O QUADRO - versão estendida
Sempre fui fã de arte. Desde a clássica à contemporânea. Da esteticamente suave à bizarra. Tudo que fosse relacionado ao tema me interessava.
Meu talento para pintura se deu muito cedo e então, devido à influência dos meus pais que eram artistas, após anos de estudo e dedicação, tornei-me um pintor de renome em minha cidade. Casei-me com uma escultora que era mestre na arte de esculpir. Eleonora.
Depois de anos de casamento decidimos ter um filho. Viera um menino. Coloquei-lhe o nome de Lúcio Flávio. Ali meu coração se encheu de alegria, pois poderia dar continuidade ao legado da família e da arte, fazendo do meu herdeiro um artista melhor que eu.
Ensinei o pequeno Lúcio a ler e escrever e desde criança quis ingressá-lo no mundo artístico. Porém, mesmo com oito anos, só sabia rabiscar com suas canetinhas e rasgar papéis. Contudo, estava disposto a ensina-lo, embora ele insistisse naquilo. Rabisca, rasga. Rabisca, rasga. Aquela era sua arte.
Minha esposa, possuidora de grande cultura e beleza, desejava uma pintura da família em nossa sala de visitas feita por mim. Comecei a fazê-la com toda a dedicação e fervor de alma, mas ainda sentia uma angústia que não sabia explicar. Faltava algo mais… vivo e diferente! Ficou inacabada contendo somente os traços do meu rosto, de minha mulher e do meu filho Lúcio.
Minha casa era repleta de quadros de todos os artistas. Réplicas e até originais. Entretanto, faltava um, no corredor. Decidi adquirir uma tela diferente das demais que já possuía.
Fui até uma exposição que se vendia e comprava obras, como uma espécie de sebo artístico. O vendedor ficou muito alegre ao me ver e logo me apresentou todo o local. Notei uma tela expressionista de aparência um tanto quanto estranha. Apontei para o quadro e perguntei sua história.
Ele disse que era de um autor modernista com pseudônimo totalmente desconhecido para mim. Todavia sua bizarrice se encontrava no fato de que a tela era composta apenas por vários traços e riscos tortos de preto e branco, que indicavam verdadeiros golpes com o pincel.
Entretanto, quando notou meu interesse, o vendedor afirmou que o quadro possuía má fama, ou que trazia maldição, uma vez que, segundo relatos, seu autor foi encontrado em sua casa, morto com vários cortes por todo o corpo. No entanto, ele mesmo disse que isso não passava de lenda e que, na verdade os acadêmicos mencionavam que provavelmente o artista apenas quis inventar alguma história para que assim pudesse ganhar fama em cima do boato e dar a obra um significado mais intenso. Para ele, todavia, a obra possuía significados pessoais que mexiam com ele sempre que olhava para o quadro, mesmo que não entendesse o quê sentia exatamente.
— Ora, jovem. A arte é assim mesmo. — disse a ele — cada um interpreta da sua maneira. Já há alguns que colocam significados. Vou levar.
Pedi para colocarem o quadro em meu carro, paguei e agradeci ao bom atendimento do rapaz. Antes de sair da loja ele recitou para mim a frase de Van Gogh:
"Não esqueçamos que as pequenas emoções são os grandes comandantes das nossas vidas e que as obedecemos sem saber".
E desejou-me bom dia.
O quadro foi colocado no corredor. Trouxe minha mulher e filho para admirá-lo. A estrutura dos traços fortes lembrava um pouco a obra N°5 de Jackson Pollack.
Num momento senti desejo de dar continuidade a pintura de minha família e fui para meu local de trabalho. Enquanto preparava as tintas, quis trazer o pequeno Lúcio para que observasse. Sentei-o numa pequena poltrona:
— Olha, filho. O pai está fazendo um retrato nosso, meu, seu e da sua mãe. Presta atenção que vou te ensinar a fazer.
Dei-lhe papéis e lápis de cor. Comecei pintando os contornos do rosto de minha esposa e filho.
Quando olhei para meu filho, ele estava rabiscando e rasgando papéis. Não parecia se importar. Isso doía em mim. Tirei-o do cômodo e coloquei ele no quarto. Ia voltar para meu local de trabalho. Passei pelo corredor onde estava o quadro que eu adquiri. Enquanto eu olhava meditava sobre o futuro do meu filho.
— Que decepção! E pensar que todo um legado e uma vida dedicada a arte não terá continuidade nem descendência. Não. Meu filho não pode ser dado a futilidades. Não. Por Deus!
Voltei para meu cômodo de trabalho, fiquei um bom tempo olhando para o meu quadro inacabado, imaginando que em mim se acabaria toda uma linhagem de artistas, e num acesso de frustração, bati o pincel várias vezes sobre a tela na imagem do meu filho.
— Por que, meu Deus? Por que?
Removi a tela que pintava e joguei fora. Deixei a sala sem uma pintura nossa. Coloquei uma foto.
Eu passava por aquele corredor, olhava para aquele quadro disforme e dizia comigo:
— Quadro que atrai maldição. Quem precisa disso quando se convive com o infortúnio do legado de sua família morrer? Isso sim é maldição!
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Tempos depois comecei a acordar com barulho de garras se arrastando no chão a noite e sentir, de vez em quando, uma respiração forte e gelada perto da minha cama.
Pensei ser minha esposa, mas ela dormia calmamente ao meu lado. Fui até o quarto do meu filho. Passei pelo corredor onde estava a pintura nova. Abri a porta do quarto onde achei o pequeno Lúcio deitado e dormindo, mas no chão do seu quarto havia vários pedaços de papel rasgados com rabiscos.
— Que bagunceiro. Devia estar acordado até agora e correu pra cama quando me ouviu chegar. Amanhã varro isso.
Passando pelo corredor, olhei novamente a pintura. Nada de anormal. Porém, só de pensar no boato da morte do autor daquela obra fiquei entre a superstição e o ceticismo.
Ri de mim mesmo. Cedi ao ceticismo. Voltei para meu quarto.
As noites continuavam com esses ruídos e cada vez mais frias. Uma vez eu senti nitidamente como se pêlos ou algo suave roçasse em minhas pernas enquanto deitado. Passei a ter pesadelos horríveis e ao acordar suado, comecei a cogitar que alguém ali me observava.
Contudo, nada havia na casa de diferente. Confesso que por alguns instantes me imaginei numa história clichê de quadros amaldiçoados. Mas acreditar nisso seria tolice da minha parte.
Minha esposa passou a ter febre. Tinha medo de dormir naquele quarto e me contou que uma vez pode sentir algo fino e afiado passando por entre seus braços como se fossem facas.
— Isso se deu desde o dia em que você comprou essa porcaria de quadro. Joga isso fora, pelo amor de Deus.
— Mulher, o quadro não tem nada de mais. Você agora deu pra acreditar em contos de tia velha?
— Não quero saber. Quero me ver livre dele o mais rápido possível, você entendeu?
Minha insistência a convenceu e deixou o quadro em casa por mais um dia. Além do mais, a tela fora relativamente cara e não havia nada de estranho em sua tela, a não ser sua composição abstrata.
Certa noite, acordei com olhos disformes mirando nos meus no meio da escuridão e um som crescente em direção ao meu quarto como de alguém que arrasta a ponta de uma lâmina no chão.
Krrrrrrrãããããk... krrrrrãããk...
Algo roçou em minhas pernas. E não era minha esposa. Era afiado e parecia querer me cortar.
Pulei da cama rapidamente e removi com ímpeto o lençol de cima de minha esposa que acordou assustada com meu gesto. Não havia nada. Acendi a luz. Nada.
Lembrei dos rumores sobre a maldição que poderia haver no quadro. Levantei-me e de madrugada peguei aquela obra e sem me importar com o quanto paguei, joguei ela no fogo da lareira para nunca mais ter problemas com qualquer que fosse sua superstição.
Nesse instante ouvi um grito de minha esposa.
Corri até o quarto. Ao chegar, ela estava repleta de cortes por todo o corpo, e completamente ensanguentada, como se tivesse sido pincelada com sangue. Com sua voz fraca, disse que sentiu algumas coisas se roçarem em seu corpo e enxergou uma sombra disforme que se moveu para debaixo da cama.
Quando fui olhar, para meu espanto lá estava meu filho, Lúcio. Perguntei o que ele fazia ali embaixo, mas não me respondeu. Apenas me olhava dizendo:
— Eu consegui, papai. Aprendi a desenhar! Igual o quadro que o senhor comprou.
Estendi o braço para tirá-lo dali, porém quando o segurei pela mão direita e o puxei, seu corpo se desfez em vários pedaços de papel rasgado, todos contendo manchas e rabiscos de cor vermelha.