Lua de fel

Parte de uma trama sórdida traçada pelo destino, os recém-unidos em matrimônio teriam a primeira noite, juntos, sob a anuência do plenilúnio. O deleite pela nudez do momento contrastava com a pureza simbólica do vestido branco, esgarçado pela volúpia, cedendo lugar a qualquer vestígio romanesco, afinal as mostras de sentimentalismo foram exaustivamente encenadas nos longilíneos cinco anos divididos entre o flerte, compromisso, noivado e a enfim chegada do casório.

Queriam mais agora se render ao pecado carnal, teriam outros dias, a sós, para declamar poemas, tecer planos para o futuro, lamentar não terem durante aquela meia década se rendido antes à lascividade. Desnudos, apenas o semblante pervertido do recém-marido, entorpecido diante dos seios avantajados da ruiva, era o bastante para despertar sua excitação. Estacado sobre a cama, também fitava outros tributos do corpo de sua Senhora, seduzido até a desbravar o enigmático olhar o qual não havia sido ainda apresentado.

Cada segundo mais enfronhados no prazer, as investidas lúbricas eram testemunhadas apenas pela lua gorda a aclarar o aposento. Pela janela, todo contorno circulante da órbita era emoldurado, abrindo-se na cadência veloz de uma estrela para adornar o ambiente aconchegante. Posicionando-se sobre o amante, a Mulher recorria a um movimento compassado, vertiginoso, levando-o a esgar de prazer. Pura exuberância como os cabelos vermelhos, esvoaçantes, roçando contra seu abdômen, proporcionando uma sensação inenarrável.

- Você me ama, Marido?

- Diga logo se você me ama, Marido – insistiu, após segundos silentes. Acanhado pela inoportuna indagação, pretendia evitar sobressaltos e lutava para não enrubescer de vergonha.

- Eu te amo sim. Te desejo mais do que tudo – respondeu sem muita convicção, torcendo para não se prolongar a sessão de ultrarromantismo.

Lá fora, a força das lufadas desvairadas impulsionavam as poucas nuvens no céu escuro, enquanto na alcova, os passionais indefectíveis foram acometidos pelo incitador calafrio. A luz prata, provinda da noite enluarada, penetrou mais intensamente no cômodo, passando a luzir os cernes descamisados. O uivo estrépito emergiu, rompendo abruptamente o epicentro do prazer. Pávido, o marido observava a metamorfose perturbante, com os belos cabelos rubros desatando do couro, ao mesmo tempo as mãos e dedos se alargaram, ficando cobertos por felpas em tom acinzentado.

O rosto, antes dotado de belas feições, deu lugar a um focinho franzido, repleto de pelos desgrenhados. Os olhos da besta fez o recém-Marido se ver diante do emissário da morte, eram amarelos como fogo, cintilantes, tão penetrantes. A criatura aluada ostentava afiadas presas, amedrontadoras em proporção parecida com as garras, saltando pelas opulentas patas.

O rugido da besta foi ouvido por quase toda a cidade. Com um movimento célere, a fera cravou os afiados dentes contra o pescoço daquele que há instantes, fora seu marido. A morte instantânea foi indolor, mas a felpuda abelha-rainha não estava saciada, fincando seguidamente as garras sobre o peito da vítima, rasgando ossos como papel, arrancando o coração ansioso, repleto de paixão, abocanhado em míseros segundos. O sangue jorra por toda parte e urrando às trevas, a sanguinolenta viúva lobisomem se delicia como mel avermelhado, escorrendo pelas presas aguçadas, enxovalhando os pelos do focinho achatado.

Esviscerado, o semblante congelado do marido denuncia um derradeiro e inusitado pensamento: além de proteções, vinhos e estimulantes, podia não ter se esquecido de trazer uma bala de prata para essa lua de mel, em plena noite de lua cheia... Amarga como uma lua de fel.

Rafinha Heleno
Enviado por Rafinha Heleno em 22/08/2019
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