Beleza Interior
Da série "Contos Que Cabem Numa Página A4".
Fitava satisfeito mais um trabalho quase terminado. Talvez pequenos arranjos no gradiente das cores, um exame geométrico escrupuloso ou uma apreciação cuidadosa dos matizes de sombras fizessem desta, por fim, sua grande obra prima.
Não era capaz de recordar quando a necessidade estética aflorou em seu corpo como uma espinha purulenta. Se perguntado, não seria capaz de responder com convicção – a coisa havia acontecido, contudo há muito tempo, numa data que ficou nublada como o pensamento de um drogado.
Pode ter sido no natal de 1969, quando o pai o presenteou com um relógio Seiko. Mostrador verde e precisão quase suíça. Era uma peça e tanto, mas havia algo além naquele belo equipamento. E Rui Branco decidiu que descobriria tudo o que se escondia por detrás do vidro transparente e do corpo metálico e brilhante. Estavam lá os pêndulos, as engrenagens, pequenos rubis faiscando como olhos de ciclopes. Recombinadas, repintadas e remontadas em um belo painel que pendurou na parede do quarto, aquela que a luz do sol atingia durante as manhãs, as peças ganharam um significado tão intenso que Rui gostaria de explicar em altos brados para todo o resto do mundo!
Não compreendera a indignação do pai diante de um trabalho tão bem feito. O velho reclamara do valor do objeto, da utilidade e da beleza que haviam sido destruídas. Mostrava-se verdadeiramente injuriado, entretanto Rui considerou o castigo uma injustiça incompreensível. Triste perceber a isenção estética nas pessoas que o rodeavam - a arte rugia dentro de seu corpo como uma fera enjaulada e, ao redor, apenas olhares estreitos.
Não descansou: prosseguiu e considerava seu talento uma curva ascendente de um gráfico logarítmico – buscava a beleza nos mais escondidos recônditos e estava cada vez melhor em seu trabalho. As entranhas do motor de um Wolkswagen rearranjadas à maneira de Rui tornaram-se motivo de orgulho. Do pai, apenas censura e reprovação.
Mas agora o trabalho final estava próximo do fim, a realização estética maior, junção de pintura, arquitetura, escultura e engenharia numa só obra completa e definitiva. Não haveria admoestação ou repreensão desta vez.
O sol da manhã brilhou na parede do quarto e o tom de vermelho se mostrou exagerado do lado esquerdo. Retirou mais uma porção de miolos de dentro do crânio partido e misturou ao vermelho sangue, suavizando-o. O prego que utilizara para atar o estômago ao braço estava um pouco enferrujado, substituiu por um novo em folha. Pegou o pé esquerdo sobre a cama. Os pêlos do tornozelo dele grudaram na colcha de chenile. Utilizou um pouco de saliva para descolá-los, retirando o sangue coagulado. Com o auxílio de um pouco de cola, enrolou o intestino ao redor daquela peça.
O resultado final era invejável, duvidava realmente que alguém pudesse criar uma obra de arte tão instigante como aquela a partir das entranhas do próprio pai. Reuniu cutelo, facão, canivete e martelo dentro de um balde e foi lavar seus valiosos instrumentos de arte.