Dona Elizaura
Dona Elizaura encheu duas xícaras de café. Eram quase seis horas da tarde, e ela se preparava para o habitual encontro com seu marido, morto há cinco anos. Todos os dias, das seis da tarde até as seis da manhã, Seu Ernesto aparecia no canto do quarto, ao lado da televisão. Não aparecia em carne e osso, aparecia como uma energia, uma nuvem de luz disforme. A xícara de café era tão somente uma formalidade. Durante aquelas horas em que o mundo dormia, Dona Elizaura passava conversando com o marido, que, estranhamente, quando vivo, evitava qualquer tipo de diálogo com a mulher.
Dona Elizaura conhecera o marido em circunstancias bastante inusuais. Em uma noite de lua cheia, quando a então jovem Elizaura era perseguida por um lobisomem, surgiu o então menos jovem Ernesto para salvá-la. Ernesto arremessou um tijolo na criatura, que assustada, fugiu para longe. Elizaura apaixonou-se naquele exato momento por seu salvador. Seu Ernesto só se apaixonou seis meses depois, quando, por fim, teve intimidade com Elizaura. Naqueles tempos, Elizaura e Ernesto criaram um dialeto próprio, recheado de apelidos e juras de amor, que, provavelmente, seriam incompreensíveis para o restante da humanidade, unindo-os diante da dureza do mundo. Era, por assim dizer, um amor tão perfeito que não poderia ser real. Depois que o padre pronunciou três ou quatro palavras em latim e oficializou a união, Dona Elizaura foi de rainha a escrava.
Nas primeiras vezes em que o espírito de Seu Ernesto apareceu, Dona Elizaura teve medo, meteu-se embaixo dos cobertores, pensou chamar a filha, mas lembrou-se que Juliana havia se mudado para São Paulo com o marido. Depois quis chamar Rosaura, a solicita vizinha viúva como ela, mas que não entendia nada de espíritos e temia profundamente as coisas do além, e portanto, não lhe seria de grande ajuda. Dona Elizaura ignorou aquela coisa sobrenatural por algumas semanas, até que, reunindo a coragem que nem sabia que tinha, ajoelhou-se diante da luz e falou-lhe: - Quem és tu? Que quer em minha casa? E a Luz, imóvel no canto do quarto, respondeu-lhe: - Sou eu, teu marido, Ernesto.
Seu Ernesto, em vida, fora o mais covarde e inseguro dos homens, e esta covardia e insegurança tornaram-lhe um déspota que direcionava toda sua crueldade à mulher. Dona Elizaura aceitava com orgulhosa resignação as surras as quais era submetida, e depois, entre lágrimas, lembrava-se das personagens de suas amadas telenovelas, e como estas não eram tão diferentes dela mesma, todas mulheres que compartilhavam a mesma triste sorte. Nessa mistura de ficção e realidade, Dona Elizaura habituou-se a vida de cão e gato que levava com o marido. Quando Seu Ernesto adoeceu, vítima de uma doença no sangue, Dona Elizaura ajoelhava-se ao lado da cama, e pedia a ajuda de Santa Ignácia, que apesar de normalmente ser muito eficiente, nada pôde fazer no caso de Seu Ernesto. Ernesto Domingos Alves veio a óbito no dia vinte e um de março de mil novecentos e noventa. Dona Elizaura foi a mais inconsolável das viúvas. Sem o tirano marido, sua vida foi tomada pelo tédio e solidão, e talvez por isso, Seu Ernesto apareceu-lhe em forma de nuvem de luz que se materializa no canto do quarto, ao lado da televisão, das seis da tarde até as seis da manhã.
Em uma manhã, depois de passar a noite conversando com o marido, Dona Elizaura escorregou no chão da cozinha, bateu com a cabeça na pia – que estava repleta de louça coberta por gordura coalhada – e morreu, ou foi a algum lugar melhor, como dizem por aí.
Pobre Dona Elizaura, nunca soube que sofria de uma infecção nos olhos que comprometia sua visão e distorcia os focos de luz. Todos os dias, exatamente as seis horas da tarde, as luzes dos postes de iluminação eram acesas. A luz do poste em frente ao quarto de Dona Elizaura entrava por uma fresta da janela e refletia na parede. As vozes que escutava nada mais eram que oriundas de sua prodigiosa imaginação estimulada pelo aspecto visual da “aparição”.