O LOBISOMEM DA FAZENDA SANTA CRUZ.

Era a primeira sexta feira de agosto de 2008. O tradicional terço de dona Jurema, na fazenda Santa Cruz, tinha seu início pontualmente às 21 horas. Nesse horário, Bertoldo, o filho único de Jurema e Aparecido nascera. Dez anos antes. Um parto difícil pois o cordão umbilical poderia enforcar o bebê. Um parto de risco. Jurema fez promessa a Nossa Senhora Aparecida. Se o menino nascesse bem, rezaria um terço no dia, hora e mês do parto. Os médicos estavam apreensivos. Um último exame mostrou que o bebê mudara de posição, horas antes das contrações. Um milagre. Bertoldo nasceu saudável. A fazenda ficava a seis quilômetros de Analândia, São Paulo. -" Jurema! Reze esse terço mais cedo. Nossos amigos vão embora daqui tarde. Todos têm de acordar cedo!!" Argumentou o marido. -" Mas de jeito nenhum, paixão. Nosso filho nasceu as 21 horas. O terço será às 21!!! Ponto!!!" Após a reza seria servida a tradicional galinhada. O pátio da fazenda estava repleto de convidados. A maioria das pessoas foram a pé até a fazenda. Uma boa caminhada em meio ao matagal, cruzando pastos e plantações. A lua cheia quebrava a escuridão total. O pátio enfeitado de bandeirinhas coloridas. Dona Dirce e dona Fátima puxavam o terço. Alguns homens abriam a boca com sono. As crianças faziam barulho. Fim do terço. Aplausos. Enfim a hora da galinhada. A fila com mais de cinquenta pessoas. As mesas com os panelões de arroz quentinho com açafrão e pequi. Galinhada feita em panelas de ferro, no fogão a lenha. As garrafas de cachaça passando, entre os homens, de mão em mão. Risos. Alegria. Vivas ao menino Bertoldo. O forró saía potente das caixas de som da caminhonete do doutor Carlos Franco. O dentista veio de Americana, com a filha Mariana, especialmente para o terço. Alguns casais dançavam, levantando a poeira. Horas depois, algumas mulheres ajudavam a lavar a louça. Meia noite. Muitos tinham ido embora pras suas casas. Uma moça, Selma, procurou Jurema, aos gritos. -" Dona Jurema. O Nicolau sumiu. Roubaram meu filho!!!" Isaac, o marido de Selma estava desolado. -" Ele estava dormindo. Alguém entrou em casa e o raptou!!! Eu não vi nada." Aparecido chamou algumas pessoas pra ajudarem a encontrar o menino de dez anos. Procuraram o garoto nas casas da colônia. Rogério, Leandro e Eudes entraram no canavial com lanternas. Um grupo de vinte homens procuraram o garoto no morro do cuscuzeiro enquanto outros voluntários foram até a cachoeira Macaúva. Gritavam o nome do menino. Selma chorava sem parar. Aparecido levou Isaac até a delegacia da cidadezinha. O delegado Spinelli prometeu empenho. Aparecido e Isaac voltaram, às duas horas da madrugada, pra fazenda. -" Você estava adivinhando, paixão. Nunca me pediu para mudar o horário do terço!?!!!" Disse Jurema, ainda acordada, preocupada. Eles ouviram um uivo, ao longe. Aparecido se arrepiou. -" O lobisomem o levou. O licantropo raptou Nicolau. Eles raptam crianças não batizadas." Jurema se benzeu. Aparecido trancou bem as portas e janelas da casa. Assim que o dia amanheceu, Aparecido foi até a casa de Bernadete. A viúva morava sozinha numa chácara, retirada da cidade. Ele buzinou o Fusca verde. -" Compadre Cido. Seja bem vindo. Acabei de fazer um café." Bernadete era enfermeira, assistente social e parteira. Foi colocada a par do sumiço do menino. Ela abriu uma gaveta e tirou um caderninho. -" Aqui estão os nascidos que minha mãe pôs no mundo. Os que eu pus no mundo também..." Aparecido estava apreensivo. -" Não. Lobisomem é macho. Deixa eu ver. Tem nascido mais meninas, ultimamente." A mulher falava sem parar. -"Lucas, Kauan, Bruno...disse-me que ouviu uivos, compadre??? Achei.... Amarildo. Tem que ser ele. É o oitavo filho do compadre Tinoco. Teve sete filhas antes dele. O oitavo filho homem após sete mulheres vira lobisomem!!! Amarildo mora em Recife." Aparecido franziu o cenho. -" Pode estar aqui visitando um parente?!!??" A mulher sorriu. -" É só o que posso ajudar. Espero que encontre o Nicolau." Aparecido agradeceu a ajuda e se despediu. A tarde caiu. Ele foi a delegacia. Diligências e buscas pela grande região foram em vão. Nenhum sinal do menino. Na praça da cidade o assunto era o rapto de Nicolau. As pessoas, todas com medo do lobisomem. Aparecido entrou no bar do Zé Gordo pra tomar um refrigerante. Esbarrou num rapaz alto que saía. -" Perdão, moço." O rapaz fez sinal de positivo com o polegar. Aparecido o encarou. Era pálido, de orelhas grandes e narigudo. Aparecido lembrou-se do personagem de Roque Santeiro que se transformava em lobisomem. -" Como era o nome do personagem?? Ahhh, professor Astromar!!!" O personagem virava lobisomem, uivava pra lua e aterrorizava a cidade de Asa Branca, fictícia. -" Quem era aquele rapaz, Zé Gordo?? O alto, branquelo???" O dono do boteco sorriu. -" Um primo visitando o Tião. É o Amarildo, de Recife." Aparecido deu um salto do banquinho. Correu pra rua mas Amarildo desapareceu. Era noite. Era escuro. Zé Gordo disse-lhe onde Tião morava. Aparecido foi pra casa. Trinta minutos de carro até a fazenda. Jurema não estava em casa. Aparecido intuiu que a esposa estivesse com Selma. De fato, Jurema estava com Bertoldo na casa dos pais de Nicolau. Aparecido colocou a esposa e os pais do garoto sumido a par de tudo que descobrira. Após o jantar, Aparecido e Isaac foram procurar o delegado. -"Tenho balas de prata. Só elas matam lobisomem!!! Encontraremos esse bicho!!!" Disse o delegado. Três policiais seguiram com eles até a casa de Tião. -" O Amarildo saiu. Não sei onde está." Disse Tião, sem nada entender. O delegado, com Aparecido e Isaac, retornaram a fazenda Santa Cruz. Os faróis dos carros iluminaram a estrada de terra. Gritos. O delegado arregalou os olhos. Pisou no acelerador da viatura. Aparecido viu o ser peludo correndo atrás de Jurema. Era metade homem, metade lobo. Jurema estava a poucos metros de casa. O bicho percebeu a presença dos homens. O lobisomem estacou. -" Vade retro, coisa ruim." Gritou o delegado. Jurema entrou na casa e trancou a porta. O delegado e os policiais atiraram no lobisomem. Os guardas amarraram o bicho quase morto. Jurema, Selma e os moradores da fazenda vieram ver o ocorrido. O rosto do lobisomem foi mudando de feições. As presas sumiram. Um homem nu se revelou. Amarildo chorava. -" Onde está Nicolau, Amarildo???!!" Perguntou Aparecido, com um pouco de pena do rapaz. -" Gruta da Anta!!!" Sussurrou o moço, se contorcendo e voltando a aparência humana. Amarildo olhou para a lua cheia e morreu. O delegado foi até a gruta, longe cinco quilômetros dali. Nicolau estava vivo. Assustado mas vivo. Era um menino corajoso. Jurema recuperou-se do susto de ser perseguida pelo lobisomem. Selma e Isaac receberam o filho de volta. O batizado de Nicolau aconteceu no domingo seguinte, na matriz de Analândia, Senhora de Sant'Ana. Tudo voltou ao normal. Enfim, no ano seguinte, Jurema decidiu mudar o horário do terço pras dezesseis horas!!! FIM.

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 04/05/2019
Reeditado em 06/05/2019
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