Dona Helga e Seu Pacto Com o Capeta

Existia no início do século passado lá pelo interior do Estado Rio de Janeiro uma grande fazenda que tinha a cafeicultura como a sua principal fonte de renda. Seus proprietários eram um casal; Karl, mais conhecido como 'seu Carlos' e sua esposa Helga, ambos filhos de imigrantes alemães que herdaram a fazenda quando eram um casal ainda bem jovem.

Seu Carlos morreu ainda novo, próximo de completar os seus quarenta anos de idade; morreu depois de ter sido picado por uma cobra muito venenosa. Eles não tiveram filhos, coube então à sua esposa assumir o comando da fazenda.

Corria um boato entre aqueles que já conheciam o casal há mais tempo, que a morte do seu Carlos foi obra do capeta; diziam que foi ele próprio quem se transformou naquela cobra coral que causou a sua morte naquela fatídica noite enquanto ele dormia, no quarto do casal com uma prostituta. E a explicação para o fato da cobra não ter picado a tal prostituta, só se soube bem mais tarde; era para que ela testemunhasse que a dona Helga não tinha nada a ver com a morte do marido, já que naquela ocasião ela estava na Capital, cuidando dos negócios da fazenda.

E com a morte do marido, coube a ela assumir o controle da fazenda, tornado-se muito conhecida naquela região, não só pela sua grande competência nos negócios, mas principalmente pela maneira extremamente rude com que costumava tratar os seus empregados, talvez por achar que eles eram coniventes com as aventuras extraconjugais do seu ex-marido, que era muito mulherengo.

Alguns anos se passaram... Até que um dia a dona Helga, já então com seus 69 anos de idade, resolveu procurar o padre do lugar. Ela, que não era nada religiosa, mandou uma empregada de sua confiança levar um bilhete para o padre José; queria se 'aconselhar' com ele. Sabendo que ela era uma personalidade muito conhecida naquela região, o padre mandou dizer que conversaria com ela na tarde do dia seguinte lá na sua fazenda.

E naquela tarde do dia seguinte, tiveram os dois uma conversa tão particular, que mais parecia ser uma confissão. E duarente aquela conversa, dona Helga acabou 'confessando' para o padre que aquele boato que existia de que ela tinha um pacto com o demo era a mais pura verdade; ela tinha realmente um pacto com ele. E era justamente por causa disso que ela tinha resolvido 'se abrir' com um sacerdote, para ver se havia uma maneira possível de romper esse diabólico pacto. Quase morrendo de curiosidade o padre pediu que ela contasse que tipo de pacto seria esse que ela teria feito com o demo.

Então ela contou para o padre que nos últimos anos em que o seu marido ainda era vivo, ela estava muito infeliz e sofrendo muito por causa dele. Disse que antes ele era um homem meigo e carinhoso, mas que havia se transformado num homem muito violento e agressivo, além disso vivia cercado de muitas mulheres... Foi quando ela ficou sabendo, que em um pequeno vilarejo da cidade vizinha, existia um caboclo feiticeiro que tinha a fama de resolver todo e qualquer problema entre marido e mulher. Ela então procurou o tal feiticeiro que, mediante uma bela soma em dinheiro e muitas oferendas, lhe garantiu que faria um encontro entre ela e o demo. Disse ela que esse encontro de fato aconteceu; foi numa noite de sexta-feira, bem em meio à uma encruzilhada. E que nesse encontro o capeta lhe perguntou o que é que ela queria dele? Nesse momento o padre, ansioso, perguntou:

-E o que foi que você pediu a ele, filha? Ela, calmamente respondeu:

-Eu estava cheia de ódio do meu marido, padre; pedi a sua morte! Então o capeta me disse que isso ia me custar muito caro. E quando eu perguntei qual seria o preço, porque eu estava disposta a pagar o preço que fosse, já que dinheiro não seria problema, ele disse:

-Não. Não é dinheiro que eu quero de você; eu quero é a sua alma. Então eu simplesmente perguntei como é que ele iria levar a minha alma; se ia me matar ali...

-E o que foi que ele respondeu, filha? Perguntou o padre.

-O capeta me disse que já na próxima sexta-feira, atendendo ao meu pedido e demonstrando que o pacto tinha sido selado, ele levaria a alma do meu marido para o inferno. E que depois que ele morresse a minha vida ia ser transformada; ia maravilhosa, mas só até à meia noite anterior ao dia em que eu fosse completar setenta anos de idade, quando então ele viria buscar a minha alma exatamente da mesma maneira como ia levar a do meu marido... Padre, eu não entendia nada desse negócio de alma, essas coisas assim, já que nunca tive religião nenhuma, então não pensei duas vezes; apertei logo aquela mão esquisita dele... Ele então deu uma sinistra gargalhada e simplesmente desapareceu na minha frente, deixando no ar uma catinga daquelas... Eu confesso até que saí dali meio zonza, quase não acreditando que aquilo tudo que presenciei e fiz, fosse real.

Mas na noite daquela sexta-feira seguinte ao nosso encontro, aconteceu tudo exatamente da maneira como ele havia dito; meu marido amanheceu morto na nossa cama, ao lado de uma prostituta. Ele tinha dois minúsculos furinhos no tornozelo; tinha sido picado por uma cobra venenosa, possívelmante uma cobra-coral.

E foi por isso que eu quis conversar com o senhor, padre. É que daqui a quinze dias já é a data marcada por ele; é quando ele vem para me matar e levar a minha alma...

O Padre ficou confuso; naquele momento ele não sabia o que dizer a ela. Procurando acalmá-la, ele prometeu que iria pensar bastante em tudo aquilo que ela havia lhe contado e que no dia seguinte certamente já lhe traria alguma resposta.

E assim foi feito. Naquele dia seguinte o padre chegou com a tão esperada resposta; depois de ter consultado sigilosamente alguns outros religiosos eles chegaram à conclusão de que a única maneira de quebrar o pacto seria 'enganar o dito cujo', escondendo ela em um lugar onde ele nunca poderia entrar; um lugar proibido para ele...

O plano era o seguinte; o padre a levaria para um lugar sagrado onde o capeta jamais ousaria pisar. E ela, passando a noite lá, estaria quebrando aquele macabro pacto.

O local escolhido era uma pequena capela, de acesso restrito a poucos religiosos, que ficava no alto da torre de uma antiga igreja, onde eram guardadas as relíquias de alguns santos.

E foi assim que já no início da tarde daquela sexta-feira, véspera do aniversário de setenta anos da dona Helga, lá estava ela confiante, acompanhada do seu mais novo amigo e protetor; o padre José que, juntamente com algumas freiras ainda fizeram algumas orações antes de abrirem o velho portão de ferro que dava acesso à escada que a levaria até à capelinha onde ela iria passar aquela noite. E ela já estava começando a subir, quando uma jovem 'noviça' teve o bom senso de lhe oferecer um grosso xale para protegê-la do frio que costumava fazer naquelas noites frias de inverno. Aquele espontâneo gesto de carinho fez com que algumas outras freiras juntassem em uma sacola algumas mantas, cachecóis e até alguns sapatos fechados, já que ela estava de sandálias. Agradecendo a todas, ela começou a subir as escadas com a sua trouxa, ficando combinado que logo pela manhã do dia seguinte o padre estaria lá esperando-a, para comemorarem juntos com um delicioso café da manhã...

E chegou a tão esperada manhã do dia seguinte...

O padre José já estava a postos lá desde muito cedo fazendo as suas orações, mas quando ele viu que o tempo passava, as freiras até já tinham começado a sua lida diária e nada de dona Helga aparecer, ele não se conteve; subiu apressadamente os degraus em direção à capela da torre. E quando ele chegou lá ele a viu; aparentemente ainda estava dormindo tranquilamente, ele até esboçou um sorriso...Mas quando se aproximou um pouco mais e percebeu que ela não estava respirando, ele deu um grito de pavor; ela estava morta.

Aparentemente dona Helga morreu dormindo, possívelmente tivera uma parada cardíaca...

A polícia foi logo chamada, já trazendo junto uma equipe de peritos para constatar a 'causa-mortis'. Não foi nem preciso muito esforço para descobrirem logo a causa da morte daquela senhorinha, que até há poucas horas atrás parecia estar 'vendendo' saúde; ela fora picada por afiados dentes de uma serpente...

Mas, como seria isso possível? Aquele local era super bem cuidado. Uma serpente, por menor que fosse, jamais poderia estar escondida ali em algum cantinho, sem que ninguém a percebesse...

Realmente não havia dúvida nenhuma quanto a 'causa mortis'; ela foi picada no tornozelo direito por uma cobra muito venenosa, possívelmente uma cobra-coral, havia lá dois furinhos provenientes de suas presas.

E foi então que as dúvidas foram sanadas; por causa do frio ela havia calçado um par de polainas de crochê que as freiras lhe deram... E quando viraram pelo avesso aquelas grossas polainas de croche, encontraram bem no fundo de uma delas e parte frontal da arcada dentária de uma pequenina cobra, que mais tarde a perícia confirmou que se tratava de restos de uma venenosa cobra-coral...

O pacto foi cumprido !