Cara estranho

Numa sexta-feira de poucos ventos, em agosto, quase não se via pessoas nas paradas de ônibus. Marcos era uma delas, aguardando o 021 — destino: casa. Outras duas desconhecidas esperaram menos de cinco minutos e o delas já veio. Sem problemas; logo outras pessoas pingadas chegariam.

Ao final da sétima música, desde que fora abandonado, a carona coletiva apontou no semáforo, três quarteirões a frente. Conferiu o passe na carteira; pôs no bolso da frente e tirou os fones.

O gigante azulado parou exatamente onde ele estava. A porta hidráulica abriu e um senhor de seus 40 e poucos anos, usando uma farda azul e um boné da empresa fez um aceno com a cabeça. Devolveu o cumprimento com uma piscadela. Segurou na barra de apoio, pegou impulso e começou a subir.

— Última viagem?

— Só mais duas, se Deus quiser — disse o motorista, soltando o volante e erguendo as mãos.

— Bom! Está mais perto que longe — respondeu, dando um sorrisinho.

Uma rápida e desnecessária busca por assento, pode visualizar oito pessoas. A maioria já conhecidas daquela viagem. Uma das poucas vantagens de ir trabalhar assim é começar a ver a familiaridade nas viagens. As ruas, casas, comércios e... pessoas. Ali, talvez apenas um cara ele nunca vira. Estava bem ao final, encostado na saliência do cano de escapamento que fica esquentando. Ele se ajeitou no assento, arregalou os olhos e meio que deu um sorriso amarelo quando viu Marcos. Ele sorriu? Foi isso mesmo?

Sentou-se no meio, perto da porta. Abriu bem a janela suja e largou a mochila ao lado. Era só não dormir. Desligou a música e guardou os fones que chiavam sobre o peito.

Escavou várias coisas dentro do bolso pequeno da mochila, algumas ele sempre se espantava de estarem ali. Encontrou! Um telefone pequeno, desligado e com pouca carga. O celular novo, deixou no modo silencioso e escondeu na cueca.

Duas pessoas desceram na parada da praça dos gatos. Lá, sempre que passavam àquela hora, vários gatos estavam em assembleia, decidindo onde iam passar a noite miando.

O ônibus passou num quebra-mola e uma moeda saltou dos bregueços no bolso pequeno. Ela rolou pela chapa de alumínio, chocando-se em qualquer coisa. Talvez no final, ou mesmo no pé de alguém. De jeito nenhum ele fazia questão de ir buscá-la. Pode até ajudar alguém lá atrás. Que façam bom proveito, isso sim.

Algo frio e pontiagudo encostou no seu pescoço. Ele recuou e olhou rapidamente para trás. Um jovem mascando chiclete e cheirando a cigarro barato o olhava maliciosamente. Usava um boné escrito ME DEIXA EM PAZ!, e um casaco desbotado. Estava com o braço esticado e, na pontas dos dedos, equilibrando-a sobre o indicador, estava a moeda de cinquenta centavos.

— Obrigado!

O rapaz meneou a cabeça saiu, mastigando de boca aberta. Pelos passos, perto, sentou-se bem mais próximo que o cano de escapamento.

Entraram no bairro de Marcos. Uma moça que talvez trabalhasse de frentista — sempre estava cheirando a gasolina misturado a um perfume forte —, desceu e segurou a mão de uma pessoa que estava atrás de um poste. Só deu para ver quando já estavam um pouco longe.

O cara estranho ficou de pé e, passando as mãos pelos encostos das cadeiras, foi até perto do motorista. Falou algo baixinho e voltou o olhar diretamente para Marcos. Continuava mastigando o chiclete, que não devia mais ter gosto de nada. Mantinha os olhos bem arregalados e distribuindo cheiro de cigarro por onde passava. Deteve-se na mesma fileira e sentou-se do outro lado. Olhando pelo canto do olho.

Ainda faltavam seis paradas. Será que ele mora no mesmo bairro? E… se ele descer no mesmo lugar? Enxugou as mãos na calça. Esse pensamento foi empurrado para o lado quando o perfume da ruiva de olhos puxados lhe disse “Oi”. Ela deu-lhe um sorriso e desejou boa noite. O bobão só respondeu com um aceno de cabeça e a cara de não sei o que fazer. Ela desceu na rua da mercearia O Jonas. O motorista parava na esquina, sempre que o senhor de bem mais idade e vestindo sempre a mesma camiseta de time não estava aguardando-a numa moto.

Marcos deu uma olhada por cima do ombro. Só mais duas pessoas e esse cara estranho. 'Ele' estava olhando na sua direção. Fechou a cara. Mais cinco paradas. E se ele descer na mesma? Essa hora não tem ninguém na rua.

Quando o ônibus dobrou na Rua Jovita Selma, Marcos levantou-se deu sinal. O motorista, que fez a curva bem lenta, terminou e parou o veículo, exatamente na parada. Desceu e saiu sentido contrário à sua casa. E não viu quando o 'ele' meteu a cabeça para fora e cuspiu o chiclete.

A passos largos, dobrou esquina após esquina, aquela hora, populadas apenas por ventos barulhentos demais.

Aumentou a caminhada em 10 minutos e umas gotas de suor. Melhor que correr o risco daquele doido descer na mesma parada.

Marcos virou a esquina da rua Dom Alberto, olhando diretamente para a casa 246. Sua casa era no meio do quarteirão, uns duzentos metros a frente. Mais rápido! Enfiou as mão no bolso esquerdo... nada; no direito... nada. Vê se ele não tá seguindo. Não!

Cadêeeee?

Ninguém na rua. Pelo menos, há vista não tem ninguém. Estava quase correndo e nada de encontrar a porcaria da chave do portão. Chegou em frente a casa. Enxugou o suor com as costas da mão. Sacolejava tudo dentro da mochila, que avisava estar guardando a chave da liberdade. Despejou tudo ali, segurou os papéis com os pés… Enfim!

Segurou-a firme e soltou um ar de vitória. Jogou tudo que caíra para dentro da mochila e a pôs nas costas. Deu uma olhada em volta. Ninguém vindo em nenhuma direção. E… naquela sombra, bem ali atrás? Será mesmo que não tem ninguém? Engoliu algo seco demais para uma garganta nervosa.

Travou a chave, que não chegou a abrir o cadeado, quando um arrastar de pés se aproximou, avisando que ele não estava só. Marcos apertou a chave dentro da mão engordurada e cerrou os dentes.

— Tem um cigarro aí, amigo?

— Eu... é... não fumo, não. - disse Marcos, sem saber se era isso mesmo que queria dizer.

Marcos sabia que ele estava com aquele sorrisinho safado, esperando que ele se virasse para fazer qualquer coisa.

Abre o portão e entra. 'Ele' não vai entrar. E se isso acontecer, tem aquela "surpresinha" logo atrás da porta. Deixa ele se meter a besta.

Um farol alto virou a esquina, cinco quarteirões adiante, conduzido por uma silhueta grande, ou duas…

— Abre ai, mano, tem dois caras vindo numa moto. Rápido, vai.

Num movimento rápido, as chaves que foram direcionados ao cadeado passaram direto e escaparam da mão engordurada de Marcos. Tentou pegá-la; mal passou o antebraço gordinho.

— Vai cara, eles vão pegar a gente, pow!

— As chaves caíram, eu não consigo pegar — disse Marcos, de joelhos.

— Sai! — disse o cara estranho, olhando nervosamente o farol a três quadras dali.

Empurrou Marcos para o lado e meteu o braço que foi bem longe, ao alcance da salvação. — Qual é a chave?

— Me da aqui.

— Vai, vai, vai…

Marcos abriu o cadeado e o portão, o suficiente para só se esgueirar para dentro.

— Deixa eu entrar, pow! Eles vão me pegar.

Marcos, ventilando como um asmático em crise, meneou a cabeça.

Trancou o cadeado e se escondeu nas sombras, de cócoras, agarrando a mochila. O cara estranho saiu correndo e atravessou a rua, tentando se esconder embaixo da árvore que fora seu abrigo momentos antes.

De olhos fechados, ouviu o som da borracha arrastando no asfalto.

— Me dá um cigarro aí.

— Tem não, cara. Tô atrás de comprar.

— Pois me dá o dinheiro que tu tem aí.

— É só dois reais.

— Um bora logo, mermão. Bora! Bora! Bora!

Um silêncio e som de algo de plástico e ferro batendo chão. Cheiro de gasolina libertando-se da prisão metálica.

Pow! Pow! Pow!

— Bora, mermão! Sobe, sobe, soooooobe!

O motor de dois cilindros rasgando a noite, deixando um rastro de cheiro de combustível no ar; um corpo caído e o cheiro de pólvora queimada inundando aquela triste rua.

Marcos, sentado no piso frio, tapando os ouvidos com a mãos suadas, só conseguia pensar na sorte que teve. Tirou o celular de dentro da cueca e acionou o teclado virtual; apertou três números.

— Polícia, boa noite! Em que posso lhe ajudar?

— M-moça, é... bem, é porque teve uns tiros aqui em frente minha casa.