A Maleta de Miguel Donato Clúa
Quando Miguel Donato Clúa regressou a seu povoado, Villa Aguayo, poucos foram os que puderam reconhecer aquele homem de físico débil, longos cabelos grisalhos e uma enorme cicatriz que nascia na testa e descia até o queixo. Esfregavam os olhos, acreditavam terem visto um fantasma. Miguel havia sido relegado a um distante rincão na memória dos aguayanos, e seu súbito retorno deixou a todo o povoado em um estado de apreensão. Seria aquele realmente Miguel Donato ou uma simples sombra do que houvera sido, pois não custava muito a se perceber que era um homem totalmente diferente o que agora cruzava o portão do antigo casarão que pertencera a seus pais.
O pesado portão de ferro estava aberto, o casarão , bombardeado pelo tempo, mostrava parte de sua estrutura, dando a impressão de que exibia suas próprias vísceras. Até mesmo seu outrora belíssimo jardim, mais parecia uma selva, as plantas tropicais que haviam sido plantadas por seu avô – Antônio Clúa – haviam crescido sem a intervenção do homem, que domestica e impõe ordem a natureza, desta maneira, as plantas acabaram por dominar bizarramente toda a fachada do edifício
Quando entrou no casarão, tentou, inutilmente, com ambas as mãos, abrir caminho entre as muitas teias de aranha. Dentro, pôde ver a mobília antiquíssima, que apesar de estar coberta por poeira, dava-lhe a impressão de que o tempo havia parado naquele lugar. Com uma limpeza – pensou – juraria que ainda estava na época em que seu pai - Agustín Clúa – dava estrondosas festas muito apreciadas pela alta sociedade aguayana, uma escapatória do tédio que sentiam no aborrecido povoado. Por trás dos pesados móveis estava a parede repleta de rachaduras, coberta por retratos emoldurados, onde brilhavam levemente todos os Clúas, toda sua árvore genealógica pendurada na parede. Todos mortos. Lembrete de que mesmo no casarão, o tempo jamais se estanca, segue apressado indiferente aos desejos dos homens. Miguel Donato aproximou-se de um retrato que exibia uma bela mulher, de olhos negros e lábios carnudos, com uma expressão que mesclava raiva e tristeza. -Tia, tia, sou eu...Miguel. Não me reconhece? Sou eu...seu Miguel.
Abandonou os retratos, subiu os treze degraus que davam acesso à parte superior do casarão. A cada degrau que subia escutava um rangido, semelhante ao gemido desconsolado de um amante traído. O andar de cima estava imerso na mais profunda escuridão. Teve de caminhar cuidadosamente, tateando tudo ao seu redor, até chegar a um quarto. Não o reconheceu. Devia ser um dos quartos de hóspedes. Jogou sua maleta no chão, que ao chocar-se contra o assoalho, produziu um som abafado. Sentou-se na cama, tirou do bolso um pequeno cachimbo e um pouco de tabaco. Tentou várias vezes, até que o cachimbo se acendeu, o quarto, inundado pela espessa fumaça produzida pelo cachimbo, adquiriu uma atmosfera quase irreal. De dentro da maleta escutou-se um grito, depois outros gritos que se seguiam cada vez mais altos. Eram gritos de horror, aos quais Miguel Donato escutava com indisfarçado enfado, até que disse:
- Cale-se. Cale-se!
A voz se calou por alguns minutos, e logo recomeçou. Trocara os gritos por terríveis insultos direcionados a Miguel.
- Filho da puta! Me deixa sair!
Miguel, irritado, deu um pontapé na maleta, o que piorou bastante a situação. A voz, encolerizada, seguiu insultando com um repertório de palavrões que deixariam embaraçado ao mais pérfido dos marujos.
Miguel Donato deitou-se, pressionava os ouvidos com as palmas das mãos, não conseguiria dormir naquela noite. Há muitas noites que já não dormia.
No dia seguinte, quando Miguel foi a pulperia de Don Ángel, todos os clientes que lá se encontravam deram uma boa olhada, de cima a baixo, no homem que chegava. Dois velhos que mateavam, com um desprezo silencioso, censuraram o filho de Agustín Clúa.
Afinal, por que regressara agora aquele infeliz que não tivera sequer a decência de voltar para enterrar o próprio pai? Aqui, em Aguayo, tinha tudo o que desejava, e pela frente uma brilhante carreira na politica. Por que abandonara o povoado? Dizem que foi ser contrabandista no Norte, pros lados do Brasil. É um bandoleiro, deve estar se escondendo da polícia.
Miguel pediu vinho, sentiu o ambiente pesado, os homens discutiam. Um sujeito que estava ao seu lado, mostrando-se irritado, falava a um velho que escutava a tudo com respeitoso silêncio, enquanto acariciava sua monumental pança.
-Aconteceu de novo! Não temos paz em Villa Aguayo! Na noite passada aconteceu novamente! Coitadinho do filho da Concepción! Aquele monstro desce as serras durante a noite e devora os nossos filhos!
-Duvido muito que exista alguém em Villa Aguayo que seja capaz de deter o monstro. - consentiu o outro.
Esta breve conversa foi rapidamente esquecida por Miguel Donato, porém, algumas semanas depois, lendo El Diario de Villa Aguayo, pôde inteirar-se melhor sobre o assunto:
***
Jaguar se alimenta de Carne Humana
O terrível jaguar aprecia, sobretudo, a carne de pequenos bebês, que indefesos, são destroçados pelos dentes e garras do maligno animal. Por toda Villa Aguayo pode-se observar as muitas mães, que desesperadas, munidas com cabos de vassouras, montam guarda ao lado dos berços de seus filhos, que dormem agitados, assombrados por pesadelos em que o jaguar os devora.
***
Miguel Donato buscou sua faca, mataria o jaguar, depois caparia o animal e guardaria seu pênis dentro de um jarro com brandy. Em uma fronha, meteu um cantil, uma caixa de fósforos, um pouco de tabaco, a faca. Percebendo a agitação de Miguel, a voz que vinha de dentro da maleta perguntou – O que está fazendo? - e com a recusa do homem em responder-lhe, a maleta gritou – Não me deixe aqui!
Antes mesmo que o sol despontasse ao leste, Miguel abandonou o casarão e a maleta, em pouco mais de meia hora deixava o povoado e chegava, junto com os primeiros raios solares, as serras, onde predominam soberanos os muitos pinheiros – que não eram nativos, haviam sido plantados pelos colonos alemães em fins do século XIX. O caçador deixou uma moeda sobre um tronco apodrecido, presente para a fada que vivia naquele bosque.
Durante todo o dia, encontrou-se com pequenos animais, coelhos, raposas, que em nada lhe interessavam. Queria o Jaguar. Ao anoitecer, deitou-se sobre o pasto e olhou as estrelas que iam, uma a uma, surgindo no céu. As estrelas -pensou- são nossas irmãs, nos protegem durante a noite. Lamentou-se por não conhecer seus nomes. Mas, que diferença faz saber o nome de uma estrela? Não pelo nome seria ela mais ou menos estrela, é uma estrela e isso já basta. Dormiu, dormiu tanto tempo que se poderia dizer que Miguel Donato Clúa houvera dormido durante semanas, ou meses. Durante todo esse tempo, teve o mesmo sonho que se repetiu muitas e muitas vezes:
Miguel se sentava sobre uma confortável poltrona em frente ao casarão. Sobre a fachada do edifício eram projetadas imagens, como se estivesse em um cinema ao ar livre, semelhante aos que quando criança, assitia as comédias mexicanas. O enredo do filme do sonho era bastante simples. Primeiro um plano geral, onde apreciava Villa Aguayo, uma imagem antiga, da época em que o povoado era repleto de insalubres matadouros, e quando chovia, o sangue escorria por todo o povoado, dando a impressão que Villa Aguayo era cortada por inúmeros rios de sangue. A imagem se cortava, agora viam-se duas pessoas. Uma mulher madura beijava a um jovem imberbe. Eram dois amantes. Porém, logo a coisa mudava de rumo, uma violente discussão irrompia entre eles, o jovem se tornava violento. - Você é um menino que se iludiu. Sou casada, amo meu marido, foi somente uma aventura – dizia a mulher que não se intimidava pelo rapaz que erguia, ameaçadoramente um punhal. - jamais trocaria meu marido por você – e com essas últimas palavras, a mulher soltou uma debochada gargalhada. O rapaz, enlouquecido, mergulhava o punhal no ventre da mulher.
Miguel movia-se em sua poltrona, mas era incapaz de levantar-se e impedir o assassinato.
Quando despertou, viu em meio as árvores um par de olhos verde-ouro que o observava. Eram os olhos do Jaguar, que ao perceber que o homem saía de seu longo sonho, sem emitir ruído algum, como se tivesse quilos de algodão amarrados as solas da patas, passou a caminhar em pequenos círculos ao redor de Miguel. Que bela criatura, pensou, Miguel desembainhou sua faca, e quando o animal deu-se conta das intenções do caçador, mostrando toda sua força e agilidade, saltou sobre o homem. Miguel Donato, com inesperada facilidade, golpeou o animal, cravando a faca em seu musculoso dorso. O Jaguar caiu ao seu lado, rodeado por um charco de seu próprio sangue.
Estes animais, quando feridos, tornam-se ainda mais perigosos, e quando Miguel se preparava para a continuidade do combate, surpreendeu-se com o Jaguar, que permanecia no chão, recusando-se a lutar. Como a serpente, que observando o rato hipnotizado, planeja como dará sua dentada final, Miguel passou longos minutos contemplando o Jaguar. O animal tinha todo o corpo revestido por um espesso couro coberto por manchas negras. Lembrou-se de um homem que conhecera há muitos anos no Rio Grande do Sul, o Velho Sebastião, que tinha a incrível capacidade de ler as mensagens codificadas que essas manchas trazem. Que histórias tristes, fantásticas aquele animal teria para contar? Guardou a faca. Não matou o Jaguar.
Ao regressar ao casarão, e subir os treze degraus que o levavam ao seu quarto, não se surpreendeu com os terríveis insultos que a maleta desferia contra o pobre Miguel. Sentou-se na cama, acendeu um cigarro.
-Desgraçado! Filho da puta!
-Desculpe, tia. Desculpe.
Miguel Donato Clúa sabia que, por toda a eternidade, estaria atado àquela maldita maleta.
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