O Relato de Ellen

Sou Wesley Garcia, delegado do 13º Distrito da pequena cidade de Vale do Silêncio, interior do estado do Espírito Santo, e o que vou relatar neste breve boletim, aconteceu comigo no final de agosto de 2009, quando estávamos prestes a encerrar as atividades daquele dia.

A suspeita chegou até nós malvestida e mais suja que uma porca. Seus cabelos escuros estavam desgrenhados e parecia que havia semanas ou meses que não os lavava. Ela estava imunda e cheirava muito mal. Mas havia naquela adolescente algo perturbador e sinistro que eu não poderia descrever aqui como tal. Mas o olhar sombrio de Ellen Rocha me incomodava. Principalmente porque ela parecia não olhar para lugar nenhum, como uma lunática e por vezes demorava para responder nossas perguntas inquisitivas. "Estão todos mortos", era o que ela ficava dizendo o tempo todo. Tentei confortá-la pois ela estava passando por algum transtorno psicossomático e pós-traumático, mas tudo o que eu dizia só pioravam as coisas.

Bem, estou neste trabalho a cerca de três décadas e posso dizer com a segurança da minha experiência que nunca vi nada igual na história de Ellen, a não ser em histórias de horror de Stephen King ou filmes de terror dos anos 80, como a Hora do Pesadelo. Sim, a história de Ellen parecia provir de algum conto de horror bem sádico e aterrorizante, então não posso comprovar a veracidade dos fatos. Ainda mais que Ellen parecia fora de si, um tanto transtornada e quase surtando. "Estão mortos senhor. Todos eles", ela ficava dizendo. "Quem os matou?", quando eu fazia esta pergunta ela caia em prantos como se uma lembrança dolorosa voltasse sempre à tona. "Foram elas, senhor. Aquelas criaturas horrendas e cabeludas com vários olhos e várias patas", ela disse. Então perguntei: "Está me dizendo que aranhas fizeram aquilo com seus amigos?", Ela: "Aquilo não eram aranhas, senhor. Não mesmo". Perguntei: "Então o que eram?". Ela respondeu: "Vou lhe contar a história toda".

Então ela disse: "Havíamos subido o Monte do Suplício no domingo pela manhã, praticamente ignorando todos os avisos que dizem para não subi-lo sem um guia. Sabíamos das dificuldades, mas Will, meu namorado sempre fora um aventureiro e ele queria muito fazer aquilo. Erámos quatro ao todo. O outro casal, Julia e Thiago estavam com a gente. A ideia era subir aquele monte inexpugnável e depois acampar e sei lá, fumar uns baseados e talvez, fazer uma orgia?"

Um corte aqui para relatar que pedi para ela nos poupar de certos detalhes sórdidos ou eróticos que não caberiam nesta investigação.

"Agora pode continuar senhorita Rocha". Então ela prosseguiu com seu relato: "Está bem, então. Lembro-me da péssima visibilidade. A subida era longa, apesar de não ser tão íngreme. Todos nós sabemos que é bem possível subir o Monte do Suplício a pé, caminhando e conversando tranquilamente, sem nenhum ponto de escalada. Apesar de que a trilha não é muito boa e nós sabíamos, como disse antes, dos perigos de nos perder ou dar de cara com uma onça pintada, ou coisa muito pior."

Aqui ela fechou os olhos, e quando tornou a abri-los, estava totalmente em prantos. Ela enxugou os olhos com a ponta de sua blusa, respirou fundo e continuou: "Se soubesse o que encontraríamos lá em cima, eu teria convencido Will e os outros a retornar. Mas estávamos todos empolgados. O que haveria de mal em acampar no alto de um morro 'mal-assombrado' num domingo de manhã?."

"Talvez os muitos avisos para não faze-lo?", eu perguntei, interrompendo seu relato. Ela me encarou e disse: "Jovens sempre quebram regras e avisos, senhor". Eu: "Por isso quebram a cara. Alguns aprendem, outros não. Mas subir o 'Suplício' é uma loucura, todos nós sabemos, ainda mais depois dos muitos 'avistamentos' comprovados ou não. Sou muito cético quanto a isso, mas prefiro evitar. Continue senhorita Rocha".

"Quando ganhamos o topo do monte já era de tarde, ou pensávamos que era. Quando se está lá em cima, não dá pra ter certeza, pois é verdade o que dizem. No topo do Monte do Suplício é sempre noite. Dá pra ver as estrelas mais perto, as constelações, as nebulosas, as estrelas cadentes. Tudo mais de perto, como se estivesse dentro de um telescópio gigantesco. E não dá pra ver o que está abaixo, pois as nuvens encobrem tudo. Encontramos uma gruta e levantamos o acampamento. Acendemos uma fogueira porque estava ficando muito frio. A barraca era enorme e caberia facilmente três casais ali dentro. Mas éramos só nós quatro mesmo. Conversamos um bocado e transamos um monte. Mas vou poupá-los deste detalhe, não é mesmo? Depois acendemos um baseado e fumamos por horas. Então fomos deitar".

"Foi aí que tudo começou. A barraca estava fechada e todos havíamos pegado no sono. Will, meu namorado, estava deitado ao meu lado com as pernas sobre mim. Eu o adorava. Ele estava dormindo feito um anjo que era, com aqueles cabelos dourados em cacho. Ah, como eu amava, senhores. Então, abri os olhos quando algo começou a andar por sobre a barraca. Era algo grande, e só dava para ver sua silhueta. Tinha muitas patas. A principio, julguei ser mesmo uma aranha, do tipo caranguejeira. Mas era muito grande. Não sei muito sobre medidas e proporções, mas julgando pelo tamanho da coisa, era maior do que minhas duas mãos juntas. Muito maior. A gastura que me dava quando as patas cabeludas daquela maldita coisa faziam ao rastejar pelo tecido de naylon da barraca me cortavam dos ouvidos às minhas entranhas. Era horroroso. Ela passava vagarosamente, talvez se deliciando com o som que provocava. Eu estava paralisada. Não sabia o que fazer. Eu queria gritar e acordar os outros mais não conseguia. Então, de uma hora para outra, mais aranhas começaram a se arrastar pela barraca. Elas subiam pela lateral e ganhavam o topo. Ou caiam sobre a barraca, fazendo barulho. Cada vez mais pesadas. Cada vez mais coisas chegavam. Mais e mais até a barraca ficar completamente cercada de aranhas, ou seja lá o que eram. Tudo estava escuro. Foi quando eu gritei".

"Todos acordaram e gritavam 'Meu Deus! Oh, meu Deus! O que é isso?'. Mas não havia tempo para respostas. Ficamos um tanto de tempo paralisados e chorando sem saber o que fazer, vendo as criaturas andarem aos milhares por sobre nossa barraca. Estávamos abraçados, esperando a morte chegar. Então, as aranhas começaram a furar a barraca. Elas usavam suas patas afiadas como navalhas ou suas garras potentes como alicates para cortar o tecido. Elas entraram como um verdadeiro exército de insetos, vindo em direção a gente. Foi aí que me dei conta de que aquilo não eram aranhas. Aconteceu tudo muito rápido, mas pude perceber que aquelas malditas coisas de olhos vermelhos não eram daqui. Eu já vi caranguejeiras antes senhores, e não me olhem com esses olhos. Sei do que estou falando. Seus pelos eram como agulhas e suas teias tão forte como cabo de aço. Uma delas segurou meu braço, e ainda trago o arranhão que me provocaram. E como queimava. As criaturas investiram contra nós e nada podíamos fazer. Suas patas afiadas cravavam sobre nossa pele e suas garras nos cortavam. Pareciam facas entrando e saindo de nós. Foi horrível, uma verdadeira carnificina".

"De alguma forma consegui me livrar da teia que me segurava, mas meus amigos não tiveram a mesma sorte. Corri o mais rápido que pude. Desci a ladeira e quando me dei conta, cansada e ferida, cheguei até este distrito para pedir ajuda. Mas vocês se recusam a faze-lo, me tomando por uma louca ou possuída."

E aqui se encerra o relato de Ellen Rocha. Confesso que fiquei bastante surpreso com sua história fantasiosa, mas sou um profissional e não posso abandonar meu lado racional. A prendemos e agora ela espera julgamento, acusada de matar o namorado e mais dois amigos a facadas. Provavelmente ela será encaminhada para uma clínica psiquiatra. Porém, eu não consigo deixar de sonhar com aquelas aranhas e com o Monte do Suplício. Será que Ellen estava certa? Não sei. Talvez eu deva deixar esta parte fora do inquérito. Não decidi ainda.

Conegunndes
Enviado por Conegunndes em 21/08/2019
Código do texto: T6725886
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