OLIVER
A sopa de creme de cebola e salsa, fumegava em suspiros encaracolados de fumaça cheirosa. Mas nem olfato ou apetite pareciam festejar os privilégios da boa culinária popular.
A mãe, Adelaide, a filha mais velha Alice e a mais nova Ariadne, ocupavam metade da mesa redonda, num semicírculo conflituoso, onde olhares desconfiados se cruzavam eventualmente, como se se esbarrassem indolentes e sem pedir desculpas.
-Passe o sal, -disse Alice, enfim quebrando o silêncio.
-Você precisa cuidar com o sal, mocinha. Já sabe! Ou vai acabar como seu primo Jorge, -alertou a mãe, sensivelmente alterada.
-O Jorge, mamãe? Não me compare a este jeca. Tenho a infelicidade de ser sua parente, não quer dizer que compartilhe qualquer coisa com este analfabeto, além de genes.
Alice riu com deboche. Depois virou-se para a irmã mais nova, Ariadne e piscou. A irmã era sua cúmplice em tudo. As duas juntas guardavam segredos que nem Adelaide, nem ninguém conhecia. Segredos que se revelados certamente colocariam em dúvida tudo aquilo que conhecemos deste mundo e de outros.
A situação complicada que foi se arrastando e se agravou muito até aquele jantar constrangedor, não poderia ser outra além do tio Olegário, morto há dois dias de um ataque do coração. O velório, feito às pressas na sala da casa delas, deu-se da forma mais tragicômica, e por isso a mãe no jantar mal suportava as fitar de frente. Como poderia concordar com o que fizeram aquelas duas destrambelhadas?
Na manhã seguinte Alice era empurrada por Ariadne no balanço e as duas já concatenavam planos mirabolantes.
-O que você sabe dele? Conversaram sozinhos?
-Não poderia, ele só aparece quando estamos juntas. Nós duas o encontramos e sempre foi assim que combinamos, não é? -Relatou a obediente Ariadne. Temia tanto essa irmã, que não poderia aperceber-se do menor desvio de caráter ou do menor deslize, sem que se penitenciasse por isso, a noite, em suas orações.
-Hoje às 17h, o encontraremos no oco do salgueiro, onde cresceram as madressilvas. Prometemos brincar com ele e não podemos deixá-lo sozinho, até que consiga encontrar sua família.
-Sim, irmãzinha. Você tem razão. Se os homens maus o pegam ele está encrencado e nós também. Como vamos nos safar? O que diremos?
Não podemos dizer a verdade. A forma como o encontramos. Imagina, não é possível. Não permitiremos.
Os dias passavam rápido naquele verão calorento de 1874 e as irmãs corriam e pulavam entre os montes, em meio às plantações de café. Mexendo com os escravos e fazendo a alegria de todos. Cícero, um negrinho que já nascera liberto, corria atrás delas pra brincar. Mas elas sempre fugiam dele. Embora sua família fosse abolicionista e nem elas concordassem com as torturas aplicadas aos negros, não pretendiam segregá-lo ou descrimina-lo, só se divertiam ao ver o negrinho correndo pra lá e pra cá, sendo feito de bobo.
O que nem elas, nem ninguém esperava, foi o que aconteceu naquela noite chuvosa de abril. Na casa grande o silêncio era absoluto, mas na senzala a agitação prenunciava algo ruim. Murilo, o capataz, logo afivelou o cinto e calçou as botas de montaria. O chapéu mesmo que não fosse necessário, o deixava em alerta e a tocha que queimava altaneira, inflamava seu espírito de valentia e heroísmo.
O chicote pendurado no cinto era um adorno, mas em caso de fuga, claro, teria de usá-lo. Nunca foi um bom capataz, por isso ousava em sê-lo ali, na fazenda dos Ferraz, onde não precisaria impor-se pela violência. Abandonou a vida de caixeiro viajante quando conheceu o Senhor Camilo, dono de todas aquelas terras que seus olhos de uma vez não podiam alcançar. Era um homem honrado e justo. Na senzala os escravos dormiam tranquilos. Nenhum faltando, os luzeiros queimando em seus lugares, a palha estalando, os grilos cricrilando lá fora. De repente o barulho. O mesmo barulho de antes, só que mais forte. Um som estrondoso, ameaçador, como um cachorro bravo, de grande porte.
O rugido aumentou, agora o ouvia do seu lado. Ao se virar não viu nada. Então correu. Correu, correu, até chegar no poço, que estava no outro extremo, junto à cerca, nos limites da propriedade.
Quando ainda sem fôlego se recuperava, Murilo ouviu um coche se aproximar rapidamente. Não era o coche do seu senhor, nem nenhum que conhecesse. Diferente de todos os coches que já vira. Todo negro com detalhes adornados em ouro. Pensou que fosse o coche da morte. Mas seu cocheiro não era a morte e nem tinha este veículo um cocheiro. Eram cavalos desembestados que galopavam fogosamente como selvagens.
-Sinhô? Quem tá aí, é quem? O moço tá na propriedade dos Ferraz. Desculpe, mas vou ter que pedir...
-Pedir o que, meu rapaz? Como ousa deferir palavras ameaçadoras para mim? Sabe com quem está falando, meu jovem?
Ao ver a figura descortinada pelo brilho da lua cheia, Murilo caiu no chão. Ajoelhado e com as mãos juntas ele rezava e se atrapalhava em palavras confusas, misto de medo e desespero.
-Sim, eu sei com quem tô falando, sim sinhô. É um fantasma, que por Deus o Sinhô Inácio já deixou esse mundo tem mais de 30 anos. Eu era um rapazola que mijava nas calças quando vosmecê morreu.
-Ora seu tonto. Pareço morto? Anda, toca minhas roupas, aqui, meu corpo. Esse braço parece morto e este tapa, sentiu? Toma, capataz inútil!
-Arrê égua, que eu não volto aqui nunca mais. Que tenho mais medo de assombração que de qualquer outra coisa.
Depois disso o capataz nunca mais foi visto na região. O Senhor Ferraz ainda fazia buscas pelas cidades vizinhas. Era um bom servo, perda lastimável.
No dia 21 de setembro, primeiro dia de primavera daquele ano, as irmãzinhas brincavam nos fundos da casa grande. Por ali os escravos se escondiam quando queriam descansar, pra não deixar o patrão injuriado e as mucamas e lavadeiras se reuniam pra fofocar, geralmente falar dos brancos ou dos seus senhores. Assim não podiam se divertir com seu amigo, então correram para além. Lá onde não tinha mais lavoura, nem plantação. Onde a floresta assustadora salpicava suas ainda tenras garras.
-Pare, eu preciso descansar. Sou menor, deve me acompanhar, não correr mais que eu! Credo!
-Ah, sua chorona. Falta pouco. Podemos ir andando, é ali na frente, vamos.
Quando pararam frente ao salgueiro, parte da árvore se partiu. Era o oco, revestido por dentro de serragem e coberto por fora de cascas de árvores, que serviam como camuflagem. De dentro saiu um anão, um serzinho diminuto, com menos de um metro de altura. Tinha os olhos grandes e saltados, a cabeça saliente e pontiaguda, também um queixo proeminente, pernas curtas e bracinhos finos e alongados. Em comportamento e tamanho era uma criança, brincava com as irmãs e ria pra elas e delas. Saltava nas árvores, comia as frutas e fazia mil estripulias.
Quando as irmãs a viram pela primeira vez, a criatura não falava, mas depois de uma semana pareceu acumular e aprender seu idioma, tão rapidamente, que em menos de um mês já sabia falar tudo, até de trás para frente.
Foi quando Pepe, o gato de estimação delas morreu, que elas tiveram medo de Oliver pela primeira vez; assim batizaram o bicho saltitante e inquieto. Oliver Twist era a história predileta das irmãs, que judiavam a preta Ana todas as noites, fazendo-a ler repetidamente trechos do longo romance. A curiosidade macabra a respeito do gato foi a seguinte.
Quando morreu foi encontrado caído ao lado de um formigueiro, de onde as formigas já faziam carreiras para devorar sua carne morta. As irmãs, que brincavam sempre por ali, foram as primeiras a ver o bichano morto. O choro das pequenas acordou Oliver, que se livrou da porta improvisada do oco do salgueiro e correu pra consolá-las.
-Não chorem, meninas. A natureza sempre se renova. Eu vou mostrar uma coisa! Disse isso e começou a mover os braços e o quadril numa cadência oscilatória que lembrava as danças tribais africanas e depois de um tempo o gato morto foi se movendo, até se levantar, encarar as irmãs com desdém, se sentar e se lamber. Com o esforço
Oliver se sentiu exaurido, aquilo parecia lhe fatigar sobremaneira e então caiu desmaiado. Imediatamente o gato voltou a tombar, tão morto quanto antes.
A graça do episódio do tio Olegário, no velório, que não teve o mesmo impacto nos demais convidados que para as meninas, estava em Alice esconder debaixo da saia o serelepe Oliver, que ressuscitava o morto, o deixando cada vez com a cara mais atônita e hilária, enquanto todos se distraiam na cozinha com conversas, comes e bebes. A repreensão que sofreram as garotas não foi outra senão as galhofas e risadas escandalosas, em pleno velório.
Já o episódio vivido pelo Capataz Murilo não pôde ser esclarecido. Mas não deve haver suposição diferente de tudo que já foi contato.
O jovem Oliver votou várias vezes para nos visitar. Existem tantas histórias sobre ele que não caberiam aqui. Sua raça, tinha esse dom, que estavam aprendendo a desenvolver com os humanos. Sua composição química irradiava vida e poder de cura e podia transformar e animar mesmo a matéria morta. Eles se regeneravam e se curavam. Mas entre eles isso era normal e foi só quando puderam entender que os humanos não eram dotados dos mesmos talentos naturais é que passaram a se aproveitar de sua condição superior, mas não com a intenção de fazer o mal, apenas se divertir. Porque não?
Eles se conectavam com a natureza de forma a se completarem e se comunicarem, mas com o tempo aprenderam a respeitar algumas condições limitadas em que se encontravam os seres humanos, os animais e o ecossistema do planeta terra e deixaram de interferir contra as consequências inerentes dos perecíveis e frágeis seres.
Os pais de Oliver voltaram para buscá-lo e foi assim desde quando o fogo projetava sombras estranhas pelas paredes das cavernas e o medo assolava as mentes e os corações dos primeiros homo sapiens.
Hoje nossos vizinhos cósmicos estão cada vez mais expostos. Mesmo assim seu segredo continua bem guardado, apesar de alguns arranhões em sua imagem.
De todas as nações e raças de alienígenas que existem, a que Oliver pertence é só mais uma. Tanto há que se contar dos nossos amigos perdidos no vasto universo e ignorá-los é o mesmo que mergulhar até a metade mais profunda do oceano e dizer que nada existe da metade pra baixo, sem ter descido até lá pra saber.