A Vingança dos Canibais
Trouxeram o prisioneiro destinado a se transformar em churrasco pela tribo dos canibais. Juarez fora pego a exatas setenta e duas horas, ocasião em que o sol a pino facilitara a sua descoberta acampado entre os rochedos. Chegara com mais quatro aventureiros em busca do metal precioso.
Deixaram para trás a clareira formada pelas constantes explosões de dinamite. Como consolo para a empreitada conseguiram algumas pedras raras e valiosas que os não deixariam milionários, mas que renderiam a eles e as suas famílias o suficiente para alguns anos de fartura e comodidade.
Quando penetraram mata adentro, a ânsia de alcançarem o ponto que lhes indicava o mapa impedira-os de se precaverem contra prováveis perigos. Caminhavam feito feras em busca da sua presa. A mata fechada dificultava a marcha e a cada passo do caminho deparavam com um obstáculo. Gonzalez era, de todos, o mais experiente e precavido.
– Precisamos abandonar esta trilha. Gorilas traiçoeiros andam por este lado – disse, fazendo interromper a caminhada os que vinham atrás dele. Era o que mais desejavam após hora e meia de marcha ininterrupta. Sentaram-se todos. Gonzalez sacou do bolso trazeiro de sua bermuda uma folha de papel dobrada em quatro e abriu-a entre as pernas sobre a terra um tanto úmida. Tateou o bolso procurando uma caneta. Não encontrando, pegou do chão um pequeno graveto e começou a falar, sinalizando o mapa.
– Temos um bom trecho de mata pela frente até alcançarmos o primeiro descampado. Vai ser preciso atravessá-lo sem perda de tempo e em segurança; poucas horas nos restam antes do anoitecer.
Caminharam mais uma hora e não puderam, então, continuar. A noite caíra sobre eles. Viera com rapidez, muito mais do que haviam programado. Impossibilitados de seguir viagem, decidiram pernoitar ali mesmo. Infelizmente, para o grupo, dois tombaram atravessados pelas lanças certeiras dos nativos no exato momento em que se preparavam para dormir. Conseguiram, todavia, espantá-los com armas de fogo, deixando três mortos e ferindo um quarto, de quem fizeram prisioneiro.
Gonzalez, além de Carlos e Juarez, precisavam agora redobrar em atenção e cuidados. Qualquer movimento da mata, qualquer barulho a mais, interrompia-lhes a ronda e o sossego. Antes do romper da aurora, entretanto, Juarez foi até o selvagem que, sentado, com as pernas esticadas, mantinha pendente a cabeça e o corpo imóvel.
As mãos, para trás, estavam firmemente amarradas a um tronco. Juarez, com golpes de faca, decepou em pedaços a corda e libertou o sujeito. Este, arregalando os olhos, encarou o metal que brilhava na mão de Juarez. Ato contínuo, ergueu-se e começou a correr. Vinte metros à frente, porém, caiu sem vida. Tinha nas costas, precisa e profundamente cravada, a arma que o derrubara.
– Considerem-se vingados, amigos – sussurrou Juarez estas palavras, carregadas de ódio, enquanto limpava em uma moita, o sangue de sua faca.
– Hora de seguir em frente – disse, sacudindo com o pé os companheiros que dormiam. Carlos virou-se no saco de dormir e continuou ressonando. Gonzalez, porém, ao abrir os olhos e perceber a ausência do prisioneiro, ergueu-se de um salto, vociferando.
– O que fez, idiota? – Percebendo o cadáver à distância, não conteve a ira. – Porque só comete asneiras? Acaba de jogar fora o trunfo para chegarmos com segurança onde queremos. Ele iria nos ensinar o caminho em troca da sua liberdade. Agora teremos que arcar com as conseqüências da sua precipitação.
Durante horas caminharam, o fantasma da morte acompanhando-os a cada passo que empreendiam. Deixaram a mata fechada e penetraram em campo aberto predominado por arbustos e moitas que cresciam entre as rochas. O ar mais ameno e menos úmido emprestara-lhes novo ânimo. A transformação repentina do ambiente colocou na fisionomia de Gonzalez sinais visíveis de animação.
Ele tirou novamente do bolso traseiro o mapa e examinou-o, comentando com os outros: – Se estiver certa a minha intuição, pouco mais de duas horas nos separam do local que desejamos. – A media que avançavam, sentiam com mais vigor a brisa que vinha ao encontro deles. E, como para corroborar esta relação, numa das curvas do terreno, surge-lhes, manso e caudaloso, um rio.
Só não foram maiores o regozijo que sentiram e a festa que fizeram por virem empanados pela tristeza que foi a morte recente dos companheiros de aventura. Contudo, aproveitaram o que puderam da aparição enormemente bem vinda. Banharam-se e saciaram a sede, provendo-se à vontade. Seguindo agora o curso d’água, alcançaram enorme planície e ali se instalaram.
– Segundo meus cálculos, estão a menos de duas horas daqui – disse Gonzalez, soltando no chão sua mochila. – Não via a hora de desfazer-me desta carga – completou.
– É este o lugar exato do encontro? – Foi a pergunta de Juarez, sentando-se ao lado do companheiro.
– Estou certo que sim. Se cumpriram o combinado, em uma hora e quarenta, para ser exato, aparecerão ali – apontou para uma curva, surgida por trás de um penhasco, numa distância considerável, onde a visão do rio desaparecia, substituída por duas montanhas rochosas e escarpadas.
– Espero que estejam devidamente equipados conforme o combinado. Quanto ao Juan, conheço sua competência. Sempre fui simpático as suas estratégias. Mas, quem é o outro?
– Fernandez. Não há melhor dinamiteiro em toda Colômbia. Pertenceu à quadrilha de Pablo Escobar. Esteve enjaulado desde a morte do traficante. Conseguiu, há um ano, uma condicional. Melhor que converse sobre qualquer assunto com ele, menos esta parte negra do seu passado. È um conselho de amigo, pois anda um tanto neurótico ultimamente.
– Já sei de quem se trata. Li sobre ele nos jornais. E tem homicídios nas costas. Não é perigoso? Há quanto tempo o conhece?
– Somos velhos amigos. Uma coisa eu reconheço nele: o homem sabe valorizar uma amizade. Não deverá ser difícil para você se dar bem com ele. Contudo, previno-o: não toque em suas feridas.
– Vou me lembrar disto.
– Hei! Não durma agora, temos trabalho pela
frente – disse Gonzáles, sacudindo o corpo de Carlos, totalmente esgotado, esparramado sobre a grama.
Armaram a barraca e cearam. Tinham ali as condições ideais para desenvolverem o trabalho de extração da mina. À frente estava a montanha, abandonada, após dados por encerrados os trabalhos da companhia que ali estivera. Com a chegada de Fernandez e Juan o grupo estaria, embora incompleto, preparado para dar início aos trabalhos. Depois de finda a refeição, já mais descansados, porém, não menos ansiosos, entregaram-se os três a um carteado, envoltos pela fumaça dos cigarros e pela brisa refrescante do rio.
Chegaram, finalmente, os que faltavam. Juan foi o primeiro a descer da canoa, antes mesmo que esta parasse completamente. Enfiou os pés dentro d’água, não se importando em molhar as botas e as calças. Caminhou em direção à margem, tirando a camiseta e ajeitando a loira cabeleira. Eram nítidas, na pele muito branca, as marcas deixadas pela longa exposição ao sol. Fernandez, mais cauteloso, desceu em terra firme.
Era, de todos, o mais velho, sem demonstrar, porém, sinais evidentes de um quase sexagenário. A postura era firme, os gestos hábeis e muito poucos os cabelos grisalhos. Depôs ao chão uma pesada bolsa de couro e apertou as mãos dos companheiros.
– Folgo em vê-los, rapazes. Estou mais do que preparado para colocar abaixo estes morros. Não vejo os meninos, onde andam?
– Foram-se para nunca mais voltar, amigo. – Gonzalez relatou com detalhes o ocorrido, carregando as cores da tragédia com sentimentos de ódio e inconformismo.
– Aqueles selvagens desgraçados! Pegaram-nos de surpresa, mas não perdem por esperar. Vou acabar com todos nem que tenha que desperdiçar a última das minhas balas. – Cuspiu para o lado como a querer expelir o fel de um grande mal estar.
– Trataria de esquecer isto se fosse você, amigo
– disse Fernandez. Estamos lidando com seres
piores do que animais; são traiçoeiros e oportunistas. Não pensarão duas vezes se tiverem que nos cortar em pedacinhos e nos comer assados.
– Então, são canibais?
– Pelo que me contou e pela descrição que me fez, não tenho dúvidas, por isso precisamos nos acautelar. Tenho uma preocupação. Não posso prever os efeitos das explosões que causaremos. Olhe aquelas montanhas – apontou para além da curva do rio. Por trás delas existe a floresta. Quando me falou do ataque, calculei a distância entre as duas matas e o rio que passa entre elas. Não me arriscaria por nada a passar daquela curva para o outro lado através do rio.
– Então, existem afluentes?
– Um, pelo menos. Não sei o que seria se não tivesse estudado com cautela o mapa antes de partir. Talvez não chegasse até aqui.
– E quanto às explosões, acha que pode atraí-los o barulho?
– Ou, quem sabe, o contrário. Precisamos estar preparados em ambos os casos. Não sabemos o número deles. Pode ser insignificante, mas pode também chegar a centenas, não posso estimar. Nada garante que não busquem reforços em outras tribos ao verem ameaçado o seu território.
– Você acompanhou a investigação que culminou com o abandono da mina e a fuga dos trabalhadores. O que aconteceu?
– Foi uma verdadeira guerra entre índios e brancos. Eram em muito maior número os selvagens. Uma cavalaria militar chegou a tempo de evitar um massacre. Havia, neste dia, oitenta e cinco operários no local. As escavações estavam em ritmo acelerado. Houve oito mortes e não menos do que vinte saíram feridos, uma tragédia.
– E o que faz achar que teremos sucesso nessa louca aventura? – perguntou Gonzalez, um tanto inseguro.
– A cavalaria retornou outras vezes ao local com o único objetivo de dizimar os selvagens assassinos. Com efeito, muitos foram mortos e muito ficou sendo conhecido a respeito dos hábitos da tribo, ou das tribos, melhor dizendo. Há canibais entre eles, segundo relatos comprovadamente verídicos. A perseguição fez com que migrassem mata adentro, tornando quase impossível o contato.
– Mas não foi isso o que comprovamos na noite passada.
– Por isso mesmo digo que precisamos estar previdentes; agora mais do que nunca.
Fernandez sabia o que estava dizendo. Seu passado de aventuras era a sua maior convicção, tanto andara pelo mundo e tantas aventuras vivenciara. Para ele o perigo representava uma rotina.
A primeira noite transcorreu sem anormalidade, mas longe de ser confortável para Fernandez. O vento frio da primavera agitava as águas do rio e zunia na vegetação que ornava as margens e se estendia rasteira de encontro aos rochedos. Parece que a ansiedade pelo dia seguinte, que não chegava, dispersou o sono de Fernandez que, agitado, levantou-se para fumar. Ele deixou o interior da barraca e pôs-se a caminhar ao longo do rio. A escuridão era total e a brasa do cigarro que trazia entre os dedos era o único e solitário sinal de sua presença ali.
Devia ser pelas duas ou três da madrugada quando, um som, nítido, mas distante, chamou-lhe a atenção e o fez parar. O som era de voz humana a ecoar nas faldas dos montes; mais precisamente um grito, abafado, mas repleto de desespero. Fernandez apurou os ouvidos, ávido pela repetição, o que não aconteceu. Aquilo o assustou sobremaneira e o fez vacilar, duvidando da própria coragem, tão comum nos tempos idos de máfia e de mutretagem, pois, em vez de dar vazão a esta sua qualidade e ir aonde fosse preciso para averiguar o que poderia lhe tirar de vez o sono, não o fez. Ao entrar para a barraca viu que Gonzalez perdera, também, o sono; encontrou-o sentado no colchonete, pensativo.
– Vi e ouvi o que aconteceu lá fora. Seria bom se não nos arriscássemos a atravessar o rio. Não por enquanto, pelo menos.
– Está pensando o mesmo que eu?
– Certamente que sim. Deus tenha piedade da alma do coitado.
O dia amanheceu, iluminado por um sol fraco e vacilante. Todos se puseram de pé antes das oito horas e, perto das nove, já estavam preparados para dar inicio ao plano. Fernandez checou o material. Abriu as duas caixas que trouxera, contou as dinamites, verificou as cordas, os pinos e as ferramentas; tudo em ordem. Passou para uma bolsa de couro menor o detonador.
– Faremos uma inspeção minuciosa, começando pelo lado norte antes de iniciarmos o trabalho de colocação das dinamites. Preciso encontrar a entrada exata para a mina; não pretendo desperdiçar meu explosivo. O terreno está envolto pelo mato e o acesso não vai ser fácil.
– Vejo que passaremos a manhã inteira a capinar e remover entulhos – disse Gonzalez.
– De fato, precisaremos nos revezar. Três de nós começam o trabalho de limpeza, enquanto dois ficam para vigiar a barraca. À tarde, faremos a troca – orientou Fernandez.
– Combinado, fico por aqui com Carlos – falou Juarez
Os três guarneceram de armas suas cinturas e seguiram caminhando pela margem. Deveriam alcançar, a menos de uma milha, uma curva do rio onde, segundo o mapa, encontrariam uma ponte de madeira. Ao atravessá-la, teriam diante de si a colina, em torno da qual havia a mina abandonada. O faro de Fernandez conduziu-os sem dificuldades ao ponto certo. Quase tudo ali indicava sinal de interferência humana. A altura do matagal era menor. Desbastando um pouco a vegetação havia vestígios de lixo humano, muito deteriorados, mas possíveis de serem reconhecidos.
– Acho que é aqui – disse Fernandez, examinando um estranho objeto semelhante a um abridor de latas.
O sol já ia alto e os seus raios incidiam com rigor e intensidade. Os três homens estavam suados, menos pela caminhada à beira do rio do que pelo tempo ali parados e meio que indecisos.
– Só pode ser aqui. É onde se encontram os sinais mais evidentes – disse Fernandez, passando uma das mãos sobre a testa molhada.
– Não quer investigar com mais cautela? Quem sabe, não há outro local mais evidente? Se é que pretende economizar sua carga... – aconselhou Gonzales que, por ser bem mais jovem, sentia-se mais disposto.
– Não acredito. Minha intuição não costuma falhar. Sei que posso parecer um velho teimoso ou um idiota arriscando minha munição sem ir mais longe. Mas não tenho mais a sua idade para sair por aí circundando uma colina do porte desta aqui, moço. E, não me amole! O material é meu e vou usá-lo do meu jeito. Desculpe se estragar a sua festa, mas foi o que combinamos. Gonzalez não encontrou tréplica a altura. Apenas sorriu meio sem jeito. Por conhecer o outro, aceitou, não contrafeito, a admoestação.
– Vamos, então, pegar a canoa com o material e as ferramentas, não vejo a hora de fazer este achado.
Voltaram. E qual não foi a surpresa, ao fazerem a curva do rio.
– O que houve? Não vejo nossa barraca – assustou-se Juan, que caminhava um pouco mais à frente e foi o primeiro a perceber.
– Não vejo também a canoa – alertou Fernandez.
Apressaram um pouco mais o passo e foi novamente Juan, tomado por um novo susto, quem disse:
– Há um corpo na água, mas não consigo identificar devido à distância.
Imediatamente, tirou Gonzales de sua algibeira um par de binóculos e conseguiu reconhecer Carlos, cujo corpo, sem vida, boiava de bruços a balouçar no vaivém lento e horripilante do rio. Sem nada dizer, com uma expressão pesarosa, passou a Fernandez o binóculo.
– Maldito selvagem – resmungou.
Ao chegarem, ofegantes, constataram a morte terrível do companheiro. Tinha várias perfurações pelo corpo, feitas por faca. Fora ferido por golpes sucessivos, porém, marcas nos braços e no rosto, davam sinas de que enfrentara o inimigo antes de ser executado. Concluíram, por todas as evidências, que não foram os selvagens que o assassinaram. O sumiço da barraca e do barco, além do material, deixou claro que Juarez fizera aquilo. E de forma premeditada.
Por certo sabia de algo. Que todos desconheciam. Arrasados pela perda inesperada, cavaram, a metros dali, da maneira que puderam, a última morada do amigo traído. A terra fofa e aderente facilitou-lhes o trabalho. Que foi realizado com o auxílio de paus e o uso das próprias mãos. Improvisaram uma cruz e ali deixaram o amigo morto com sua última homenagem.
Afastaram-se tristes e cabisbaixos.
– O que vamos fazer? ¬– perguntou Gonzales.
– Quisera eu ter a resposta, companheiro. Mas, uma coisa eu posso te responder com convicção. Este canalha, trapaceiro e assassino vai ter o que merece – disse Fernandez.
– Isto, se conseguirmos encontrá-lo. Olha a nossa situação. E contra alguém que tem um barco em seu poder.
Começaram a caminhar, quando surgiu na mente de Fernandez uma idéia.
– Vamos retornar à montanha onde está a mina. Algo me diz que o miserável sabe melhor do que nós o local exato.
Deram meia volta a fim de retomarem o percurso que já haviam feito. Todavia, estavam esgotados e famintos. Ficaram por ali, sentados sob uma árvore do caminho, descansando, enquanto discutiam entre si meios de capturar Juarez. Não esperavam encontrar dificuldades, uma vez que eram três e estavam armados. Saciaram a fome com algumas fatias de presunto defumado que, por precaução, Fernandez costumava trazer sempre consigo.
A grande realidade é que Juarez caíra nas mãos dos terríveis canibais. Quanto ao assassinato de Carlos, o roubo do barco e dos apetrechos, acertaram os rapazes. Juarez estudara o mapa e conseguira captar detalhes que ninguém havia percebido. Guardou, no entanto, apenas para si o segredo. Um deles, o mais importante, sugeria o ponto mais exato da montanha onde se escondia a mina. Seus grandes conhecimentos de cartografia foram decisivos.
Esperou o momento oportuno para agir. Carlos, o último obstáculo, tombou após defender-se de alguns golpes, pois estava em desvantagem. O morto foi arrastado para a água e a barraca desmontada e colocada no barco junto com a dinamite e as ferramentas. O restante, como sacos de roupa e outros utensílios, que não lhe pertenciam, ele os empurrou para dentro da pequena floresta atrás do rio. Tudo isto minutos após a saída dos três.
Então, disparou em alta velocidade, ansioso para confirmar as suas deduções. Sem demora achou o local, mas foi surpreendido pelos selvagens quando retornou ao barco para apanhar o material. Saíram detrás de umas árvores e, em fração de segundos, cercaram Juarez, apontando-lhe as lanças. Eram em dezenas, faziam um tremendo alvoroço de vozes e estranhos gestos. Cinco deles, de físico avantajado, avançaram para o prisioneiro.
Ao sinal do que parecia ser o chefe, o mais forte, com o cabo da lança, golpeou a cabeça de Juarez que, ao perder os sentidos, foi seguro pelos outros e carregado no alto para o interior da floresta. Seguiu-se uma algazarra que ecoou pelos ares e desapareceu com a entrada do grupo que ficara para trás.
Voltando aos três companheiros traídos por Juarez, acharam por bem se separarem para melhor agirem. Juan ficaria por ali para providenciar comida e Gonzales seguiria em direção oposta a de Fernandez. Juan acabou por encontrar os objetos deixados por Juarez. Havia ainda alguma comida que poderia ser aproveitada. Horas mais tarde voltaram a se reunir a fim de traçarem novos planos.
– Vamos pernoitar neste local que já conhecemos – disse Gonzalez, demonstrando cautela. – Amanhã, em melhores condições físicas, faremos uma busca mais proveitosa. – De fato, na manhã seguinte, ajudados por uma temperatura bem mais amena, descobriram o barco que estava à deriva numa das partes baixas do rio. Desceram por uma escarpa pouco acidentada.
– Fiquem aqui enquanto vou buscar o queridinho – disse Gonzalez, livrando-se da camisa e passando aos companheiros o seu revólver. Mergulhou de cabeça e sumiu debaixo d’água. Quando voltou a emergir, segundos depois, já tinha o barco quase ao alcance das mãos. Entrou e fez uma rápida inspeção. As caixas pareciam intactas. Realmente, tudo estava do jeito que havia sido arrumado. Tendo verificado o motor, gritou para os rapazes, pondo as duas mãos em forma de concha na frente da boca. – Está sem gasolina. Terão que nadar também, amigos!
– Levante o alçapão e vai ver uma corda! – gritou de lá Fernandez. – Amarre-a ao leme e tente laçar a árvore mais próxima na outra margem. – Gonzalez obedeceu, mas sua falta de habilidade o fez desistir após várias tentativas frustradas. Sendo assim, optou pelo mais prático. Para si, pelo menos.
Mergulhou, desta vez com a corda presa entre os dentes e só assim teve sucesso a empreitada. Sem outra opção, a não ser também se molharem, Fernandez e Juan atravessaram e uniram-se ao outro. Juntos, puxaram o barco, trazendo-o para a margem. O local parecia perfeito para um acampamento.
– Algo me diz que Juarez está morto – afirmou Juan enquanto desdobrava a lona. – Haja vista o estado improvável de tudo que encontramos
– acrescentou. Fernandez inspecionava o motor da embarcação. Ouvindo estas palavras, retrucou:
– Torço para que seja verdade o que acaba de dizer. De qualquer jeito, posso lhe assegurar de que seus dias estão contados. – O ódio que nutria era, de fato, incontrolável. Jamais descansaria enquanto não vingasse a morte traiçoeira de Carlos. Para Fernandez, Juarez não merecia mais viver após o fato que cometera.
A situação de Juarez era realmente patética. Não estava morto como desejava Fernandez, mas tudo levava a crer que seu destino seria mesmo este. Rodeado pelos selvagens, jazia totalmente nu sobre o chão de terra batida da enorme clareira. Ali viviam os canibais. O terreno era baixo, formando uma espécie de lago seco. Ao longe, formações rochosas que entremeavam árvores esparsas de pequeno porte, adoentadas, algumas quase desnudas e já sem vida.
Para chegarem até ali e prepararem o almoço garantido para aquele dia, os selvagens empreenderam não menos do que duas horas de uma longa caminhada, mas que para eles nada demais representava, mormente pelo sucesso da nova caça. Juarez não era gordo, senão robusto e de boa estatura e isto queria dizer carne farta e viçosa, pois também era jovem. A dança era frenética e, como sempre, acompanhada de gritos e gestos espalhafatosos das mãos segurando as compridas lanças que espetavam o ar e dos pés que sulcavam o solo; todos, homens e mulheres volteando sua presa.
Deviam estar famintos, os rostos esbraseados, o olhar inquieto, não menos as voltas aceleradas denunciavam a ansiedade de devorar Juarez
Surge o chefe, altivo e elegante. Prostrou-se fora da tenda de onde saíra. Sua superioridade era representada por faixas que lhe atravessavam o peito e as costas, pintados em preto e amarelo, respectivamente. A um sinal de sua lança, erguida para cima e abaixada com a ponta fincando a terra, estava a perdição de Juarez. Todos cairiam sobre ele e teria inicio o banquete, indo pernas para um lado e braços para o outro até que nada mais restasse do infeliz. A disputa se faria então, cabendo aos mais habilidosos as partes melhores e os pedaços mais suculentos. Mas ele não deu o sinal. Apenas vislumbrou a cena, deu meia volta e entrou de volta para a tenda.
O que não podia acontecer em hipótese alguma era um banquete proporcionado por um ser somente. A conseqüência seria desastrosa. Todos brigariam entre si e muitos seriam massacrados. Imagina dezenas de canibais insatisfeitos e invejosos por perderem a prova de uma presa rara e apetitosa, visto que rejeitam a própria carne cujo aspecto e textura se lhes mostram repugnantes. Sendo assim, dispersaram-se em grupos de dez a quinze e trataram de achar comida. Fresca e vistosa. Carne de homem branco. A floresta, o rio e toda circunvizinhança eram agora cenário medonho num palco de mistério e terror.
A mina foi realmente encontrada. Haviam deixado o barco e caminhado até encosta mais próxima. Ali, um fio d´água, descendo por uma rocha, trouxe à lembrança de Gonzalez um detalhe do mapa que até então não percebera. Tirou-o do bolso e mostrou-o a Fernandez.
– É isto, amigo. A linha que você julgava uma rasura é exatamente este fio d´água. Terminaram as buscas, vou preparar o material.
Seguiram-se a explosão, os gritos de alegria e a esperada colheita. Rubis e esmeraldas eram as pedras mais valiosas. Vieram juntas com outras de menor valor. Encheram os vasilhames que traziam e deixaram o local visivelmente contentes e satisfeitos. Entraram pela tarde a separar cuidadosamente o material a ver o quanto de preciosidade haviam conseguido.
Não trouxeram muito na primeira leva, mas foi o suficiente para animá-los a retornar no dia seguinte. Chegariam bem cedo a fim de aproveitarem melhor o dia e, quem sabe, extraírem monumental quantidade do que realmente valesse o esforço e o risco.
Amanheceu. Sacolas vazias, mas cheias de expectativas quanto ao futuro radiante que os esperava, dirigiram-se novamente ao local abençoado. Entraram. E o que encontraram lá dentro acabou por mudar todo o fim da história. Deitado sobre uma pedra, envolto por uma corda que várias voltas davam em seu corpo, que à própria pedra era amarrado, depararam com Juarez. Vivo ainda, porém, depauperado pela fome e o terrível efeito de várias horas em que esteve exposto ao sol desde que o capturaram os canibais.
Estáticos, os três rapazes assim permaneceram até que o efeito do choque se dissipasse e o raciocínio lógico voltasse as suas mentes. Isto durou vários segundos, findos os quais, Fernandez foi o primeiro a abrir a boca.
– Algo me diz que estamos em apuros. Acabo de perceber um movimento de sombra do lado de fora.
Eram os canibais. O instinto de caçadores que lhes é inerente levou-os a deixar ali o infeliz Juarez, atraídos, quem poderia duvidar, por pegadas, somente a eles perceptíveis ou, não menos provável, pelo cheiro de carne de homem branco. Fernandez, ao pressentir a aproximação deles, correu até um canto da caverna e ali se escondeu. Protegeu-o uma bifurcação alongada e completamente escurecida pelo montante de rochas resultantes de erosões passadas.
A desvantagem era que, se o descobrissem, estaria perdido, posto que totalmente encurralado acabaria ficando. E o faro de Fernandez não deu em outra. Mal desapareceu da vista dos amigos, o recinto foi invadido. De uma só vez, dez homens, aos gritos e enfurecidos, avançaram contra os dois, mas a metade ficou pelo caminho graças à pontaria de Fernandez que, mesmo de considerável distância, fez cuspir, das duas armas que empunhava, balas certeiras que encontraram seus alvos, diminuindo o perigo.
Os que restaram, interromperam a ação e recuaram, mas, não demorou muito, nova invasão ocorreu, desta vez, mais ousada e aterradora, pois mais uma dezena se juntou àqueles cinco e nova descarga de balas derrubou vários deles. Segundos se passaram e uma quantidade medonha de homens selvagens tomou toda a entrada da caverna e mesmo a reação de Juan e Gonzalez que, detrás da pedra, também atiravam, não foi suficiente para impedi-los de se aproximar. Fernandez viu toda a cena passar-se diante dos olhos do local que o protegia. Mesmo que quisesse, e ele o queria muito, fazer alguma coisa a fim de salvar os companheiros, não teria a mínima chance.
Então optou por assistir ao que se passaria em seguida, mas já com um plano em mente. A visão dos três amigos desapareceu completamente, dado a aglomeração que se fez em torno deles. Do jeito que entraram, saíram, feito um bando de formigas que assalta um torrão de açúcar e desaparece com ele em segundos. Um silêncio sepulcral pairou então no ambiente. Com cautela, deixou o esconderijo, foi até a saída, mas não viu viva alma nos arredores.
Vamos encontrar os três numa situação desesperadora, prontos a virarem churrasco e serem devorados por uma turba incontida, indomável. Quando Fernandez, após ter seguido de longe o grupo, aproximou-se corajosamente da enorme clareira, tendo como proteção uma das grandes rochas que a circulavam, sabia que estava colocando em risco a própria pele, pois já se encontrava no reduto dos terríveis canibais. Ali, o seu plano para salvar os amigos, não poderia falhar.
A técnica que dominava com habilidade impar e o sangue frio que conseguia manter em situações de extremo risco, como a que estava prestes a enfrentar, sempre foram suas marcas. Ciente estava de que um passo em falso representaria a morte, por isso, não podia falhar. Esperou a noite que não tardaria. Andou agachado pelo entorno, tendo cuidado ao pisar para não causar um barulho fatal. Visto que a lua nova em seu último dia era a superstição dos canibais, tranquilizou-se Fernandez. Um banho de sangue estava então descartado até o cantar da cotovia, trazendo uma nova aurora.
Todos dormiam, com exceção de alguns selvagens que guardavam os três prisioneiros. Amarrados em estacas, sofriam terrivelmente. Gonzalez, num levantar de cabeça, vislumbrou ao longe um vulto e reconheceu Fernandez que, ás costas dos inimigos, no breu da noite, se encolhia entre as rochas. Atrás de si, solitário, o rastro mortal do explosivo. Era este o plano: acabar com tudo, mandar para o inferno os animais selvagens. Mas, e os companheiros, como fazer para salvá-los? Contou cinco elementos à volta dos prisioneiros. Não se arriscaria a eliminá-los, cumprindo assim a primeira etapa do plano. Uma ação em falso e o fim seria certo. Sendo assim, descansou, à espera do sol de mais um dia.
Amanheceu finalmente. Fernandez estava satisfeito; ficou como queria. A cabana principal, onde vivia o chefe, dependia, para ir para os ares, de um gesto de Fernandez. A explosão foi certeira, a primeira de uma série contínua e decisiva. Homens correndo para todos os lados. Corpos se chocando e sendo arremessados a cada novo pipocar da pólvora. Parece ter valido a pena o sacrifício de empregar até o fim a rica dinamite. Em dado momento, afastou-se do detonador e, de armas em punho, abriu caminho à fogo até chegar aos que, semi conscientes, ansiavam por sua salvação. Acertou ainda alguns que contra ele investiram.
Não sabia quantos ainda poderiam ter sobrevivido. Então, foi rápido ao desatar Gonzalez e Juan. Quanto a Juarez, sequer averiguou seu estado; desejava que morto já estivesse. Mais tarde, no barco, ao responder a uma indagação de Gonzalez, disse, enquanto examinava uma das pedras que haviam conseguido.
– Como é certo que alguns deles conseguiram sobreviver, por que iria eu cometer a maldade de deixar os coitados morrerem de fome?
Professor Edgard Santos