ÁGUA E ALPISTE
O verde festivo e tranquilo do vilarejo, numa tarde de mil novecentos e trinta e cinco, gemeu. Passivamente em choque, como uma manada bovinamente tocada e mansa, viu entre gritos e pancadas, estocadas e tiros sua vida ter perdido o mais ínfimo valor. Todas as posses e imóveis confiscados, famílias separadas, mulheres magras, muito idosos e crianças pequenas mortos por não poder fazer parte da força de trabalho, para o terceiro Reich. Foram segregados a guetos com promessa de vida nova em 'campos de trabalho' sob o comando dos cruéis e brutais guardas das SS, liderados por um austríaco louco e seus generais, ele pretendia tornar a Alemanha um povo ariano de raça única, onde imperfeições eram imperdoáveis e a 'bíblia' era o Mein Kampf de autoria do próprio lider do Reich, uma lavagem cerebral inundada pelo carisma absurdo e opressivo de um louco assassino. Povos judeus e outros tantos considerados 'menores' em relação â raça pura que na visão dele, era a genética dominante, este período da história foi nominado Holocausto, cultura, ouro, jóias, obras de arte, propriedades expropriados, vidas inocentes roubadas, sob os olhos opaciados do mundo inteiro.
A família de Esther e Davi foi dilacerada, só sobraram os dois jovens e seu pai Urias, a mãe deles Ana e os avós Jiri e Asta bem como o pequenino Yuri foram metralhados na frente deles, não lhes foi permitido nem mesmo chorar, ordem gritada a base de pancadas. Enfileirados junto a centenas de outros, seguiram apavorados, tocados como gado, mas, com muito mais crueldade. Rumavam para o comboio dos trens para os 'campos de trabalho' e a vida nova.
Urias não tirava os olhos dos filhos adolescentes Esther com quinze e Davi com dezessete, ambos lindos e inteligentes. Urias era um falso franzino, possuia uma força que não correspondia à sua compleição física, esperava que isso fosse um diferencial no campo e talvez pudesse poupar a frágil filha, sua expectativa se misturava à observação da brutalidade nazista. Como seria o futuro de seus filhos era o que mais lhe angustiava, nem um exemplar do livro de orações puderam levar. O trem já estava parando, por causa das janelas fechadas, muito passaram mal, vomitaram e alguns fizeram involuntariamente suas necessidades, viagem longa, sem ar, comida ou água, o cheiro de alguns mortos no trajeto, tornava o odor ali dentro insuportável, a abertura das portas seria a primeira benção nos últimos meses, pois o ar puro tinha valor divinal...o trem para...
Ao berros os SS vão empurrando as pessoas para fora, cambaleantes, ofegantes, atönitas...por instantes uma fachada de campo colorida, com várias construções aparentemente normais. De cara o primeiro choque, o 'gado' foi separado, homens de um lado, mulheres de outro, Esther, Urias e Davi se desesperaram, com socos Esther foi separada da família, Urias se sentiu impotente diante do cano da pistola de um louro SS feroz. Foram enxotados para o barracão de identificação, onde precisaram entregar seus pertences e roupas e nus foram revistados até intimamente, sem qualquer delicadeza, Esther chorava por dentro e tremia apavorada. Depois foram levados para a triagem, os sem condições para executar trabalho pesado, fora direcionados para outra fila e se não tivessem qualificações específicas, como contadores, marceneiros ferreiros, joalheiros, músicos, cantores líricos e outros, eram encaminhados para um pavilhão sem janelas para um 'banho higienizante' para evitar infestação de piolhos, só que nunca mais viram aquelas pessoas...
Esther e as outras mulheres, tiveram seus cabelos cortados bem rente, passaram por um chuveiro gelado, receberam um uniforme de calça e blusa largos listrados e por serem judias tinha uma estrela de Davi amarela, costurada à altura do lado esquerdo do peito e chinelos, depois foram levados para alojamentos com múltiplos beliches, pareciam prateleiras com colchões finos de palha e mais nada, só existia uma porta por alojamento, Esther não viu mais Urias ou Davi, acreditava que estivessem passando pelo mesmo processo. Já era noite quando foram enfileirados na direção de outro pavilhão, onde receberam uma cuia com água e alpiste, um naco fino de pão duro e uma caneca de água, somente. Aos gritos foram alertados que a partir daquele momento, eram responsáveis pela cuia e pela caneca, se as perdessem nada receberiam. A fome e o frio rondou seus corpos até às cinco da manhã, quando foram acordados com sinetas e tapas para começar o trabalho, que no caso das mulheres consistia em costurar os uniformes dos SS e dos líderes entre eles próprios para cada alojamento, erros seriam impostos por eles aos outros e a própria liderança seria punida ou morta dependendo do deslize ou imprudência dos seus 'subordinados' isso tornou aqueles monitores tão brutais quanto os SS. A outra função das mulheres era empilhar ripas de madeira atrás do último pavilhão do campo, doze horas de trabalho initerruptas e a ração era a mesma e única todas as noites, caneca d'água e a cuia de água com alpiste, todas elas definhavam. As mais jovens e bonitas acabaram por se prostituir, para conseguir dos guardas um naco extra de pão ou uma simples batata, era tudo muito humilhante, algumas não suportando se suicidavam. Esther se apegando à sua fé, nem mesmo sabia como, resistia. Seu maior sofrimento era não ter notícias de Urias e Davi.
Já no outro lado do campo nas mesmas precárias condições, Urias e Davi separavam jóias, ouro, pedras preciosas num galpão cercado de vigilância, até mesmo dentes de ouro com sangue se encontrava nas grandes bandejas, isso era assustador, não saber de Esther era o que os apavorava e só mesmo a fé os mantinha vivos e a ração extra que recebiam pela manhã, pelo trabalho que realizavam.
Na manhã seguinte todos foram agrupados no centro aberto do campo, uma autoridade maior iria passar em revista todo aparelhamento e até banho tiveram que tomar, às quatro da manhã sob um frio abaixo de zero. Foi quando avistou Urias e Davi, Esther agradeceu aos céus por vê-los bem na medida do possível, mas, sair da posição para ir ao encontro deles seria suícidio, só conseguiu cruzar seu olhar com os deles e isso a fez muito feliz.
Músicos judeus, com uma orquestra inteira de magros componentes afinadíssima, juntamente com uma soprano também judia, se apresentou para o visitante de alta patente, um espetáculo absurdo perante a situação real. Foi servido um banquete ao ar livre...mais uma forma de tortura para os flagelados moradores da 'vila nova' em Treblinka, carnes suculentas e aves, uma infinidade de molhos, verduraa, legumes, frutas, doces e pães...somente a visão e o perfume, fez com que vários aprisionados desmaiassem de forme, pois a ração única e água e alpiste não sustentava um corpo fustigado por doze horas de trabalho árduo, sem roupas adequadas e chinelos sob um frio intenso. Aqueles que tentaram socorrer os colegas foram surrados para a alegria do visitante. Foi como uma diversão à parte, como se fossem bobos de uma côrte bestial, simplesmente fazendo sua arte de entreter, um show de horrores.
Á noite daquele mesmo dia no alojamento de Urias e Davi, uma lauta refeição aconteceu às escuras. Com a perícia de um bandido batedor de carteiras muito hábil, um Urias totalmente modificado conseguira surrupiar duas latinhas de Arenque defumado e três batatas cozidas do banquete, os acepipes foram divididos pelos vinte moradores esquálidos do pavilhão, cada gota de óleo de conserva foi aproveitada, esconder as latas vazias das revistas constantes seria um problema, mas, Davi amassou as latas e colocou-as cuidadosanente entre as frestas do assoalho amadeirado.
No alojamento de Esther uma turbilhão se formou, pois uma polonesa de nome Emyle, depois de engravidar de um guarda SS, passou a se sentir a maioral, só que causou tanta encrenca com isso, que a discussão chegou aos ouvidos de uma patente alta na 'vila nova' , o que não foi bom para nenhum dos dois. O guarda foi obrigado a tirar o filho da barriga dela com a banhoneta, na frente de todos os viventes e sobreviventes do campo. O rapaz tremia e cumprindo seu dever, acabou atirando em sua própria cabeça. O corpo de Emyle e seu feto, foram queimados numa fogueira montada e alimentada pelos próprios prisioneiros, na manhã seguinte inúmeros corpos foram retirados dos alojamentos, tanto masculinos quanto femininos, muitos se suicidaram, o estupor era geral.
Numa Primavera que logo se anunciou, todos foram enfileirados no centro do campo e aqueles mais fracos e velhos, foram enviados para o banho e depois receberiam ração extra, para recepcionar bem o novo comboio, que estava prester a chegar, mas, não era segredo para mais ninguém que o galpão de banhos era na verdade uma câmara de gás, de onde ninguém voltava. Para tristeza absoluta de Esther, bem no finalzinho da fila, estava o seu esquálido e alquebrado pai, Urias. Ela teve a pior noite de sua vida, o choro calado e a dor rasgou seu peito, até sentir falta de ar, naquele instante desistiu de lutar. Precisava encontrar Davi e encontrar um jeito de fugir daquele lugar.
A oportunidade se apresentou na manhã seguinte, Davi e mais três judeus foram escalados para fazer um reparo, no madeirame do assoalho do alojamento de Esther, foi a chance dos irmãos trocarem palavras suficientes e tentar uma fuga perigosa e suicida, se misturar aos corpos caiados, atirados nas valas atrás da 'sala de banho', era fugir ou morrer, nada fazia mais sentido, se não tentassem iriam para câmara de gás, voluntariamente. O dia seguinte era o dia D.
No anoitecer, após a ração de caneca d'água, da cuia com água e alpiste para alguns, sairam de seus pavilhões e as esguelhas se esconderam num mato alto, atrás da 'sala de banho' até que os corpos antes gementes, eram colocados em carrinhos de mão e jogados nas valas. Num instante de distração dos guardas da SS, Davi e Esther se cobriram de cal, que ardia em seus corpos e se misturaram aos corpos. Ficaram lá por horas até conseguirem passar por baixo de uma abertura mais larga na cerca, correram abaixados pelo mato, até não conseguirem mais respirar. Conseguiram abrigo num casebre de caça abandonado, onde encontraram três mudas de roupas masculinas. Suas peles queimavam por causa da cal, encontraram óleo e passaram nos corpos. Trocaram de roupas da melhor forma possível e apesar de exaustos precisavam seguir para o mais longe possível. A jornada foi árdua, com pequenos furtos em casas por onde se esgueiravam à noite. Coisas de pouca monta, frutas e batatas da plantação na maioria das vezes. Numa noite foram achados por um pequeno número de homens e mulheres armados, acreditaram ser naquele momento, o fim da linha para eles, mas, os céus conspiravam a favor deles. O grupo era da Resistência ao Terceiro Reich e os acolheram e levaram para um abrigo seguro. Foi a primeira refeição decente que fizeram. Também cuidaram de suas feridas e dois dias depois, já tinham um plano longo para de grupo em grupo de resistentes, fazer com que eles chegassem até um porto na Itália e de lá, embarcassem num navio para a América do Sul. Foram três meses de fugas, sustos, muita fome e roubos, mas, chegaram até a Itália. Embarcar como trabalhadores num navio para o destino pré-determinado até foi fácil, foi quase um mês no mar de muito trabalho. Ao avistarem a costa brasileira, suspiraram e choraram abraçados pela primeira vez em muito tempo. Desembarcaram em Ilhéus na Bahia, com fome, sem um tostão furado, com a roupa surrada no corpo, mas, se sentindo em paz.
As autoridades os receberam, vacinaram, alimentaram e lhes concederam vistos de trabalho, instalados precariamente em fétidos cortiços, seguiram a sina de seu resquício de esperança. Os anos passaram, o ofício de joalheiro foi o diferencial para Davi, logo conseguiu emprego nas Minas Gerais e levou Esther consigo. Naquele lugar de águas fartas e claras constituiram famílias, pequenas, mas, amorosas e com o tempo correndo no seu passo marcado, a velha e doce Esther, resolveu ditar para sua neta Iolanda, as suas memórias e os depoimentos do velho Davi. Desejava que aqueles anos de horrores, não ficassem gravados apenas, como os números tatuados a ferro quente em seus antebraços, mas, que seus descendentes não permitissem que o Holocausto fosse esquecido, memórias de sangue e dor. Os pássaros no lar de Esther eram livres, indo e voltando para as gaiolas abertas em seu quintal, ela nunca deixou alpiste disponível para eles, só água e frutas...
* À Jiri e Emyle Kniwisky - in memoriam - onde estiverem no plano espiritual, saibam amigos queridos, que a história de vocês jamais será relegada ao tempo, meu afeto e respeito. Texto fictício com detalhes de fatos reais, apenas baseado na história de vida e luta de velhos amigos poloneses, sobreviventes de um campo de concentração.
O verde festivo e tranquilo do vilarejo, numa tarde de mil novecentos e trinta e cinco, gemeu. Passivamente em choque, como uma manada bovinamente tocada e mansa, viu entre gritos e pancadas, estocadas e tiros sua vida ter perdido o mais ínfimo valor. Todas as posses e imóveis confiscados, famílias separadas, mulheres magras, muito idosos e crianças pequenas mortos por não poder fazer parte da força de trabalho, para o terceiro Reich. Foram segregados a guetos com promessa de vida nova em 'campos de trabalho' sob o comando dos cruéis e brutais guardas das SS, liderados por um austríaco louco e seus generais, ele pretendia tornar a Alemanha um povo ariano de raça única, onde imperfeições eram imperdoáveis e a 'bíblia' era o Mein Kampf de autoria do próprio lider do Reich, uma lavagem cerebral inundada pelo carisma absurdo e opressivo de um louco assassino. Povos judeus e outros tantos considerados 'menores' em relação â raça pura que na visão dele, era a genética dominante, este período da história foi nominado Holocausto, cultura, ouro, jóias, obras de arte, propriedades expropriados, vidas inocentes roubadas, sob os olhos opaciados do mundo inteiro.
A família de Esther e Davi foi dilacerada, só sobraram os dois jovens e seu pai Urias, a mãe deles Ana e os avós Jiri e Asta bem como o pequenino Yuri foram metralhados na frente deles, não lhes foi permitido nem mesmo chorar, ordem gritada a base de pancadas. Enfileirados junto a centenas de outros, seguiram apavorados, tocados como gado, mas, com muito mais crueldade. Rumavam para o comboio dos trens para os 'campos de trabalho' e a vida nova.
Urias não tirava os olhos dos filhos adolescentes Esther com quinze e Davi com dezessete, ambos lindos e inteligentes. Urias era um falso franzino, possuia uma força que não correspondia à sua compleição física, esperava que isso fosse um diferencial no campo e talvez pudesse poupar a frágil filha, sua expectativa se misturava à observação da brutalidade nazista. Como seria o futuro de seus filhos era o que mais lhe angustiava, nem um exemplar do livro de orações puderam levar. O trem já estava parando, por causa das janelas fechadas, muito passaram mal, vomitaram e alguns fizeram involuntariamente suas necessidades, viagem longa, sem ar, comida ou água, o cheiro de alguns mortos no trajeto, tornava o odor ali dentro insuportável, a abertura das portas seria a primeira benção nos últimos meses, pois o ar puro tinha valor divinal...o trem para...
Ao berros os SS vão empurrando as pessoas para fora, cambaleantes, ofegantes, atönitas...por instantes uma fachada de campo colorida, com várias construções aparentemente normais. De cara o primeiro choque, o 'gado' foi separado, homens de um lado, mulheres de outro, Esther, Urias e Davi se desesperaram, com socos Esther foi separada da família, Urias se sentiu impotente diante do cano da pistola de um louro SS feroz. Foram enxotados para o barracão de identificação, onde precisaram entregar seus pertences e roupas e nus foram revistados até intimamente, sem qualquer delicadeza, Esther chorava por dentro e tremia apavorada. Depois foram levados para a triagem, os sem condições para executar trabalho pesado, fora direcionados para outra fila e se não tivessem qualificações específicas, como contadores, marceneiros ferreiros, joalheiros, músicos, cantores líricos e outros, eram encaminhados para um pavilhão sem janelas para um 'banho higienizante' para evitar infestação de piolhos, só que nunca mais viram aquelas pessoas...
Esther e as outras mulheres, tiveram seus cabelos cortados bem rente, passaram por um chuveiro gelado, receberam um uniforme de calça e blusa largos listrados e por serem judias tinha uma estrela de Davi amarela, costurada à altura do lado esquerdo do peito e chinelos, depois foram levados para alojamentos com múltiplos beliches, pareciam prateleiras com colchões finos de palha e mais nada, só existia uma porta por alojamento, Esther não viu mais Urias ou Davi, acreditava que estivessem passando pelo mesmo processo. Já era noite quando foram enfileirados na direção de outro pavilhão, onde receberam uma cuia com água e alpiste, um naco fino de pão duro e uma caneca de água, somente. Aos gritos foram alertados que a partir daquele momento, eram responsáveis pela cuia e pela caneca, se as perdessem nada receberiam. A fome e o frio rondou seus corpos até às cinco da manhã, quando foram acordados com sinetas e tapas para começar o trabalho, que no caso das mulheres consistia em costurar os uniformes dos SS e dos líderes entre eles próprios para cada alojamento, erros seriam impostos por eles aos outros e a própria liderança seria punida ou morta dependendo do deslize ou imprudência dos seus 'subordinados' isso tornou aqueles monitores tão brutais quanto os SS. A outra função das mulheres era empilhar ripas de madeira atrás do último pavilhão do campo, doze horas de trabalho initerruptas e a ração era a mesma e única todas as noites, caneca d'água e a cuia de água com alpiste, todas elas definhavam. As mais jovens e bonitas acabaram por se prostituir, para conseguir dos guardas um naco extra de pão ou uma simples batata, era tudo muito humilhante, algumas não suportando se suicidavam. Esther se apegando à sua fé, nem mesmo sabia como, resistia. Seu maior sofrimento era não ter notícias de Urias e Davi.
Já no outro lado do campo nas mesmas precárias condições, Urias e Davi separavam jóias, ouro, pedras preciosas num galpão cercado de vigilância, até mesmo dentes de ouro com sangue se encontrava nas grandes bandejas, isso era assustador, não saber de Esther era o que os apavorava e só mesmo a fé os mantinha vivos e a ração extra que recebiam pela manhã, pelo trabalho que realizavam.
Na manhã seguinte todos foram agrupados no centro aberto do campo, uma autoridade maior iria passar em revista todo aparelhamento e até banho tiveram que tomar, às quatro da manhã sob um frio abaixo de zero. Foi quando avistou Urias e Davi, Esther agradeceu aos céus por vê-los bem na medida do possível, mas, sair da posição para ir ao encontro deles seria suícidio, só conseguiu cruzar seu olhar com os deles e isso a fez muito feliz.
Músicos judeus, com uma orquestra inteira de magros componentes afinadíssima, juntamente com uma soprano também judia, se apresentou para o visitante de alta patente, um espetáculo absurdo perante a situação real. Foi servido um banquete ao ar livre...mais uma forma de tortura para os flagelados moradores da 'vila nova' em Treblinka, carnes suculentas e aves, uma infinidade de molhos, verduraa, legumes, frutas, doces e pães...somente a visão e o perfume, fez com que vários aprisionados desmaiassem de forme, pois a ração única e água e alpiste não sustentava um corpo fustigado por doze horas de trabalho árduo, sem roupas adequadas e chinelos sob um frio intenso. Aqueles que tentaram socorrer os colegas foram surrados para a alegria do visitante. Foi como uma diversão à parte, como se fossem bobos de uma côrte bestial, simplesmente fazendo sua arte de entreter, um show de horrores.
Á noite daquele mesmo dia no alojamento de Urias e Davi, uma lauta refeição aconteceu às escuras. Com a perícia de um bandido batedor de carteiras muito hábil, um Urias totalmente modificado conseguira surrupiar duas latinhas de Arenque defumado e três batatas cozidas do banquete, os acepipes foram divididos pelos vinte moradores esquálidos do pavilhão, cada gota de óleo de conserva foi aproveitada, esconder as latas vazias das revistas constantes seria um problema, mas, Davi amassou as latas e colocou-as cuidadosanente entre as frestas do assoalho amadeirado.
No alojamento de Esther uma turbilhão se formou, pois uma polonesa de nome Emyle, depois de engravidar de um guarda SS, passou a se sentir a maioral, só que causou tanta encrenca com isso, que a discussão chegou aos ouvidos de uma patente alta na 'vila nova' , o que não foi bom para nenhum dos dois. O guarda foi obrigado a tirar o filho da barriga dela com a banhoneta, na frente de todos os viventes e sobreviventes do campo. O rapaz tremia e cumprindo seu dever, acabou atirando em sua própria cabeça. O corpo de Emyle e seu feto, foram queimados numa fogueira montada e alimentada pelos próprios prisioneiros, na manhã seguinte inúmeros corpos foram retirados dos alojamentos, tanto masculinos quanto femininos, muitos se suicidaram, o estupor era geral.
Numa Primavera que logo se anunciou, todos foram enfileirados no centro do campo e aqueles mais fracos e velhos, foram enviados para o banho e depois receberiam ração extra, para recepcionar bem o novo comboio, que estava prester a chegar, mas, não era segredo para mais ninguém que o galpão de banhos era na verdade uma câmara de gás, de onde ninguém voltava. Para tristeza absoluta de Esther, bem no finalzinho da fila, estava o seu esquálido e alquebrado pai, Urias. Ela teve a pior noite de sua vida, o choro calado e a dor rasgou seu peito, até sentir falta de ar, naquele instante desistiu de lutar. Precisava encontrar Davi e encontrar um jeito de fugir daquele lugar.
A oportunidade se apresentou na manhã seguinte, Davi e mais três judeus foram escalados para fazer um reparo, no madeirame do assoalho do alojamento de Esther, foi a chance dos irmãos trocarem palavras suficientes e tentar uma fuga perigosa e suicida, se misturar aos corpos caiados, atirados nas valas atrás da 'sala de banho', era fugir ou morrer, nada fazia mais sentido, se não tentassem iriam para câmara de gás, voluntariamente. O dia seguinte era o dia D.
No anoitecer, após a ração de caneca d'água, da cuia com água e alpiste para alguns, sairam de seus pavilhões e as esguelhas se esconderam num mato alto, atrás da 'sala de banho' até que os corpos antes gementes, eram colocados em carrinhos de mão e jogados nas valas. Num instante de distração dos guardas da SS, Davi e Esther se cobriram de cal, que ardia em seus corpos e se misturaram aos corpos. Ficaram lá por horas até conseguirem passar por baixo de uma abertura mais larga na cerca, correram abaixados pelo mato, até não conseguirem mais respirar. Conseguiram abrigo num casebre de caça abandonado, onde encontraram três mudas de roupas masculinas. Suas peles queimavam por causa da cal, encontraram óleo e passaram nos corpos. Trocaram de roupas da melhor forma possível e apesar de exaustos precisavam seguir para o mais longe possível. A jornada foi árdua, com pequenos furtos em casas por onde se esgueiravam à noite. Coisas de pouca monta, frutas e batatas da plantação na maioria das vezes. Numa noite foram achados por um pequeno número de homens e mulheres armados, acreditaram ser naquele momento, o fim da linha para eles, mas, os céus conspiravam a favor deles. O grupo era da Resistência ao Terceiro Reich e os acolheram e levaram para um abrigo seguro. Foi a primeira refeição decente que fizeram. Também cuidaram de suas feridas e dois dias depois, já tinham um plano longo para de grupo em grupo de resistentes, fazer com que eles chegassem até um porto na Itália e de lá, embarcassem num navio para a América do Sul. Foram três meses de fugas, sustos, muita fome e roubos, mas, chegaram até a Itália. Embarcar como trabalhadores num navio para o destino pré-determinado até foi fácil, foi quase um mês no mar de muito trabalho. Ao avistarem a costa brasileira, suspiraram e choraram abraçados pela primeira vez em muito tempo. Desembarcaram em Ilhéus na Bahia, com fome, sem um tostão furado, com a roupa surrada no corpo, mas, se sentindo em paz.
As autoridades os receberam, vacinaram, alimentaram e lhes concederam vistos de trabalho, instalados precariamente em fétidos cortiços, seguiram a sina de seu resquício de esperança. Os anos passaram, o ofício de joalheiro foi o diferencial para Davi, logo conseguiu emprego nas Minas Gerais e levou Esther consigo. Naquele lugar de águas fartas e claras constituiram famílias, pequenas, mas, amorosas e com o tempo correndo no seu passo marcado, a velha e doce Esther, resolveu ditar para sua neta Iolanda, as suas memórias e os depoimentos do velho Davi. Desejava que aqueles anos de horrores, não ficassem gravados apenas, como os números tatuados a ferro quente em seus antebraços, mas, que seus descendentes não permitissem que o Holocausto fosse esquecido, memórias de sangue e dor. Os pássaros no lar de Esther eram livres, indo e voltando para as gaiolas abertas em seu quintal, ela nunca deixou alpiste disponível para eles, só água e frutas...
* À Jiri e Emyle Kniwisky - in memoriam - onde estiverem no plano espiritual, saibam amigos queridos, que a história de vocês jamais será relegada ao tempo, meu afeto e respeito. Texto fictício com detalhes de fatos reais, apenas baseado na história de vida e luta de velhos amigos poloneses, sobreviventes de um campo de concentração.