O FUNCIONÁRIO FANTASMA!!!!
Uma manhã fria de agosto. As vidraças embaçadas. A neblina lembrava as ruas de Londres. O despertador tocou. Theodoro se levantou. Usava o mesmo creme dental há décadas. Um banho antes do café. Porcelana chinesa, herança da mãe. Os móveis antigos. Tevê preto e branco. Cortinas pesadas. Theodoro vestiu o terno preto. Calça social bem passada. Gravata impecável. Sapatos brilhantes, engraxados diariamente. Perfume de lavanda, o preferido do motorista. O quepe com o emblema da tecelagem Meducci, em Americana, conhecida como a Princesa Tecelã. Theodoro trabalhava há três décadas alí. Ele morava a oito quadras da fábrica. Isso permitia a ele caminhar pelas alamedas. Cumprimentava as pessoas e passava na padaria Aliança. O patrão adorava pão de queijo. Era um mimo para o gordo Osvaldo Meducci, fundador e dono da tecelagem. Theodoro não tinha atrasos, faltas ou afastamento em seus anos de trabalho. Era o primeiro funcionário. Trabalhava com afinco e vitalidade nunca vistos. Pau pra toda obra. Não tirava férias. -" Férias pra quê?!!!! Sou sozinho, não viajo!! Minha vida é a tecelagem!!!!" Durante uma greve, nos anos oitenta, foi o único a entrar na fábrica. Saiu no tapa combos líderes grevistas. Tanta dedicação lhe rendeu um aumento de salário. Theodoro, o faxineiro, era agora fiandeiro. Em pouco tempo era o tecelão e chefe da seção. Theodoro se ofereceu pra auxiliar os motoristas da tecelagem nas entregas de tecidos. Viajava sempre pra capital paulista. O patrão lhe presenteou com o pagamento da habilitação. Theodoro era um motorista exemplar. Seu caminhão era o mais econômico e o mais limpo. Theodoro foi promovido a chefe da frota. A tecelagem crescia. Os barracões aumentaram de tamanho. Um banco interno. Ônibus para o transporte de funcionários. Um belo refeitório para os duzentos funcionários. Tecidos exportados. Logotipo moderno da tecelagem. Uniformes bonitos. Theodoro sentia orgulho do crescimento da tecelagem. Ele cobria faltas de funcionários, porteiros e ajudantes. Era um funcionário exemplar. Passava o dia todo na fábrica. Todos o conheciam. Ele conhecia tudo alí. Se via um toco de cigarro no chão da fábrica, apanhava e jogava no lixo. A tecelagem presenteava os funcionários com grandes festas de natal. A primeira cesta era do Theodoro,bom funcionário número um. Theodoro ouviu o patrão comentar que precisava de um jardineiro. Seu jardim tinha muita tiririca. Mato alto. -" Eu sou jardineiro, seu Osvaldo!!!! Posso resolver isso!!!" Cuidar do jardim da mansão do patrão permitiu a Theodoro conhecer dona Wilma e as dias filhas do casal Meducci. Theodoro cuidou do jardim e construiu uma casinha para o cãozinho das garotas. Tanta dedicação lhe rendeu o convite pra ser o motorista da rica família. Theodoro aceitou de imediato. Era mais que um motorista. Theodoro fazia consertos, levava as crianças a escola e até auxiliava a cozinheira. Aprendeu a jogar golfe e xadrez pra acompanhar o patrão. Lia o jornal diariamente pra se manter informado. Durante as viagens, conversava com o patrão sobre a alta do dólar, os tecidos e cores da moda, inflação, política, esportes e novelas. Tudo que agradava ao patrão. Theodoro, que era santista, por causa do Pelé, virou a casaca e acompanhava o patrão nos jogos do Palmeiras. Eles passavam horas jogando carteado e tomando vinho. Theodoro acompanhou a família nas viagens para o Chile, México e Europa. Era parte da família. O tempo passou. Theodoro viu as filhas do patrão crescerem. Estava presente no casamento da mais velha, Camila. A mais nova, Danielle, estudava nos Estados Unidos. -" Essa feijoada está uma merda!!! Caldo ralo e pobre de carnes!!!!" Comentou um funcionário da tecelagem, no restaurante. Theodoro partiu pra cima do rapaz. Uma chave de braço. O rapaz sem poder respirar. Theodoro estava vermelho de raiva. -" Que pecado, fedelho!! O bom senhor Osvaldo nos abençoa com emprego e alimento!!! Milhões de desempregados queriam seu lugar, essa feijoada saborosa!!!!" O chefe de cozinha e os guardas tiraram o motorista de cima do rapaz. Theodoro fazia academia. Tinha cursos de segurança e de tiro. Era bombeiro voluntário. Um homem muito forte e disciplinado. -" Puxa saco. Imbecil." Gritava o rapazote. Theodoro era muito influente. O rapaz foi demitido. A investida dos tecidos chineses, baratinhos, foi um duro golpe para o coração do velho Osvaldo. Outras tecelagens da cidade fecharam as portas. Demissão em massa. Theodoro encontrou o patrão caído no escritório. O cardiologista do empresário, Márcio Kodani, chegou em pouco tempo. Não tinha o que fazer. O empresário partira dessa pra melhor. O mundo caiu pra família e pra Theodoro. O homem, agora aposentado, era a tristeza em forma de gente. Perdeu a alegria e o entusiasmo. Valdemar, esposo de Camila, assumiu a presidência. Demitiu setenta por cento dos funcionários. Cortou investimentos. A loja, no calçadão do centro da cidade, foi vendida pra quitar dívidas. Um incêndio no departamento pessoal da tecelagem piorou a situação. A família vendeu a mansão e teares pra quitar dívidas trabalhistas. Theodoro passava horas no mausoléu da família, no cemitério da Saudade, chorando no túmulo do antigo patrão. A tecelagem fechou as portas. Valdemar levou a família para os Estados Unidos. Viveriam com Danielle, em Orlando. Theodoro viu, melancólico, o salão principal da tecelagem virar uma igreja evangélica. O antigo refeitório e o estacionamento eram agora um supermercado. Há quinze anos Theodoro recebera a última carta de Danielle, falando da chegada dos gêmeos. Ele ganhou a rua. Passou na padaria e pediu quatro pães de queijo. O saco de papel. O pão de queijo quentinho e cheiroso. Cumprimentou o porteiro Leandro. Passou o crachá no relógio de ponto. Os ônibus chegaram. Os funcionários alegres. O barulho dos teares eram como música aos seus ouvidos. O sol raiando. -" Bom dia, patrão. Um abençoado dia!!!" Pôs o saquinho de pão de queijo na mesa do escritório. Os frequentadores da igreja sentiam um leve arrepio no início dos cultos. Eles não viam o espírito do velho Theodoro, morto há seis meses, admirando os teares. Morreu naturalmente, com setenta e sete anos, sobre o túmulo do antigo patrão. Todos os dias ele faz o trajeto de sua casa até a tecelagem. Um homem alto, de quepe e impecavelmente vestido. Um funcionário exemplar. Um verdadeiro funcionário fantasma. FIM