A lenda
Há quinze dias, Dona Maria, conhecida Santinha, rezava e jejuava na igreja. Estava empenhada em uma cruzada contra o mal que se abateu a sua cidade.
Dr. Júlio, o delegado, também se empenhava na mesma causa só que com métodos diferentes.
O fato era que nos últimos dias três crianças foram raptadas e apenas as ossadas foram encontradas. Segundo o legista, pelo estado limpo dos ossos, foram devoradas por algum animal que não saberia dizer qual.
A cidade virou de pernas pro ar. Cada um tinha sua teoria. De lobisomem a alienígenas. Até que a rádio local resolveu saber a opinião de Tia Nita, respeitada curandeira e conhecedora dos mistérios do além.
A jovem repórter encontrou a idosa sentada em uma cadeira em frente a sua casa. Ao vivo, não podia perder tempo, foi logo indagando-a sobre os acontecimentos.
Com os olhos embaçados pela catarata, a velha senhora do alto de seus 91 anos, respondeu: “Foi a Mulher Jacaré”. Fez uma pausa e seguiu: “Ela está de volta depois de muito tempo e está com muita fome. Costuma pegar um anjinho, mata a fome e some por anos.”
A entrevista termina. Tia Nita tem uma crise de choro e é levada pela filha para dentro da casa. A repórter deixou o local sem entender o que houve com a idosa. Os mais velhos que ouviam a rádio sabiam muito bem.
Segundo se conta, teve sua filha mais nova levada do berço. A ossada foi encontrada dias depois lá pros lados do brejo. Na época, a polícia sem recursos, após rápida investigação, atribuiu a causa da morte a um ataque de onça e encerrou o caso.
O depoimento de Tia Nita alegando ter visto a criatura com corpo de mulher e cabeça de jacaré saindo de sua casa com a criança nos braços foi descartado.
Depois da entrevista a cidade enlouqueceu. Metade queria pegar em armas e caçar a criatura, a outra parte correu para a igreja a fim de se juntar com Santinha em jejum e orações.
Com o passar dos dias o caos se instalou na cidade. Na igreja, as mulheres começaram a passar mal devido à falta de água e alimentação. A única que parecia não fraquejar era Dona Maria, idosa que dizia ser alimentada por Deus.
Vendo que a situação estava no limite, Padre Durval resolveu interferir e expulsou todas da igreja alegando que Deus não queria o sacrifício de nenhuma delas. Santinha tentou resistir mas as companheiras estavam muito debilitadas para lutar e assim todas voltaram as suas casas.
E, como as coisas sempre podem piorar, foi numa noite chuvosa que toda cidade foi acordada pelos gritos de Íris, a dona da venda.
Dr. Júlio estava na delegacia e foi o primeiro a chegar. Encontrou-a desesperada. Implorava que fosse atrás do demônio que acabara de levar sua bebê. Ele tentou acalmar a mulher, tirá-la da chuva mas não conseguiu. Se deu conta que toda a cidade estava à sua volta. Vendo homens fortemente armados percebeu que ele e seus três auxiliares não poderiam fazer mais nada.
A trilha que levava ao rio não era longa mas com a chuva tornou-se um lamaçal. Há poucos metros do fim da trilha os homens avistaram o monstro com a bebê nos braços.
A criatura percebeu a aproximação, colocou a criança no chão e virou-se pronta para enfrentar seus inimigos.
Quando se viram frente ao monstro os homens apavorados hesitaram. Quase todos.
Sô Deda, respirou fundo, fez a mira e todos viram os miolos da besta saltarem. A criatura cambaleou e caiu no rio.
Quando voltaram a praça com a bebê, foram recebidos como heróis e passaram horas sob a chuva mentindo sobre a terrível luta que travaram com a Mulher Jacaré.
Dr. Júlio, vendo a reação da população, resolveu não questionar. Fosse quem fosse o sequestrador teve o que merecia. E deu o caso por encerrado.
Com o tempo tudo voltou ao normal. Quase tudo.
Até hoje ninguém consegue explicar o sumiço de Santinha, que desapareceu naquela noite deixando tudo para trás, inclusive as roupas do corpo.