COVID-19. UMA MORTE SILENCIOSA.
Reginaldo olhou para o estádio do Pacaembu, em São Paulo. As catracas, as bilheterias, as arquibancadas vazias. Agora era um hospital de campanha. No gramado as tendas, as lonas, a estrutura metálica erguida em tempo recorde. A grama verde. As maçãs, UTIs, equipamentos cirúrgicos, ambulâncias e carros de apoio. Um templo do futebol. Um ambiente de guerra. Reginaldo deixou cair uma lágrima ao se lembrar do velho Ubirajara. O Bira cabeleireiro. Ele, um santista fanático e fã de Pelé, teve uma de suas últimas alegrias ao ver o tricampeonato da libertadores do Peixe, ali no Pacaembu, sobre o Penharol do Uruguai. Ano de 2011. O Santos de Paulo Henrique Ganso, Neymar e Edu Dracena. Reginaldo estava com ele no tobogã. Uma alegria e tanto. A torcida do Santos eufórica. A torcida agora era pra vencer a guerra contra o Coronavírus. Reginaldo viu um médico e uma enfermeira entrarem. -"O paciente 2.333 terá uma morte rápida, silenciosa. Fim do sofrimento extremo." Disse o jovem médico. Reginaldo olhou, calculou e deu uns vinte e dois a ele. A enfermeira aparentava ter mais de quarenta anos. Tinha aliança na mão. -" Estou com medo, Helena. Nem me formei e fui convocado pra essa loucura!!! Dois meses sem ver minha família. Veja. A pressão arterial caiu bruscamente. Aumente as doses de remédios vasoativos!!!!" A enfermeira sorriu. -" Esse aqui tem 36 anos mas tem um corpo de uma pessoa de 80. Pelo peso e entupimento das veias notamos que é sedentário. Diabético e asmático. A esposa disse que ninguém, nem ele mesmo sabia ser diabético, doutor!!!!" Reginaldo sentiu raiva e pensou em partir pra cima dela. Onde já se viu falar assim de um paciente??!!!?? -"Eu tenho 44 mas trabalho dez horas diárias, faço caminhada, academia, cuido da casa e me alimento bem!!! Não como porcarias." Disse a enfermeira. Reginaldo notou que o paciente estava sedado, ligado ao respirador mecânico. -"Está com febre!!! Muita febre, doutor." Reginaldo preferiu andar um pouco pelo hospital. Outra ala. Pacientes isolados. Lúcidos. Médicos e enfermeiros com trajes de segurança que mais pareciam trajes de astronautas. Luvas, máscaras cirúrgicas e botas. As faxineiras trabalhando com cuidado. Um rapaz com dificuldade de respirar. Uma sinfonia de tosse. -"Esse frango tem gosto de isopor. Uma droga!!!" Uma moça atirou o bandejão na parede. Uma enfermeira lhe dava comida. A moça chamou a faxineira e recolheram juntas a comida no chão. Um médico se aproximou da paciente e a consolou. A moça começou a chorar. -"A falta de paladar e olfato é comum em pacientes com a Covid-19. Tudo vai ficar bem, Andréia. Esse antibiótico é ótimo. Vai passar!! Você saiu do respirador e brevemente sairá daqui pra casa!! Eu creio!!!!" A moça se acalmou e até sorriu. Reginaldo se emocionou ao ver tanto carinho daquele médico com aquela paciente. Reginaldo notou que a maioria dos pacientes estavam quietos, cabisbaixos. Alguns traziam o terço nas mãos. -"Não deixe que vejam o caminhão frigorífico!!!" Gritou um médico ao motorista. Reginaldo olhou, curioso. -" Mais uma vítima desse vírus. Para o governo mais um número, pra família uma perda irreparável. O Coronavírus venceu e o levou mas nós ganharemos a guerra. Em nome de Jesus!!!!" A equipe médica se reuniu. Alí tinha uma aura de respeito, amor, dignidade e carinho. -" Doutor Luciano, avise a família. Não terá velório nem despedida. Vamos orar!!!" Reginaldo olhou amedrontado um enfermeiro fechar o saco preto com o cadáver dentro. Após a oração do pai nosso, uma enfermeira pediu orações ao enfermeiro Fábio, infectado durante o trabalho na linha de frente e de quarentena em casa. Um médico ergueu a voz. -"Gente, isso é real. É muito mais que política e economia, dinheiro ou teses esdrúxulas. Esse vírus mata e leva embora entes queridos. O recado está dado, vamos ser gratos e aproveitar a vida, cada momento. Rever conceitos e atitudes, rever prioridades. O que é mais importante na sua vida?!?? É o carro, a casa, o emprego, a roupa transada, o perfume importado, o corpo sarado, a conta bancária ou a vida, a saúde, a paz, a espiritualidade?!??? Brigamos por coisas tolas. Ferimos as pessoas. Por um feijão salgado a esposa não presta, não faz nada direito!!! Por um pequeno erro o funcionário é demitido, esculachado, demitido!!! Reclamamos de tudo e de todos, sempre azedos e ácidos. Estamos aprendendo a ser mais humanos, melhores, gentis, solidários, humildes. Estamos aprendendo a cuidar da casa, da higiene, de quem a gente ama. Essa pandemia vai passar, eu creio. Amém!!!" Todos responderam amém. Reginaldo engoliu em seco. Lembrou das piadas que postara nas redes sociais. Lembrou que repetia aos amigos e familiares que o vírus jamais chegaria no Brasil. -"Só de ver o mito, o Coronavírus foge!!!!" Lembrou das notícias, os primeiros casos no país. Reginaldo foi ao supermercado e encheu o carrinho com papel higiênico e álcool gel. Histeria. Egoísmo. Sócio de uma agência de viagens, tinha um ótimo salário, um belíssimo apartamento num condomínio fechado. Um carro do ano. A esposa foi dispensada da loja de roupas onde era gerente. Comércio fechado e ruas desertas. Reginaldo participou de passeata contra o isolamento e fechamento do comércio. Ele teve uma febre e coriza mas passou com remédios, chás e sopas quentes. Não era preocupante. Culpou o outono. O caos no Rio, São Paulo, Amazonas e Ceará. O isolamento social. O crescimento dos números assustadores da pandemia. A saída do ministro Mandeta. A procura por máscaras. Reginaldo estava de novo no hospital de campanha do Pacaembu. A equipe médica ocupada. -"Geraldo!!! Você faz o que aqui, meu amigo???" O outro tinha o semblante sério. Ele apontou para um saco preto. -" Estou de férias. Férias eternas. Aquele no saco, é o Paulinho. O Dico e o Elias já estão no caminhão. Serão cremados!!!" Reginaldo se desesperou. -"Não.... É pegadinha do Faustão!!! Ficou louco, Gegê!??? Você sempre foi o palhaço da turma. É brincadeira sua!!!!" Geraldo apontou pra maca. -" Veja, Reginaldo. Estou entubado alí. Já fiz a viagem, sem direito a música do Roupa Nova. -"Há tanto tempo que eu deixei você...amo essa música!!! Não perceberam que eu morri pois tem muita gente chegando. A equipe médica está exausta!!!" Disse Geraldo. Reginaldo foi às lágrimas. Arregalou os olhos. Suava frio. Arrepiou inteiro ao ver dois espíritos do seu lado. -" Olá, Reginaldo. Seu monte de estrume!!! Trouxemos seu espírito aqui pra você ver a meleca que fez. " Reginaldo esfregou os olhos. Era um pesadelo. -" Não me xingue, Dico. Sou muito legal com vocês." Geraldo, Dico e Elias se viraram. O espírito de Paulinho se juntou a eles. -" É reunião da galera no Pacaembu!!! Vejam. A Bia e o Orestes deram entrada. Começaram nessa semana a sentir febre alta, tosse seca, dificuldades de respirar e dores no corpo. O guardião de luz me disse que não vão escapar da morte pela Covid-19. É uma pena!!!" Reginaldo chorava. -"Sete mortes na sua conta, por sua culpa. Churrasco a tarde toda, cerveja, brindes na firma em pleno isolamento. Abraços. Copos e toalhas compartilhadas na piscina. Você sempre cospe quando fala alto, Reginaldo. Você infectou a gente, idiota." Elias, furioso, apontou o indicador a ele. -" Não estou positivo!! Não estou!!!" Gritou Reginaldo. -" Não estava mas visitou o velho Genaro. Levou os passaportes dele, que esteve em Bérgamo, na Itália. Puxa saco. Vocês almoçaram juntos, lembra?!???" Reginaldo caiu na real. -" Você disse sete mortes!!! São seis pessoas aqui. Eu serei o sétimo!!!! Eu mereço, turma. Eu sinto muito." Paulinho se aproximou. -" Não será você, cara!! Será a Karina, sua esposa. Reparou na tosse dela. Garanto que não." Reginaldo estava deprimido. -"Você também espalhou a Covid-19 no seu condomínio, idiota!!! Nem máscara você usa!!! Trouxemos seu espírito aqui pra que veja o estrago que fez!! Ficar em casa é pra velhos, você dizia!!!!" Acrescentou Elias. Reginaldo gritou. Um pulo na cama. Estava em casa. Ele acordou a esposa. -"Outro pesadelo. Falei pra você rezar antes de dormir, amor!!!" A esposa pousou a mão na testa dele. -"Está com febre!!!" Reginaldo se levantou. Três horas da manhã. Lavou o rosto no banheiro. Preferiu dormir no quarto de hóspedes, após tomar água e um antitérmico. De manhã, assustou a Karina ao surgir de luvas e máscara na cozinha. Relatou o sonho a esposa. Ela ficou preocupada. O telefone tocou. Era a esposa de Geraldo. Queria informar Reginaldo que o esposo falecera. Ela desligou pois ninguém atendia. Reginaldo e a esposa já haviam saído pra fazer os testes da Covid-19. Resultados positivos. O casal ficou em quarentena, confinados e separados. Reginaldo foi para a casa da tia, uma enfermeira aposentada. Karina ficou no apartamento, isolada num quarto e auxiliada por sua prima. Era preciso. A tia de Reginaldo, Lucila, morava sozinha e adorou saber que cuidaria do sobrinho por quarenta dias. Reginaldo pediu desculpas pois fazia quatro anos que visitara a tia. Parentes, quem precisa deles!!! Era o que sempre dizia mas agora precisava da ajuda dela. Uma chácara. Local ideal pra ficar em quarentena, indicado pelo amigo, doutor Edmundo. Ele ficou num quarto, nos fundos da casa. O dia todo trancado. Uma televisão preto e branco, livros, o celular pra se comunicar com o mundo exterior. Reginaldo não queria luxo. Queria se curar da Covid-19. Queria voltar a vida normal. Navegava na internet e procurou saber tudo sobre o vírus. Tinha muito tempo pra isso. Um banheiro privativo. Pratos, talheres, copos e toalhas individuais, apenas para uso dele. Os sintomas apareceram. A febre, as dores, a falta de ar... Reginaldo passava horas deitado. Ele falava sempre com a esposa, pelo celular. Pediu uma Bíblia a tia. Passava horas estudando a palavra de Deus. Ele mesmo esterilizava e lavava tudo que usava. Tinha, ele e a esposa, uma rotina organizada de oração, exercícios, limpeza e higiene pessoal, estudos e lazer. Reginaldo estava mudado. Era grato por tudo. Postava na rede apenas mensagens positivas. Agora dava valor ao isolamento social. Tinha saudades das coisas simples como passear, ir na padaria e ao supermercado. Karina se recuperou completamente. Reginaldo comemorou muito. -" O que acontecer comigo não importa mais pois Karina se salvou, ao contrário dos amigos. Muito obrigado, Senhor!!!" Reginaldo, uma semana depois, teve dificuldades de respirar. O corpo dolorido. A febre voltou. O doutor Edmundo foi chamado. A tia o acompanhou ao hospital de campanha do Pacaembu. Ele foi sedado, entubado. Antibióticos. Ligado ao respirador. Era tarde do seu sexto dia ali. -" Bem vindo, Reginaldo!!! Agora você passará pelo que nós passamos. Fica tranquilo, será uma morte silenciosa. Estamos vingados. " Reginaldo reconheceu Geraldo e Dico do seu lado. Eles riam. Os espíritos de Paulinho, Bia, Elias e Orestes chegaram. Reginaldo orou. Pediu perdão aos amigos. -" Não é real, seus espíritos não estão aqui. Não estão aqui." O espírito de Bia avançou sobre ele. Ela apertava seu pescoço. -" Maldito. Eu era tão jovem!!!! Morra logo!!!!" Dico e Elias interviram. -" Ele está arrependido. Calma!!! Não é o mesmo." Disse Elias. Uma enfermeira se aproximou. Reginaldo sentiu um carinho no rosto. Ele fez esforço mas não conseguiu abrir os olhos. Sentiu um cheiro bom de perfume. -"Vai em paz, meu caro. Que Jesus te perdoe e o receba no reino. Amém." Reginaldo deixou cair uma lágrima. Ele ergueu levemente um dedo. A enfermeira entendeu o gesto. -"Vou desligar o respirador artificial pra você ir embora em paz!!! É isso o que quer!!!!" A enfermeira ficou do lado dele durante vinte minutos. Os sinais vitais cessaram. Reginaldo teve uma morte rápida e silenciosa. FIM