OS BOMBEIROS NEGARAM SOCORRO

O baile rolava solto nas ruas de Paraisópolis, a maior parte da galera naquela idade em que o mundo se resume a sofrer com as matérias na escola e festar com os amigos no final de semana. Vitória e Bruno, um casal de moradores do local é claro não deixaram de comparecer ao 'rolê'. O funk tocava alto e a bebida dava o tom da curtição da noite. Haviam ali pais de família também, daquele tipo que não abdicam mesmo depois de casados de curtir uma boa farra sem maldade, só para extravasar. Resumindo uma festa comum onde pessoas se reúnem para esquecer dos problemas, quebrar a rotina medonha que tanto nos tortura, conversar, rir, cantar.

Em certa altura da festa a polícia chegou, Vitória estava com Bruno fumando um cigarro na esquina da rua onde rolava a festa e viram os camburões virar na esquina de cima, alguns abutres nas janela com metade do corpo para fora exibiam fuzis como alguém que levanta um troféu. Uns vinte metros antes um deles lançou uma "bomba de efeito moral" na direção do casal, Vitória viu o explosivo cair e quicar no chão antes de explodir, daí em diante o que se passou não se compara nem de longe a mas cruel e vil história de terror. Ela não entendeu o porquê daquilo mas logo deixou essa reflexão de lado, os estilhaços da explosão cortaram fundo sua canela esquerda e quando olhou para o lado Bruno estava com um fragmento da bomba enfiado no olho gritando e se contorcendo na possa de sangue que se formava no chão, não soube mais o que fazer. Os camburões chegaram rápido e lançaram mais duas, três bombas, o baile então se transformou numa turba de gente desesperada correndo sem rumo, sem saber nem o porquê.

Os demônios fardados contentes com baque inicial, começaram a efetuar disparos na direção da massa de pessoas correndo, uns riam, outros comemoravam com gritos quando um atingido caia no chão. Vitória na esquina decidiu ligar ao SAMU, talvez sua única esperança já que a polícia estava ensandecida sacrifícando pobres como num ritual louco de satanismo. Não conseguia se lembra do número, Bruno gritava e jorrava sangue, ela própria sangrava muito, seu olhar não conseguia manter-se na tela do celular, o cenário dantesco a arrepiava, viu colegas seus de escola correrem aos prantos perseguidos por abutres de farda, garotas serem empurradas para becos por dois, três patifes protegidos sob o brasão da polícia. Não conseguia conjecturar um pensamento que entendesse aquilo, era animalesco. Lembrou o tal número e discou para a morte. Gritando ela falou,

- PRECISO DE ALGUÉM AQUI PELO AMOR DE DEUS, A POLÍCIA EXPLODIU O OLHO DO MEU NAMORADO, TEM GENTE CAÍDA NO CHÃO DESMAIADA, SANGRANDO, ELES NÃO FORAM EMBORA AINDA E ACHO QUE COMEÇARAM A ESTUPRAR AS GAROTAS, POR FAVOR VEM ALGUÉM AQUI URGENTE.

Ela recebeu uma pancada seca no braço e viu que fora um dos abutres, com um cassetete, agachou em desespero e temeu pelo pior, ela já estava bem pálida e ensanguentada, o monstro teve alguma pena e a deixou, ou talvez tenha pensado que ela morreria logo.

Na central, o atendente que recebeu a ligação, transferiu com alerta de urgência o pedido para outra viatura do SAMU, estes por sua vez, classificaram a chamada como de alta emergência e a transferiram para uma terceira unidade, dez minutos depois um soldado do corpo de bombeiros cancelou a chamada alegando que os PMs já tinha atendido o pedido.

Durante os minutos em que esperava o socorro, Vitoria arrastou Bruno já desmaido para um canto mais afastado do fluxo de desespero. Começou a sentir a dor do corte que havia sofrido na perna. Tremia enquanto o ferimento latejava, cansada, apavorava e ansiosa viu os policiais irem embora e o socorro não chegar. Não havia a quem recorrer. Cogitou se não era melhor que morresse, pois não era condizente com vida o que já havia passa ali em Paraisópolis e o que aquela noite tinha lhe deixado bem claro.

"Um soldado do Corpo de Bombeiros cancelou o único pedido de socorro feito ao Serviço de Atendimento Móvel de Emergência (Samu) durante a ação policial que acabou com nove mortes durante um baile funk em Paraisópolis, na Zona Sul de São Paulo. De acordo com o SP1, da Globo, o cancelamento teria acontecido após o bombeiro dizer que a Polícia Militar já havia socorrido as vítimas."

(Do UOL, em São Paulo, 03/12/2019 13h39)

Eu tento, mas quando o quesito é crueldade os padrões que a realidade atinge são inalcançáveis, a vida por aqui é mais banal que em qualquer obra de horror que esse humilde narrador possa construir.

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