo de certas “manifestações” que se faziam presenciar naquele lugar ermo, mesmo aos olhos dos mais céticos.
    Segundo os boatos que corriam de boca em boca, quando a noite chegava, o velho juazeiro parecia ganhar vida própria: seus galhos e folhas, de repente, começavam a se agitar num frenesi selvagem, como se fossem sacudidos por um vendaval, quando praticamente não havia nenhum vento soprando na área; além disso, testemunhas sérias entre elas meu avô, que me contou este “causo” há muitos anos em minha infância disseram ter ouvido vozes e avistado vultos brancos a perambularem ao redor da árvore. Outros também diziam que ela “pegava fogo” do nada, e na manhã seguinte, estava verde novamente, sem sinal de queimaduras.
   Por causa dessas e outras coisas, ela ficou conhecida pelos populares como a “Árvore do Diabo”. A explicação que davam para o mistério do velho juazeiro se relacionava diretamente com a casa abandonada nos seus arredores, que também já tinha a fama de “mal-assombrada”, e foi palco de uma história acontecida há tanto tempo, que as gerações mais novas não sabiam se era realmente verdade, ou uma coisa inventada pelos mais velhos.
 
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     Não se sabia qual a idade da árvore, mas era sabido que ela já existia quando um homem conhecido como Tobias “Caolho” construiu sua casa e se mudou para lá com a família. A respeito dele, pouca coisa se sabe de certeza. Comentava-se que, em sua juventude, ele teria sido o líder de um temido bando de cangaceiros, que vez por outra passavam por aquela região, tendo perdido um dos olhos em um tiroteio contra um grupo rival, ou em uma emboscada armada pela polícia; outros diziam que uma cobra havia lhe picado o olho enquanto dormia... Seja qual história for a verdadeira, depois desse episódio, Tobias era visto sempre usando um tapa-olho no olho esquerdo, originando daí o famoso apelido.  
     Sua família era composta de sua mulher e uma filha pequena, cujos nomes não me recordo no momento. A casa em que viviam era simples e pequena, como a maioria das outras casas do município nessa época, Guadianópolis ainda não passava de uma humilde vila. A família vivia do trabalho no campo e lá passava a maior parte do tempo, se deslocando para o centro em raras ocasiões. Esse isolamento, a personalidade reservada de Tobias, bem como um estranho comportamento mais tarde adquirido por ele naturalmente despertavam suspeitas por parte da população da pequena vila.
     Em não poucas ocasiões, Tobias era visto próximo ao velho juazeiro, sentado debaixo de seus galhos, quase sempre ao entardecer e na “boca da noite”. Quem passava por ali comentava que ele parecia falar sozinho, como se estivesse conversando com outra pessoa. Uma certa noite já bem tarde, um vizinho de meu avô relatou ter visto uma luz bruxuleante perto da árvore e, curioso, resolveu chegar mais perto para averiguar o que era aquilo. Quando estava a uma certa distância, percebeu que aquela luz vinha de um farol carregado pelo velho Tobias que, vestindo seu pijama, andava em círculos ao redor do juazeiro, como se estivesse numa crise de sonambulismo, e repetia sem parar as palavras “encontre ela, encontre ela”.
     E quase todas as noites, durante um bom tempo, ele era visto agindo dessa forma estranha, o que deixava a todos impressionados e receosos de manter contato com o Tobias Caolho.
      Até que certo dia, para surpresa geral, a esposa e a filha de Tobias subitamente desapareceram. Quando perguntavam onde elas estavam, ele se limitava a responder de forma vaga e imprecisa, dizendo apenas que estavam “em viagem à capital, na casa de uns parentes”.
     Os dias foram passando e nada delas retornarem. A essa altura, Tobias tinha virado um recluso em sua casa, raramente sendo visto pelos outros. Foi aproximadamente por volta dessa época que as ditas “manifestações” noturnas no velho juazeiro começaram a acontecer: os galhos eram vistos agitarem-se com tanta força mesmo sem vento que muitas vezes alcançavam o alto da residência, quebrando as telhas; vultos espectrais eram vistos a perambular no entorno da árvore, soltando murmúrios chorosos que diziam poderem ser ouvidos a uma grande distância, no silêncio da noite; e, de dentro da casa, saiam gritos horríveis de várias vozes ao mesmo tempo uma delas era reconhecidamente a voz de Tobias, enquanto as outras duas pareciam ser de sua mulher e filhas. E praticamente todas as noites esse espetáculo macabro se repetia, fazendo com que todos nos arredores evitassem passar por ali quando o sol se punha, aumentando ainda mais o mistério em torno da “Árvore do Diabo”.
  Como geralmente acontece em casos assim, não faltaram especulações sobre o que estava acontecendo naquele lugar. Os mais velhos afirmavam que, enterrada em algum lugar na distância entre o juazeiro e a casa de Tobias, havia uma botija que guardava dentro de si várias moedas de ouro e pedras preciosas. Uns diziam que o próprio Tobias a havia enterrado em segredo, quando ainda era o líder do bando de cangaceiros e que ela  era produto de seus saques e assaltos a outras cidades sertão afora; mas também se falava que ela fora enterrada pela mesma pessoa que teria plantado a árvore: um velho com fama de feiticeiro que, para proteger e guardar a sua botija preciosa, plantou um juazeiro no local e lançou sobre ele uma maldição. Mas muitos duvidavam dessa versão da história...
     O fato é que, um certo dia, Tobias Caolho não foi mais visto. Os dias se passavam, mas nenhum sinal dele. O povo da cidade se questionava se ele teria finalmente ido embora na calada da noite, ou se estava doente sem poder sair de casa. Dispostos a resolver o enigma do seu desaparecimento, um pequeno grupo de homens entre os quais meu avô estava presente foram até a casa dele numa manhã ensolarada. Bateram na porta, chamaram seu nome, mas não houve resposta. Achando que algo grave teria acontecido, arrombaram a porta e invadiram a casa à sua procura. Subitamente, foram contaminados por um odor nauseante que vinha da cozinha. Lá chegando, tiveram uma surpresa macabra: sentado numa cadeira, olhando para o teto, jazia Tobias morto. Devido ao tempo transcorrido, o corpo já apodrecia. Em cima da mesa encontraram também um revólver calibre 38, chegando à conclusão óbvia: Tobias Caolho tirara a própria vida.
 
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     A notícia do terrível achado se espalhou rápido pela pequena vila de Guadianópolis. “Por que?” “O que o levou a fazer uma coisa dessas?” Eram as perguntas que mais se ouviam nas rodas de conversa ao final da tarde. O corpo de Tobias foi enterrado em alguma cova rasa cavada de última hora, nos arredores do terreno, e marcada com uma cruz rústica feita de pedaços de madeira velhos. Hoje em dia não se sabe mais o local exato de sua sepultura, e a região onde ficava a casa e a árvore já foi modificada, com o terreno agora ocupado por fábricas de extração de cal e minérios. Mas meu avô se recordava bem do fim dessa história, quando muitos anos já haviam se passado desde a morte de Tobias, e começaram os preparativos para a instalação da primeira fábrica na região.
    Ele contou-me que a equipe responsável pela obra decidiu derrubar a velha casinha e a árvore, pois estavam localizadas exatamente no terreno a ser construído. Começaram primeiro pela casa, que em poucos minutos veio abaixo ante a força das máquinas do progresso. Depois foi a vez do velho juazeiro que, devido ao seu grande tamanho, resolveram cortá-lo ao meio com uma serra elétrica. Ao iniciar o corte, de repente a serra chegou a um grande espaço oco que imediatamente abriu-se, revelando o interior do tronco. A equipe toda recuou assustada ante o que presenciaram nas entranhas da árvore: ali dentro haviam dois esqueletos, um adulto e o outro de uma criança! As pessoas, ao saberem das duas ossadas encontradas, imediatamente lembraram-se da velha história de Tobias e sua família, e de como sua mulher e filha haviam desaparecido misteriosamente: agora, décadas depois, descobria-se, por acaso, o paradeiro de mãe e filha.
     O veredicto da lenda era que Tobias havia num momento de insanidade matado as duas e, de alguma forma, as sepultado no interior da árvore. Mas uma pergunta ainda persistia: qual o motivo para um ato tão abominável? Segundo os que acreditavam na lenda do velho juazeiro, Tobias enlouqueceu ao procurar todas as noites pela botija secreta, tendo profanado o local escolhido pelo feiticeiro para guardar seu tesouro. Uns dizem que ele chegou a encontrá-la, mas logo sucumbiu à maldição e, enlouquecido pela ganância, matou sua mulher e filha; já outros afirmam que quem realmente encontrou a botija foi o dono da fábrica, durante escavações das obras: ela estava enterrada justamente entre as raízes da árvore.
     Verdade ou ficção, ainda hoje correm rumores de que os vigilantes da fábrica costumam ouvir vozes e gemidos bem no exato local onde antes ficava a velha “Árvore do Diabo”. E mais de um funcionário afirmou ter visto, andando pelos corredores, o vulto de um velho homem usando um tapa-olho nas madrugadas silenciosas. 
 
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José Lucas Brito Souza
Enviado por José Lucas Brito Souza em 13/06/2020
Código do texto: T6976360
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