Hoje acordei um pouco mais cansado do que de costume. Levantei da cama um pouco tonto e um pouco mais desanimado do que ontem. O estresse do trabalho e de tudo que vem acontecendo comigo está me deixando assim: um pouco mais velho e desanimado a cada dia. Desde que comecei a trabalhar nesse lugar tudo na minha vida parece ter ido por água abaixo. Parece que uma nuvem de azar pairou sobre a minha cabeça, e a cada pancada de chuva é um acontecimento indesejado. 

     Lavei o rosto, fiquei encarando o meu reflexo no espelho como faço todos os dias, a cada vez que passo por um, e fiquei tentando entender o que me tornei e se de fato sou eu mesmo que estou ali. Seguindo a rotina, o horário já estava bem apertado, e tive que comer apressadamente para não perder o transporte. Essa é outra coisa que está me incomodando, pois percebo que minha mãe fica preocupada, sem saber porque pareço despreocupado com a vida assim. Mal sabe ela que nem eu mesmo sei porque faço isso.

     Saí correndo de casa e por sorte consegui alcançar o ônibus na hora. A cara das pessoas não esconde os pensamentos delas. Cada rosto me mostra uma mensagem de desprezo, quase dizendo algo como: " O que será que esse fracassado faz para se atrasar todos os dias?". Quando o ônibus chega no ponto onde devo desembarcar eu já fico preparado para mais uma corrida contra o tempo, pois já estou quase atrasado para o trabalho. Ao chegar lá, realizo a minha rotina diária até chegar o horário de descer ao depósito, onde realizo algumas funções de expedição de mercadorias.

     O lugar é amplo, fica no porão do prédio, abaixo do solo, o que faz com que o lugar tenha uma umidade característica e um ar fresco durante a manhã e até a tarde, enquanto o sol não atinge as paredes pela parte da frente, onde são livres da terra pelo lado de fora. O porão tem dois andares, sendo o segundo um pouco mais iluminado que o primeiro, pois fica mais alto e o sol ilumina pelas janelas frontais que não ficam escondidas.
 
​​​​ O acesso entre os andares é feito por uma escadaria, um pouco sombria, pois a parede lateral que acompanha a descida é construída com pedras, igual os porões de construções antigas, justamente para manter o lugar úmido. Em algumas frestas corre um fio de água lentamente, que provavelmente fica acumulada em bolsões subterrâneos. Eu fico a tarde toda organizando caixas, contando mercadorias, recebendo e despachando produtos. É um trabalho tranquilo, não exige muito, mas se torna um pouco solitário na maior parte do tempo justamente por isso, é tranquilo demais. 

     No inverno passado começou a surgir um acumulo de água no meio do piso do primeiro andar do depósito. A água raramente diminuia, não importa o quanto tentasse secar ou desviar ela para fora. Nos dias de calor diminuia um pouco, mas mesmo assim sempre existia uma poça enorme de água no chão. Aquilo começou a me irritar, pois perdia mais tempo trabalhando nessa infiltração do que nas minhas atividades mesmo. Depósitos já não são lugares muito convidativos normalmente, com umidade, penumbra e vazamento de água isso só piora. 

     Hoje é dia 8 de Março, ainda falta muito para o inverno, mas a umidade e a água não param de aumentar aqui no depósito. Descobri uma forma de corrigir a infiltração de água. Criei uma espécie de valeta rente a parede, onde a água escorre e já volta para uma abertura que encontrei no mesmo lado, mas parece ir para baixo, mas ainda não eliminei totalmente o problema, terei que acompanhar durante a semana para ver se isso irá resolver o problema. 

     Mas a água não é a única coisa que me incomoda aqui. Desde que comecei nesse emprego, todos os dias ouço barulhos estranhos e irritantes nas fileiras de caixas. As vezes é o vento que entra pelas portas, as vezes acredito que sejam ratos ou pássaros que passam pelas frestas das janelas emperradas. Mas nunca vi realmente o que causa os ruídos. Ontem mesmo, ao descer pelo acesso do segundo piso, por baixo da escada escutei um som tipo um escorregar de algo, ou algo se arrastando. Desci e dei uma olhada ali, mas não tinha nada, só umas marcas de algo que foi arrastado. Confesso que isso me causou calafrios, pois o ambiente já é misterioso por si só, e com essa situação ficou tudo bem pior. Hoje vou tentar encontrar a origem desses ruídos.

     Avisei para meus colegas para que não me incomodassem durante a tarde, porque iria ter muito trabalho. Vou descer e tentar descobrir de uma vez por todas a origem dessas incomodações.

     Chegando no depósito, me deparo com um zunido alto, parecido com o som de um balão esvaziando. Andei pelo porão para tentar encontrar o local de onde vinha o som, e ao chegar próximo da parede onde havia feito a valeta, notei que a água estava praticamente correndo livre e não mais só fluindo levemente. A abertura por onde antes ela saia agora estava maior. Antes era do tamanho de uma bala, agora estava do tamanho de uma laranja. A água corria tão forte que gerava aquele ruído. A abertura no chão que recolhia a água aumentou. O buraco aumentou e engoliu uns 40 cm do piso de concreto do porão. A água que caía ali sumia, não criava poças. Isso me assustou. Que tamanho teria aquele buraco? 

Corri para tentar encontrar algo que estancasse o fluxo de água vindo da parede, mas ao virar para trás, a penumbra havia tomado todo o lugar. Literalmente, eu não vi mais nada. Eu sabia que havia sol lá fora, mas mesmo assim, onde antes havia janelas, agora não se distinguia em nada da completa escuridão. Parei quando bati o rosto em um dos pilares do porão, e tentei ficar ali, pois pelo menos sabia que era seguro. 

     Depois de ter esperado uns cinco minutos e ter notado que a escuridão não se dissipou, o desespero começou a tomar conta de mim. Sentei junto ao pilar e comecei a pensar um pouco na situação em que me encontrava.

Meu pai havia morrido recentemente, uma sucessão de casos tristes parecia me cercar, meus estudos pareciam não me levar a lugar algum e o trabalho também me fazia sentir estagnado e no caminho errado. Resumindo, parecia que aquela escuridão era o reflexo do que havia em minha cabeça. De repente, um pouco a minha frente, ouvi um barulho. Passos. Acelerando. Agora era uma corrida. Meu coração começou a bater rápido e tentei me atirar para o lado assim que senti alguma coisa atirando-se para cima de mim. Escapei e corri para a frente, mas me enganei feio, pois ainda era o mesmo lado de onde havia vindo os sons. Meu pé esquerdo tropeçou no buraco que a água havia aberto no chão. Caí para frente, mas isso me deixou tomado do mais puro terror, pois o buraco havia aumentado o suficiente para que eu coubesse dentro por completo. Fiquei entalado na altura dos ombros, mas pude perceber que as minhas pernas não haviam alcançado um chão e nem batiam nas laterais. Ouvi uma respiração e uma espécie de grunhido acima da minha cabeça, e depois de ouvir um movimento no ar, senti um empurrão na cabeça. Algo estava me empurrando para baixo. Senti meus ombros arranharem e então, após uns instantes, finalmente caí pelo buraco. 

     Acho que quando caí bati a cabeça, pois abri os olhos e pareceu que havia dormido um dia inteiro. A escuridão ainda tomava conta de tudo ao meu redor, exceto por um brilho fraco que vinha de algo que estava bem na minha frente. Parecia uma pequena cachoeira. Era a água que saía da parede do porão. Abaixo de onde corria a água eu pude sentir um barulho como se houvesse algo sugando ela embaixo. Me encolhi contra a terra, pois ainda não via nada além do brilho.

Comecei a ouvir um som de terra escorregando, e subitamente um impacto logo a minha frente. Senti como se alguém estivesse me encarando, tentando ver o que estava a sua frente. Tentei gritar, mas parecia que estava preso em uma sala antiruído. Foi quando eu me recolhi novamente contra a terra e talvez meus olhos tenham se acostumado a escuridão um pouco mais que eu tive um vislumbre da criatura a minha frente. A água começou a fluir mais, e o brilho aumentou dentro da cova.

Pude ver que era da minha altura, o cabelo era idêntico ao meu, tudo era igual, mas andava um pouco curvado e tinha a pele escura, como se fosse um clone meu feito de sombras. Infelizmente, também tive um vislumbre do que estava abaixo da água corrente. Parecia uma abertura na rocha, do tamanho de um carro comum, com o que pareciam estacas nas laterais e duas aberturas pulsantes logo acima. Abaixo dos meus pés eu sentia uma espécie de tremor leve, que parecia sair das profundezas do universo. Então me sentei novamente e esperei qualquer destino que a existência houvesse me reservado. 

     Hoje é dia 9 de Março, o dia está ótimo aqui. Saí daquele buraco no final da tarde. Ah, o ar puro é excelente. Me sinto diferente depois do acidente no porão. Não sei como consegui sair de lá sem ajuda, mas não importa. De manhã minha mãe disse que eu pareço mais bronzeado, achei engraçado pois faz uma década que não vou a praia e não costumo ficar no sol. Parece que hoje todos estão tão estranhos quanto eu estava ontem. Todo mundo diz que está sentindo uns tremores estranhos no prédio, como se viessem de alguma explosão bem distante. Eu me sinto bem como não sentia a muito tempo. Acho que minha loucura passou adiante finalmente. 
Luan T Mussoi
Enviado por Luan T Mussoi em 20/01/2020
Reeditado em 11/08/2020
Código do texto: T6846366
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