O NEGRINHO DO PASTOREIO....lendas brasileiras.

Eduardo ligou pra casa. O celular quase sem bateria. -"Droga!! Dez por cento de carga. Atende logo, Cristina!!!!" Sete horas da manhã. Ele estava nervoso. -"Bom dia!!!!" Uma voz de sono do outro lado. -" Oi, Cris. Bom dia, amor." Ele olhou para o teto do quarto de hotel, ansioso. -"Oi, Edu. Bom dia. Já está em Porto Alegre???" Ele gesticulou. A mão na cabeça. -"Sim, no hotel da reunião. Dormi na pousada da Barreira. O dono não é mais o Quinzinho. É um sujeito grosso, mau educado e torcedor do Grêmio. Cara feia que nem a camiseta do time dele, rival do nosso Inter. Viu...acho que deixei a pasta com o contrato aí, sobre minha mesa. Não está comigo!!!!" A esposa foi até o escritório. O celular na mão. Abriu as gavetas. Vasculhou a estante. -"A pasta verde. Não está aqui, amor!! Vi quando a colocou na mala!!!!" Eduardo se desesperou. -"Não está aí???!!? Meu Deus, o senhor Wilson vai me esfolar vivo. A reunião com o grupo francês será amanhã cedo." Cristina tentou acalmar o marido aflito. -"Confie em Deus, Edu. Olhe direito na sua mala." Eduardo se jogou na poltrona. -" Vou olhar direito. Me lembro de ter colocado a pasta na mala. Não estou louco!!!" Cristina ficou preocupada. -" Vou rezar aqui. Foi bom você ter ido antes. Terá tempo de se preparar. Refaça o caminho. Vai dar certo!!!! Beijos!!!!" Eduardo concordou. -" Beijos. Eu ligo depois!!!" O melhor era se acalmar. Colocou o celular pra carregar. Ele desceu para o restaurante. Tinha fome. Precisava de um bom café da manhã. Dois dias dirigindo. Poderia ter ido de avião mas gostava de dirigir. Conhecia bem o trajeto. Passara por Curitiba, onde pernoitou na casa da tia Zelinda. Visitou amigos na fazenda Aliança, onde vivera por dez anos. Pegou a estrada e descansou na pousada Marselha e depois na pousada da Barreira. Ali revisou a palestra pra reunião de negócios. Verificou os slides e fotos da empresa. Doze folhas de texto e cálculos. Números e mais números. Um contrato rentável. Um sucesso e talvez uma promoção garantida. Eduardo substituía o gerente geral e sócio de Wilson, Fernando, em lua de mel no Caribe. Uma responsabilidade e tanto. Colocou a pasta com o contrato debaixo do travesseiro da cama na pousada da Ribeira. Adormeceu. No dia seguinte, saiu e se esqueceu da pasta com o contrato. Em Porto Alegre, após o desjejum, Eduardo voltou para o quarto. A mala aberta. Espalhou as roupas no chão. Olhou bem, uma a uma. A maleta aberta. Nenhum sinal da pasta verde com o contrato. Ele foi até o carro. Olhou tudo. Debaixo do banco. O porta malas. As sacolas com lembranças da tia. Chutou o pneu. -"Saco!!! Cadê essa pasta????" Ligou para a tia Zelinda. A mulher prometeu vasculhar a residência em busca da pasta de Eduardo. Duas horas depois, a esposa Cristina ligou. Tinha revirado a casa e não achara a pasta. -"Aqui em casa não está. Chamei por São Longuinho até." Eduardo se desesperou. Seu emprego e sua reputação estavam em perigo. Eduardo chegara em Porto Alegre, bem antes, a fim de deixar tudo em ordem mas a pasta era o principal elemento. O hotel cinco estrelas. A reserva. O quarto. Ele desceu para o salão de eventos. Gustavo, funcionário da filial de Bagé, montava o telão e os aparelhos de som. Eduardo o cumprimentou. -"Sou o Eduardo, da loja dois. Vou passar as diretrizes aos franceses!!! Vim antes pra deixar tudo redondinho!!!!" Eduardo conferiu as cadeiras, as mesas e o sistema de som. O notebook. A lista de presença da reunião. Teria que checar os quartos dos empresários franceses. Ficaria o dia todo a serviço deles. Teria que acompanhá-los até a chegada do seu chefe, o senhor Wilson. Prometera ao chefe que cuidaria de tudo!! Tinha que manter sua palavra. Teria que manter a calma. Não queria ligar e atrapalhar a lua de mel de Fernando. Seria muito inconveniente e passaria um atestado de incompetência. Era muita coisa detalhada mas ele se sentia capaz e apto a missão. Só tinha um detalhe. O contrato não estava com ele! A pasta verde com o contrato. Onde estaria?!??? Após o almoço ele foi passear pela cidade. Uma ligação da tia. Ela revirou a casa mas não encontrou a tal pasta!!! -" Vou rezar, meu filho. Vou acender uma vela pra Nossa Senhora Aparecida. O negrinho do pastoreio vai ajudar. Se ele não achar, ninguém achará!!!!!" Eduardo riu antes de agradecer. Deu uma gargalhada depois. -"Rezar tudo bem mas isso?!!? Negrinho do pastoreio é lenda!!! Essa minha tia está delirando!!!" Quatro horas. O aeroporto. Eduardo foi receber os seis empresários franceses. Uma limusine alugada pra impressionar. Um cartaz com o logotipo da empresa pra ser identificado. Eduardo pensava em tudo. Era um excelente funcionário. Falava a língua francesa e inglesa fluentemente, motivo pelo qual foi escolhido pelo chefe. O hotel. Os quartos dos franceses. Tudo perfeito, exceto pela falta do contrato. Os brindes e mimos da empresa. O balde com champanhe. Só faltava o contrato pra ficar tudo perfeito e isso custaria o emprego de Eduardo, certamente. O senhor Wilson viria de manhã. Eduardo jantou com os franceses. Mostrou-lhes a cidade. Eduardo foi pro seu quarto, exausto, a uma hora da manhã. A cabeça doendo. Preocupado. Relembrou momentos e o caminho feito. A casa da tia, a pousada, a troca de pneu, o restaurante a beira da estrada, o posto de gasolina....onde estaria aquela bendita pasta??? -" Desculpe, senhor Wilson. Eu perdi o contrato durante a viagem. Eu sinto muito." Ensaiou o que dizer ao chefe. Tomou um comprimido de dipirona. Eduardo adormeceu. A pasta verde apareceu no sonho. Eduardo, a esposa, a tia Zelinda, os franceses.... tudo no sonho. Uma fazenda nos pampas, campos, o gado. Veados, bois, cavalos e avestruzes. O dono de uma estância. Um gaúcho bravo e ruim. Tinha o rosto do patrão de Eduardo, o senhor Wilson. Um fazendeiro cruel que não emprestava dinheiro nem cavalo a ninguém, não dava pouso nem a parentes doentes. Preferia ajudar os cães do que gente pobre. Tinha escravos. Churrasco só dava em festas especiais mas matava um boi magrelo que só. Reclamava de tudo. -"Não come muito do churrasco, gurizada!! Economia!!!!" Tinha um filho de doze anos, Olavo. Um moleque ruim e gordo como o pai. Tinha um escravo de quatorze anos, chamado de Negrinho. Um faz tudo na casa. Pretinho que nem carvão. Olhos grandes e vivos. Era de confiança do fazendeiro. -"Sou afilhado de Nossa Senhora Aparecida!" Dizia o negrinho. O escravo tomava conta e pastoreava os cavalos da fazenda. A noite toda pastoreando. Não tinha preguiça. Sempre sorrindo. Durante o dia, o negrinho apanhava do filho do fazendeiro. Uma aposta do fazendeiro com um vizinho seu. Uma corrida de cavalos. Uma corrida sensacional. Um bom prêmio em dinheiro ao vencedor. O fazendeiro escolheu o negrinho pra montar e ser o jóquei do cavalo mais veloz da fazenda. Trovão era forte, belo e veloz. O dia da corrida chegou. O percurso definido. O vizinho também tinha um belo cavalo. A cidade toda veio assistir a corrida. -"Se você perder te mato, Negrinho." Eduardo se reconheceu. O negrinho parecia com ele. -" Onde está o contrato, Eduardo?? Vou te matar, incompetente!!!!" Eduardo delirava. O sonho reiniciou. Os cavalos correram, após o tiro de largada. A multidão extasiada. O negrinho mordeu a língua. Os cavalos em disparada louca. Os cavalos emparelhados. -"Meu patrão vai doar o prêmio para os pobres... Não é ruim igual ao seu, negrinho!!!" Gritou o jóquei do cavalo do vizinho. Quinhentos metros pra curva derradeira, antes dos cem metros pra linha de chegada. O cavalo do negrinho parecia cansado. O cavalo parou. Ergueu as patas dianteiras. O negrinho fez um esforço pra controlar o bicho. O outro tomou a dianteira. O cavalo do negrinho avançou. De novo em disparada. -" Eia... vamos, meu amigo Trovão." Tentou alcançar o outro. Em vão. O cavalo do vizinho venceu por um corpo apenas. O negrinho chorou. O patrão dele ficou possesso. Pagou a aposta em dinheiro vivo mas com sangue nos olhos. Uma decepção. Um rombo na bolsa de dinheiro. O fazendeiro mandou amarrar o negrinho no tronco. Deu uma surra de chicote no pobre, por uma hora. -"Infeliz....porque perdeste, vai pastorear os meus trinta cavalos por trinta dias. Sem comida, traste!!! Vai dormir no campo com os cavalos!!!!" Sol forte, vento, frio, chuva, mosquitos nas marcas das chibatadas, as feridas abertas, o sangue no corpo do negrinho. Uma, duas semanas... A fome. A crueldade. Sem forças pra cuidar dos cavalos, o negrinho deitou ao lado de um grande cupinzeiro. Olhos fechados. As corujas. Urubus sobrevoando. Em silêncio, Negrinho orava a sua madrinha, Nossa Senhora Aparecida. Ele adormeceu profundamente. No céu, o Cruzeiro do Sul, a estrela da manhã, as três Marias. Os guaxinins e macacos cortaram a corda que prendiam os cavalos a uma estaca. Eles se soltaram e saíram pelo campo. O barulho dos cascos despertou o menino. Ele chorou pois deixara os animais se perderem. O filho do fazendeiro contou tudo ao pai. O homem deu outra surra no negrinho. Muitos ferimentos no corpo do menino. -" Vai buscar meus cavalos, traste." O menino obedeceu. Saiu chorando. O corpo dolorido. Foi a capela e acendeu uma vela pra Nossa Senhora Aparecida. Saiu pelo campo com a vela na mão. Por onde passava a vela pingava. Cinco horas procurando a tropa. Cada pingo da vela se transformava numa luz, clareando a noite. Os bichos da mata ficaram paralisados. O galo cantou. O negrinho riu ao encontrar os cavalos. -"Obrigado, madrinha!!" Montou o Trovão e levou os cavalos para a fazenda. Deixou-os na estrebaria. Gemendo de dores, ele foi ao cupinzeiro e deitou. Cansado. Orava a Nossa Senhora Aparecida. Era grato a madrinha. Adormeceu. As luzes se apagaram. Cedo, o filho do fazendeiro soltou os cavalos. -" O negrinho recolhe, Olavo solta!!!" Disse ao pai que o negrinho tinha deixado que fugissem. Outra surra no pobre escravo. Dessa vez mais impiedosa. O corpo todo em carne viva pelas chicotadas. O menino parecia morto. Chamou a sua madrinha e deu um suspiro. Pra não gastar a enxada pra abrir uma sepultura, o fazendeiro mandou dois empregados jogarem o corpo do menino num grande formigueiro. -"Será devorado por essas grandes formigas vorazes pois está em carne viva mesmo!!! Melhor assim!!!" O fazendeiro teve pesadelos com o negrinho. Os peões, nos dias seguintes, não encontraram os cavalos. Quatro dias de busca. Todos comentavam que o fazendeiro tinha matado o negrinho do pastoreio. Nem sinal dos cavalos. O fazendeiro foi ao formigueiro. O negrinho estava vivo, sobre o formigueiro. Pele lisa e sem sinais de ferimento. Ele sacudiu as formigas do corpo. O fazendeiro viu a Virgem Maria e os cavalos ali do lado. O fazendeiro caiu de joelhos, arrependido de suas maldades. O negrinho montou o Trovão e saiu pelo campo. Todos os cavalos o seguindo. Surgiu a lenda do negrinho do pastoreio. Capaz de achar qualquer coisa perdida, qualquer objeto que seja!!! Ele encontra, desde que a pessoa ou alguém próximo, acenda uma vela a Nossa Senhora Aparecida. Eduardo acordou com o despertador do celular. -"Que sonho louco." Sete horas. O seu patrão chegaria às nove. Melhor dizer a verdade e esperar a demissão. Tinha perdido o contrato importante. Merecia o olho da rua. Um telefonema da portaria. -"Sim. Quem quer falar comigo?!? Não conheço ninguém chamado Eustáquio!!!" O recepcionista insistiu. -"Ele disse que é muito importante, senhor." Eduardo se vestiu. O elevador. A recepção. Um sujeito com a camisa do Grêmio. -"Eu mereço. Ver a camisa do Grêmio logo cedo!!" O homem se virou. -"Senhor Eduardo, esse é o senhor Eustáquio, de Barreira!!!" Disse o recepcionista do hotel. -" Bom dia, guri. Eu vim dirigindo a noite toda, tchê. Sorte que tinha seu nome e o cartão do hotel nesse documento. Tu esqueceste no quarto da pousada!! Achei que era importante!!!!" O homem estendeu a pasta verde. Eduardo foi as lágrimas. -" Minha Nossa Senhora!!! Muito obrigado, amigo." Deu um abraço no outro. Tomaram café juntos. Eduardo ligou pra esposa e pra tia. Estava feliz. Aliviado e muito feliz. Sua palestra foi um sucesso. Os franceses assinaram um contrato milionário com a empresa de Wilson. Na volta pra casa, dois dias depois, Eduardo se hospedou na pousada da Ribeira. Fez amizade com Eustáquio. Era um bom sujeito. Eduardo foi promovido. Acendeu uma vela a Nossa Senhora Aparecida, no seu primeiro dia de trabalho como coordenador geral da empresa. FIM.

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 02/05/2020
Reeditado em 05/05/2020
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