O Prisioneiro da Lua Cheia

O Prisioneiro da Lua Cheia

Os pés são magros e estão cobertos de feridas. Elas ainda estão abertas e sangram. Envolta do pescoço uma grossa corrente que de tão justa marca a pele e impede o condenado de respirar direito. A calça jeans está suja e rasgada, um verdadeiro pano de chão. Sem camisa e suando em demasia, o condenado seguia andando e tropeçando em galhos, mato e pedras pontudas. Desde quando foi capturado por Basílio perto do riacho que divide aquela gigantesca floresta o pobre homem não pronunciou sequer uma única palavra, somente caminha sob as ameaças do velho caçador. Ao lado de Basílio está Tião segurando uma garrucha e ao lado de Tião está Clemente também segurando uma espingarda. Ambos são fiéis ao velho Basílio e confiam cegamente em tudo que é dito por ele.

- Quer dizer que no seio da floresta se encontra as almas dos amaldiçoados? – perguntou Clemente.

- Exatamente. – respondeu Basílio esticando a corrente. – essa praga será enforcada lá. Vamos, ande.

O condenado continua andando a passos firmes na frente dos três amigos. Basílio segura a corrente com uma mão e com a outra ele tem um tipo de chicote improvisado louco para castigar o pobre.

- E ele não fala? – perguntou Tião. – sabemos pelo menos o seu nome?

- Acho que ele é mudo, só pode. – completou Clemente.

Irritado com o maldito silêncio da parte do condenado, Basílio finalmente resolveu fazer uso do chicote. O som do couro entrando em contato com a pele do sujeito saiu alto assustando os dois homens.

- Eita, Basílio, desse jeito ele vai morrer antes de chegar ao seu destino final. – falou Tião.

- Essa praga não sente dor, vejam só.

Outra vez o chicote bateu na altura do ombro esquerdo do homem que finalmente esboçou uma expressão de dor fazendo o velho caçador cair na risada.

- Viram, ele sente dor sim. Qual o seu nome, praga do inferno?

Mais uma vez o silêncio. O condenado apenas olha para Basílio que estica ainda mais a corrente.

- Não me olhe assim. Ande.

Quase asfixiado o sujeito engole seco e fala.

- Gomes!

- O que? – Basílio coloca a mão atrás da orelha direita.

- Podem me chamar de Gomes.

- Pra mim você não passa de um animal nojento. – cuspiu no rosto do sujeito. – Graças a Deus eu consegui te prender, já não há mais risco para nossa aldeia, não é homens?

Tião e Clemente disseram que sim numa só voz. Os quatros seguem juntos para o seio da floresta. Segundo o que dizem, nesse lugar há uma entidade que guarda a alma dos amaldiçoados sacrificados ali. Gomes é um desses pobres coitados que de uma forma ou de outra se venderam ao maligno e por isso devem ter esse destino final.

- Basílio, é verdade que se nós o matarmos aqui mesmo, um de nós será o próximo condenado? – Tião perguntou.

- Não. Se o matarmos aqui, o espírito dele não terá sossego e está arriscado ele reencarnar em nossa família.

Clemente fez o sinal da cruz e rezou baixinho.

- Vamos enforcar essa desgraça lá para que não volte nunca mais. – completou.

*

Com fome e principalmente com muita sede Gomes perdeu o controle das pernas e caiu. Caiu para frente com o rosto no meio do mato cortante. Furioso e sem paciência, Basílio mais uma vez fez uso do chicote. Dez chibatadas. As costas do condenado ficaram cobertas por vergões. A ardência fez aumentar o ódio e pela primeira vez Gomes se mostrou na defensiva. Clemente apontou sua espingarda.

- Mais um passo e te mando pro inferno aqui mesmo.

- Calma, Clemente, deixe esse diabo comigo. – Basílio puxou a corrente e a enrolou num tronco de uma árvore média. Feito um cão sarnento Gomes se agitava. – vamos ver se ele aprende depois da coça que irei dar.

Muitas, inúmeras chicotadas, em toda parte do corpo. Por mais que Gomes quisesse ele não conseguiria se livrar dos açoites violentos. Agora não são só os pés estão feridos. Pernas, troncos, braços, pescoço e até o rosto. Basílio bateu até ficar exausto e passar a tarefa para Tião.

- Acho que ele já aprendeu a lição.

Gomes está caído, encolhido, urinado e tremendo. Clemente interveio.

- Vamos, está ficando tarde.

Ofegante, Basílio tomou o instrumento de tortura das mãos de Tião e voltou a martirizar o pobre. Os vergões deram lugar as feridas. Uma gota de sangue atingiu o rosto de Clemente que o limpou imediatamente. Cinco minutos depois Basílio deu por encerrado o castigo e caiu sentado de cansaço.

- Bicho sem vergonha do cão. – disse buscando ar. – vê se aprende a respeitar a autoridade.

- Quero água. – pediu Gomes ainda em posição fetal.

Tião e Clemente se olharam e depois deixaram para que o velho decidisse.

- Não tem água aqui, não para você, agora vamos, levante-se.

*

Não há corpo humano que resista. Depois de ser flagelado e ser obrigado a andar até o seio da floresta, Gomes viu sua visão ficar escurecida e as pernas perderem as forças. Mais uma vez ele caiu e apagou. Clemente o cutucou com o cano da espingarda e viu que ele ainda respirava. Tião abriu a mochila e pegou a garrafa de água e a jogou em seu rosto. Gomes despertou e passou a lamber o resto da água misturada ao sangue.

- Bom. Chegamos. – Basílio olhou ao redor. – Tião, encontre uma boa árvore, vamos acabar logo com isso.

O seio da floresta. Lugar estranho. Um odor forte de carne podre e sangue pisado. Clemente apontou sua arma para Gomes enquanto que Basílio retirava a corda da bolsa. Os quatros em silêncio, somente os cantos dos grilos e das poucas aves ali existentes. Tião gritou.

- Será ali.

- Ótimo. Estou terminando o nó. Coloque esse diabo de pé, Clemente.

A corda é jogada no galho. Só depois de colocada no pescoço é que a corrente é retirada. Tião, do outro lado a esticou. Gomes sentiu o aperto e engoliu em seco e voltou a pedir água.

- Por tudo que há de mais sagrado, me dê água.

- Não dê água a ele. Esse maldito precisa pagar por tudo o que fez, ele devorou crianças, mulheres e velhos.

- Eu, eu estava transformado, eu, eu não me lembro de nada. Por favor. – a fala saiu rouca devido a sede.

- Já chega desse assunto. Você nunca mais fará mal a ninguém. As luas cheias agora não serão mais vistas como uma ameaça. Clemente, vá ajudar a puxar a corda.

Clemente se encaminhou para junto de Tião. Basílio sacou seu trinta e oito e Gomes rezou o Pai nosso. Os dois capangas começaram a puxar a corda e o corpo do pobre coitado foi erguido. Basílio assistia a tudo olhando a agonia da morte. A corda vai sendo puxada e os pés magros e feridos já não tocam o chão. Os olhos de Gomes se esbugalharam e mesmo assim permaneceram fixos no caçador. Mais uma puxada na corda. Com o peso do corpo o pescoço cedeu. Os espasmos cessaram e Gomes encontrou a morte. Morreu com os olhos abertos.

- Amarrem a corda e venham rezar comigo.

- Vamos deixar o corpo aqui? – Tião perguntou.

- Sim. Assim que sairmos daqui a tal entidade virá buscá-lo.

Os três amigos ficaram um ao lado do outro e rezaram uma ladainha sinistra e depois se foram. Já um pouco mais afastados do seio da floresta eles se despediram.

- Vou seguir pelo rio companheiros. – disse Basílio.

- Nós iremos por baixo, pelo vale. – falou Clemente.

- Certo. Fizemos um bom trabalho. Aquele bicho já faz parte do passado.

*

O corpo se encontra lá, pendurado, um aspecto de fazer qualquer um ficar em pânico. A tal entidade o visitou e não recolheu a alma do pobre Gomes. Em forma de vento ela o presenteou com a vida. Os olhos que outrora estavam abertos, mostrando o quanto fora angustiante a sua partida desse mundo, agora piscam e vislumbram o anoitecer naquela floresta fechada e úmida. De sua pele de cor acinzentada, com feridas e vergões começam a brotar pelos negros e grossos. No lugar da boca um focinho se formou. As orelhas começaram a crescer e a ficarem pontudas. Aos poucos Gomes vai se transformando num lobo enorme, furioso e com uma força diabólica. A corda que envolvia seu pescoço se rompeu e logo suas patas tocaram o chão. O lobisomem sente no ar o cheiro dos humanos. Ele farejou por alguns minutos e ergueu a cabeça e correu em direção ao vale.

Clemente e Tião aproveitaram o vento fresco para descansar e fazer café. Juntaram algumas pedras e fizeram um fogareiro. Pegaram alguns gravetos e atearam fogo e pronto. Demorou um pouco até a água chegar a temperatura ideal para jogar o pó, mas isso não os incomodou nem um pouco. Enquanto tomam do café forte feito uma tinta não diluída, os compadres batem papo, jogam conversar fora. Um barulho é ouvido por ambos.

- Ouviu isso, Clemente?

- Sim, parecia um rosnado de porco. – pegou a espingarda. – vou até ali olhar, deve ser um javali.

- Boa, qualquer coisa a gente o leva para a aldeia e distribui a carne.

Clemente andou até próximo das árvores com a arma abaixada. O solo estava molhado e mole. As botas chafurdaram. Muito irritado, Clemente utilizou o cano da garrucha para ajudá-lo a sair quando a fera o atacou no braço. Assustado e muito ferido o capial ainda tentou atirar, mas foi outra vez mordido e dessa vez teve o membro arrancado. Tião gritou desesperado ao ver o companheiro urrar jorrando sangue.

- Minha nossa senhora. – pegou a outra arma. Mirou e disparou. O tiro passou longe.

- Aí, meu Deus. – berrou Clemente outra vez mordido. Ao tentar se defender o bicho comeu sua mão direita.

Muito sangue perdido. Muita carne e ossos expostos. O pobre Clemente caiu já perdendo a consciência. O lobisomem o mordeu no pescoço. A jugular esguichou sangue nos olhos e focinho levando Clemente a morte. Tião, para não ser o próximo jantar do homem lobo correu para dentro da floresta, mas foi alcançado e ferido no ombro. Ainda com um pedaço generoso do homem na boca o lobisomem o derrubou usando as patas. Tião mal teve tempo de se recuperar do primeiro ataque voltou a sentir a terrível dor de uma mordida.

- Aí, alguém me ajude.

Não havia ninguém. Tião teve a cabeça devorada e só o corpo foi poupado. O barulho do lobo mastigando a cabeça é algo perturbador. Ao terminar de mastigar e de engolir, o bicho rumou atrás de outra presa.

*

Basílio ouviu de longe os rosnados e é claro se preparou para o confronto. Verificou a munição. Tudo ok. Em sua cabeça ele imaginou um animal grande como um urso ou sei lá o que, mas ao ver o lobisomem correndo em sua direção, salivando e mostrando seus dentes, o velho caçador sentiu algo escorrer por entre suas pernas.

- Cão do satanás.

O 38 foi apontado, mas Basílio não conseguiu mirar pois estava tremendo muito. Mesmo com medo e desequilibrado ele resolveu atirar. Não obteve sucesso. O animal continuava vindo e cada vez mais rápido. Basílio atirou e nada. Sentindo que seria devorado o velho esboçou uma corrida, mas foi alcançado. O lobisomem usou as garras para freá-lo. Basílio caiu ferido nas costas e gritando. O animal o pulou e parou em sua frente. Uivando o lobo foi dando lugar a Gomes.

- Maldição, por que não me matou, por que, por que?

- Agora você será um amaldiçoado como eu, seu velho, será caçado, perseguido e chicoteado, sentirá sede...

- Cale a boca. – se levantou procurando sua arma. – vou tirar minha própria vida.

- Velho burro, esqueceu? Todo amaldiçoado deve ser enforcado no seio da floresta, caso contrário a maldição entrará em sua casa. Você está condenado, Basílio.

Gomes voltou a se transformar em lobisomem e correu em direção as aldeias. Basílio voltou a cair no chão gritando horrores.

- Volte, volte, seu demônio, termine o trabalho. Desgraçado, desgraçado, desgraçado. Fim.

Júlio Finegan
Enviado por Júlio Finegan em 31/08/2019
Código do texto: T6733668
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