Assombração (parte final)

O pôr do sol se esvaia lentamente enquanto as águas do rio Caeté mansamente margeavam a pequena cidade ...

Evangelista estava no cais do porto bebendo umas pingas e jogando conversa fora com antigos parceiros de pescaria quando foram lhe chamar ...

Ao chegar em casa deparou-se com seu filho mais novo chorando abraçado com a irmã. Ela com uma voz meio esganiçada foi logo lhe falando.

- Pai, o Francisco viu uma mulher que não tinha cara ...

- Que desgraça é que tu viste? – Um exasperado Evangelista pegava com força o menino pelo braço e lhe perguntava.

- Num sei pai, num sei. É uma mulher que ficava me olhando. Num dava prá ver a cara dela. Ela tava parada na porta da sala. Fui na cozinha pegar água do pote e quando voltei ela tava lá me olhando.

O menino tremia enquanto falava. Suas feições tensas pelo medo pareciam uma máscara malfeita.

Ver seu filho daquele jeito deixava-o angustiado e impotente. Algo ruim surgira em sua casa e ele não sabia o que fazer para enfrentar.

- Que excomungação é essa já? Cadê ela, menino? Fala! Cadê essa mulher?

Em uma reação brusca Evangelista corre para a cozinha e pega um terçado. Movido pela raiva ele sai pela casa gritando e brandindo a arma.

- Aparece desgraçada! Aparece que vou te torar no meio. Tu vais atentar o cão, mas não vai mexer com meus filhos - Gritava isso enquanto corria pelos quatro cantos da casa ameaçando uma presença que sabia ser invisível.

- Aparece, peste dos diabos! – O terçado em sua mão descrevia perigosos e inúteis arcos a frente de seu corpo.

- Para, papai. Num faz isso! – O menino gritava abraçado à irmã que também chorava. Ambos com medo da mulher sem rosto, mas também assustados pela reação violenta do pai.

Evangelista passou apenas alguns minutos nesse acesso de raiva e desespero. Após isso sentou-se no chão da sala e ficou de cabeça baixa por muito tempo.

Alguma coisa se manifestara naquela pequena casa.

Nunca fora homem de muita reza. O máximo que fazia era um “pelo sinal da santa Cruz” quando ia dormir e isso não era sempre. Sua falecida mulher é que gostava dessas coisas e sempre participava da Festividade de São Benedito e do Círio de Nazaré em Belém. Ela saberia o que fazer nessas horas. Queria muito que estivesse ali para ajudar ele a enfrentar aquela coisa.

Nessa noite os três dormiram na mesmo quarto. Os dois filhos apertados na mesma rede e Evangelista com o terço da finada esposa enrolado em uma das mãos.

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Entre uma baforada e outra Evangelista confabulava com o Velho Dino, seu companheiro de muitas jornadas.

- Minha casa é visajenta*, compadre. Tem uma coisa excomungada lá.

- Isso não é Feitiço. É gente morta que tá assombrando, compadre. Tu tens que procurar uma pajelança**, uma reza forte pra dar descanso pra alma dela. Procure saber se já num morreu gente lá na sua casa.

- Em casa só morreu a Conceição, que Deus a tenha! Ela não ia assombrar a gente. Não tem cabimento ela aparecer sem cara pra família dela.

- Então é gente que morreu lá perto ...corre, atrás, homem. Tem que esconjurar isso.

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A fumaça que exalava do tauari*** na boca do velho era adocicado e enjoativo, seu cheiro impregnava a casa toda e se misturava aos cânticos indígenas e às rezas católicas que ele proferia.

O velho fumava, entoava cânticos e ingeria uns preparados feitos com ervas e raízes. Dançava segurando um maracá em uma mão e três penas de cores variadas na outra. Seu corpo fazia movimentos estranhos ao mesmo tempo que sons guturais impregnavam o ambiente.

Com o medo lhe atravessando a alma Evangelista fechava os olhos e recitava mentalmente a única oração que conhecia: ”pai Nosso que estais no céu, santificado seja o vosso Nome ...”

Para garantir que a mulher sem rosto tivesse descanso, Evangelista foi no dia seguinte na igreja de São Benedito e encomendou uma missa. Fez questão de pedir que o padre fizesse a cerimônia mais bonita que pudesse, com muita oração e música religiosa.

Os primeiros dias após a pajelança e a missa foram de tensão para Evangelista e seus filhos. Havia um medo latente de que novamente a estranha mulher sem rosto tornasse a aparecer.

Aconteceu que os dias passaram e os acontecimentos nunca mais se repetiram. Um ano depois do ocorrido Evangelista foi embora de Bragança com os filhos. Havia ido morar com uma filha sua que tinha casado com um militar em Belém.

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Belém, estado do Pará, 2014

Murilo Evangelista acordou suado, ofegante e ainda assustado com o sonho que tivera.

Havia ido dormir mais tarde pois ficara navegando na internet procurando material para um trabalho da universidade.

Que sonho horrível! Ainda sentia o cansaço nas pernas de tanto correr sem que conseguisse sair do lugar.

Sua respiração aos poucos vai se normalizando, mas em sua mente ainda está a imagem nítida de uma mulher sem rosto ...

* Visajenta: relativo a visagem, que se diz daquilo que é fantasmagórico; aparição, fantasma, assombração.

** Pajelança: rito que mescla práticas religiosas indígenas com elementos católicos, espíritas e de seitas afro-brasileiras.

*** Tauari: espécie de cigarro feito a partir da casca de uma árvore chamada tauarizeiro. Usado em rituais de xamanismo.

Este pequeno conto baseou-se levemente em fatos vivenciados por meu avô materno e foi inspirado nos textos do amigo Rocheteau, aqui do recanto das Letras.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 15/01/2019
Reeditado em 15/01/2019
Código do texto: T6551235
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