O Fantasma do Vale Wuñay - Parte II
Sua alegria se dissipou assim que chegou ao povoado. A erva que lhe havia parecido sinal de bom agouro, invadia insolente os casebres, como se não houvesse gente vivendo em todo o lugar. O calor fez-se insuportável, como se o povoado estivesse à boca do inferno, ou fosse o próprio inferno. O estranho ruído que lhe havia servido de companhia quando percorria a serra, havia desaparecido por completo, e o único que achava escutar eram os ecos do trote de sua mula.
Uma velha de cor achocolatada, vestida em farrapos, cruzou-lhe o caminho.
-Boa tarde. - disse Manuel Diez.
-Boa tarde. - respondeu a velha, que por não ter um só dente na boca, falava com um som abafado, quase incompreensível para os pouco treinados ouvidos do funcionário do governo.
-Venho em nome do Governo da República. Onde há hospedagem neste lugar?
E a velha, sem seguir conversa – um alívio para Manuel Diez - indicou-lhe uma pequena casa, algo melhor construída que as demais, onde se lia: “Hotel Inglória”. Não pôde evitar um leve sorriso, a placa era escrita em letras exageradamente grandes, como que para compensar ridiculamente o fato de que todos eram analfabetos no lugar. Um cão vadio ladrava em sua direção, e com um bom pontapé fez com que o animal se calasse. Desceu da mula, e caminhava ao hotel quando se deu conta de um árabe que o observava. O Árabe era de baixa estatura, seu rosto coberto por uma espessa barba bastante negra, os olhos também muito negros quase ocultos pelas vastas sobrancelhas. Mantinha a cabeça levemente inclinada, tornando seu olhar ainda mais ameaçador. Não eram muitos, mas já se faziam notar os turcos1 que chegavam ao norte, onde, apesar da enorme distância geográfica que os separava de sua terra natal, encontravam inúmeras similitudes com o deserto argentino.
Manuel Diez, seguindo sua obrigação moral que a função lhe exigia – funcionário do censo – cumprimentou o asiático, que por sua vez, ignorou por completo o portenho.
Manuel Diez encontrou na atitude do árabe uma grave ofensa. O funcionário não era adepto da honra pervertida que a vida de tantos homens ceifou na Europa e na América, a fúria que o dominou foi de origem bastante diferente. O Árabe era-lhe o mesmo que os aborígenes, um povo nômade, sem amor a sociedade e sem amor a terra. Desprovidos do engenho humano, tão caro a civilização, era, assim como as impenetráveis montanhas que mantinham o vale em total isolamento, um baluarte da barbárie contra o progresso do país. A indiferença ao cumprimento de um funcionário do governo, oriundo de Buenos Aires, era mais do que prova de que pensava corretamente, e exigia sangue como reparação.
Manuel Diez, tomado por um ato colérico, tão desconhecido em sua natureza de profissional ilustrado, agarrou o punhal que levava, e dirigindo-se ao Árabe, disse:
-Maldito Turco insolente!
Este, vendo como o seu agressor tremia e mal conseguia manejar a arma, não sabia bem como atuar, e só se decidiu por lutar quando Manuel precipitou-se em sua direção. Manuel Diez tentou-lhe acertar um golpe no ventre, que foi facilmente evitado pelo Árabe, que agora também fazendo uso de uma lâmina – um pedaço quebrado de uma espada – o árabe entrava em combate, e como é sabido, quando os orientais entram em uma briga, seu instinto os domina por completa, ficam como bestas selvagens.
O Árabe deu um golpe no peito de Manuel, que como um animal ferido, tornara-se ainda mais agressivo. O asiático então deu-lhe outro golpe acertando-o no braço esquerdo e outro ainda que lhe atingiu as costas. As facadas se seguiram, e Manuel seguia em pé, até que veio o golpe fatal: uma facada depois da sétima costela. Tal foi a violência, que a lâmina penetrou bem fundo quase até a virilha, e da ferida saltaram os intestinos. Manuel Diez viu suas vísceras no chão. Caiu sobre um charco de seu próprio sangue. A cena, como se pode imaginar, não foi nada silenciosa, porém o povoado se mantinha em violenta tranquilidade, alheio a tragédia que acabava de acontecer.
Continua na parte III.
Para ler a primeira parte : https://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/6970669
1 - A maioria dos árabes que chegavam à Argentina eram oriundos do Império Otomano, desta forma, sendo genericamente chamados de turcos.
Para ler a terceira e última parte do conto, baixar o e-book gratuito disponível no perfil do autor.