a caixa

A caixa

Muitas pessoas sonham com apartamentos maiores, carros confortáveis, férias incessantes descobrindo países e lugares onde uma fotografia lhes mostra o que os seus olhos limitados nunca irão perceber. Eu nunca desejei, ou melhor, tive tempo para desejar, nada destas coisas. Eu fui atraída para o que se tornou o objeto dos meus desejos e depois uma parte de mim – de como eu passaria a existir.
Era uma caixa de música comum; o espelho no interior da tampa, o espaço reservado para as joias e o palco de vidro desenhado com mosaicos circulares onde havia uma pequena bailarina sem rosto que dançava uma música que ninguém ouvia dançar. A chave que dava corda à caixa de música estava emperrada e era dona de um movimento impossível. Não podíamos escutar a melodia monofônica, metálica, que um dia junto com a bailarina aos rodopios imaginávamos ter encantado aqueles que a admiravam. Éramos quatro crianças. Quatro irmãs. E não tínhamos ideia de como a caixa de música havia chegado à nossa casa. A minha irmã mais velha disse que a havia encontrado em nosso quarto assim que nos mudamos. A do meio disse que foi ela quem achou a caixa debaixo da pia do banheiro. A menor jurava que em um dia chuvoso escutara batidas na porta e ao abri-la a caixa estava lá. Eu sei que soa estranho. Mas pelo menos era isso o que as minhas irmãs falavam. De todas elas eu sou a única deixada com vida para lhes contar esta história.
Certa noite eu esperei que todas as minhas irmãs dormissem e fui brincar com a caixa de música. Sozinha, mesmo. Porque a caixa, não pertencendo a ninguém, obrigava-nos a dividi-la enquanto a outra aguardava a sua vez. Então, mesmo cansada, acordada a noite inteira, queria aquele momento com a caixa só para mim. Cruzei o nosso quarto bem devagar. E retirei a caixa da estante; agora a achando pesada como se algo infinitamente maior tivesse entrado nela. Voltei para a minha cama e a abri. Me olhei no pequeno espelho. Tentei girar a chave emperrada na fechadura. Era muito dura. Não se movia. A chave ereta e rija quase rasgou o meu dedinho. Fechei a caixa. E virando de lado a escondi com a barriga. Foi quando escutei uma das minhas irmãs se mexendo na cama, depois a outra, e depois a mais velha. Elas gemiam. Então eu pensei: “E se elas acordarem? Ah, eu sei. Elas irão tirar esta caixa mesmo sem música de mim!” Deveria me esconder! …Rastejei para debaixo da cama. E rastejei quase encostando na parede; ali estava mais escuro. Eu escutava do meu cantinho empoeirado apenas os gemidos, e junto com os seus gemidos, para a minha surpresa, a caixa começa a funcionar! Enquanto me olho no espelho escuto uma melodia tão linda, tão encantadora e a pequena bailarina dançando rodopiando como a muito tempo não fazia – eu temia que a música as acordasse – foi ai que olhando no pequeno espelho eu vejo uma pequena bailarina sem rosto , ela ganha vida e agarra o meu rosto, dizendo que o queria emprestado. Ou ela o arrancaria de mim eu disse - sim eu empresto - tudo se acalmou quando emprestei o meu rosto à bailarina. A bailarina rodopiou e dançou embalada por aquele som magico tão lindo, por fim a música terminou ela parou de dançar e devolveu o meu rosto. Não queria nunca mais dividir a caixinha de música com ninguém e a implorei que me ajudasse. A bailarina pôs a mão na barriga, e o quarto inteiro começou a girar e encolher. Então eu vi o corpo da bailarina coberto de chamas onde a cabeça que queimava não era a dela, mas a minha, eu escutei a sua voz que rouca me dizia: “Não tenha medo menina, que eu te ajudo sim!” E foi assim que uma por uma as minhas irmãs acordaram assustadas e pintadas de vermelho – e cada uma com um pedaço do pequenino espelho atravessando-lhes a garganta que não as deixariam mais falar, elas gritavam mais ninguém ouvia logo estavam mortas a bailarina dizia agora a caixa e sua e você pertence a caixa como eu.
Sim, hoje eu moro sozinha e já estou velha, bem velha – eu lhes digo. E moro aqui no porão desta mesma casa. Os meus pais logo se foram, depois das irmãzinhas, também pintados de vermelho. E aqui, nem eles nem vocês, nunca irão me encontrar porque vivo dentro da minha caixa com a bailarina que dança e dança sem parar.
ideraldoluis
Enviado por ideraldoluis em 18/04/2019
Reeditado em 19/04/2019
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