Um Chamado no Meio da Noite.

Doutor Marcos, este é o meu nome, salvar vidas é a minha profissão. Em vinte anos de trabalho eu já vi muita coisa, mas nada se compara ao chamado de emergência que eu recebei noite passada. Preciso relatar o ocorrido nessas folhas de papel, mesmo que no fim ninguém as leia. Essa é a minha única forma de me manter lucido, depois de tudo que eu vi.

Eu estava dormindo tranquilamente em minha cama, quando acordei com o meu celular tocando. Tateei minhas mãos de um modo quase sonâmbulo, olhei para o relógio de parede a minha frente. Três horas da madrugada. Quem poderia ser a essa hora? Pensei comigo mesmo. Alô! Quem fala? Murmúrios desconexos do outro lado da linha... Olá, Doutor? Sim! Falei de modo brusco e agressivo. Sei que é muito tarde...(Barulho de água!) mas precisamos de sua ajuda. Prossiga! Nem sei por que permiti que aquela ligação continuasse, talvez fosse o meu instinto de médico, o meu vicio saudável em querer salvar vidas. Doutor! Sei que seu nome é Marcos e que você é um dos melhores médicos da cidade, e também parece ser o com a alma mais nobre, andamos lhe observando, sabemos como você tem prazer em cuidar daqueles que carecem de seus cuidados..(O barulho de água foi ficando mais forte.)por favor nos ajude! O senhor é o único em que confiamos. Confesso que estremeci um pouco, algo em mim me dizia que eu deveria ajudar aquele desconhecido mas outra parte do meu ser gritava comigo para eu desligar aquela ligação enquanto ainda havia tempo.

Pode falar amigo, se estiver ao meu alcance eu irei lhe ajudar sim...nem precisa se preocupar com dinheiro. Do outro lado da linha ouvi algo parecido com uma gargalhada distorcida, a voz era mais semelhante a um ruído de algum bicho do que a uma rizada humana. Meu coração acelerou. Doutor aprecio sua boa vontade, mas dinheiro não é problema para nós. Temos condição de lhe pagar! E iremos lhe pagar muito bem. Eu tentei falar algo mas fui interrompido. Não perderemos mais tempo Doutor Marcos, minha filha está morrendo. Senti um aperto em meu peito quando ele disse isso. Isto é inevitável Doutor! Mas ela também está gravida, eu acredito que o senhor é capaz de salvar a criança. Nesse momento comecei a entender a real gravidade da situação, senti que o destino estava me tirando da minha cama de madrugada para me colocar em uma direção que iria ampliar completamente a minha compreensão sobre a vida e a morte. Seria impossível eu recusar aquele pedido de ajuda! Algo em meu ser me dizia que eu iria salvar mais de uma vida naquela noite.

Pois bem meu desconhecido amigo, verei oque posso fazer pelo seu neto e também por a sua filha. Doutor , esqueça minha filha é a criança que realmente importa. Havia algo de doloroso naquela voz, era como se aquele desconhecido tivesse abandonado a filha por causa de alguma decepção com a mesma. Estranhamente eu não conseguia sentir nojo da atitude daquele pai, como eu disse, algo em sua voz parecia justificar tal atitude. Seu coração parecia trazer um grande pesar. Decidi não me aprofundar em questionamentos sobre o aparente descaso daquele homem com sua filha que estava morrendo.

Aonde você estar meu amigo? Minha localização é difícil de lhe dizer Doutor, por isso prefiro que alguns homens de minha confiança lhe busquem em sua residência. Não hesitei, concordei com a vontade do misterioso homem e lhe passei o meu endereço. Liguei todas as luzes do meu apartamento e após tomar um banho e vestir roupas limpas esperei minha carona na sacada de minha casa olhando a cidade dormir.

Eu estava terminando de checar o meu equipamento médico, quando vi um belo Ford Maverick Gt verde limão se aproximar de meu prédio. Ascenei para quem estava dentro do carro. Após sair do meu apartamento caminhei em direção ao luxuoso veiculo, a porta do carro se abriu. Dela saiu um homem branco de estatura baixa, gordo ,usando roupas sociais. Doutor Marcos? Falou ele em um sotaque que denunciava uma descendência alemã. Sim sou eu mesmo! Pela sua voz vejo que o senhor não é aquele que estava conversando comigo no telefone, não é mesmo? Sim Doutor! Quem estava falando com o senhor no telefone era o meu patrão, o Lorde Hardrian. Quem dera eu fosse ele, sou apenas mais um de seus empregados, me chamo Joseph. Aquele homem e sua conversa possuíam um quê de loucura, comecei a suspeitar que eu poderia ainda estar dormindo, e aquele alemão gordo e seu Maverick poderiam ser apenas parte de um sonho meu. Percebi que havia dois vultos dentro do carro. Não precisa me chamar de senhor, Joseph! e nem de Doutor, salvar vidas é a minha profissão e o dom que Deus me deu, pode me chamar apenas de Marcos se você quiser(estendi minha mão para o cumprimentar. O alemão a minha frente parecia surpreso com meus modos, sorriu em retribuição e ao invés de um aperto de mão me deu um breve abraço, seu rosto ficou corado.) vejo que há mais duas pessoas dentro do carro. Falei como quem pretende se apresentar diante de pessoas desconhecidas. Os vultos se moveram dentro do carro e ganharam formas a medida que saiam pelas duas portas do Maverick. Vi a minha frente um homem magro loiro, vestindo uma camisa xadrez azul, calças jeans e sapatos sociais. Ele possuía um semblante carrancudo e um olhar profundo, assim que saiu do carro me examinou dos pés a cabeça, algo nele confessava que a minha presença não o agradava. Boa noite Doutor Marcos! Eu sou o Adam Bauer! Sou o irmão de Hardrian, o homem que contratou seus serviços. Não me tome como rude, mas gostaria que o senhor entrasse logo no carro, não temos tempo para amenidades(se aproximando de mim, e colocando sua mão direita em meu ombro.)minha sobrinha está em nossa casa morrendo, cada segundo é precioso. Mesmo que seu olhar me desafiasse senti um grande respeito por esse Adam, ele realmente parecia preocupado com a vida de sua sobrinha. Entendo e concordo com você Adam Bauer. Pode me chamar apenas de Bauer, Doutor! Venha comigo(me conduzindo para o carro, um jovem ruivo de olhos azuis me ajudou a colocar minhas duas malas de equipamentos médicos dentro do carro.). Obrigado rapaz! Falei sorrindo para ele. Não precisa me agradecer Doutor Marcos, eu sou bem pago para fazer isso(falou de um modo quase fúnebre. Algo nesse jovem me inquietava ), a propósito em nossa comunidade eu sou enfermeiro, me chamo Antonin! O mestre Hardrian me encarregou de lhe auxiliar essa noite. Tudo bem Antonin! Não sei direito que complicação médica me espera em sua “comunidade’’(senti um calafrio quando falei essa palavra.) essa noite, mas precisarei mesmo de um auxiliar.

Entrei no carro sem falar mais nada, mas minha mente estava inquieta, eu me perguntava se a minha misteriosa paciente daquela madrugada me aguardava em uma comunidade alemã. Mas eu não conhecia nem uma comunidade alemã aqui perto da minha cidade.

Alguma coisa estava muito estranha, eu não estava duvidando de que realmente meus serviços médicos eram úteis naquele momento para salvar uma vida ou duas, já que tudo indicava que minha paciente estava gravida. Contudo, alguma coisa não fazia o menor sentido, por que entre tantos outros médicos bons esse estranho Hardrian, me ligou as três da madrugada pedindo ajuda para sua filha? E esses homens que vieram me conduzir para o lugar misterioso que habita um estranho pai e uma filha que parece estar as portas da morte? Há! Esses homens...todos aparentemente de descendência alemã, e a palavra que o jovem ruivo disse, comunidade? Naquele momento eu me senti exposto diante de algumas peças de um soturno quebra cabeças.

Algumas coisas eu conseguia inferir, tudo me levava a crer que eu estava sendo conduzido por aquele Maverick para um vilarejo ou uma vila distante da cidade, aonde a maioria dos seus habitantes seriam alemães. Agora vejo como fui ingênuo em meus pensamentos.

Adormeci na viagem de carro, despertei a leves empurrões. Olhei do meu lado, era Bauer que estava me empurrando. Doutor! Estamos chegando, olhe para a janela! Com os olhos ainda meio fechados vislumbrei uma forte claridade do lado de fora do carro. Com grande espanto, que foi o suficiente para me acordar completamente, percebi que a nossa volta havia uma grande montanha prateada de cristais ou diamantes, não me recordo ao certo. Só sei que aquilo foi muito para mim, em um momento estava no meu apartamento dormindo, depois veio a ligação misteriosa e logo após os alemães no carro esportivo antigo. E agora eu estava diante do inexplicável. Aonde estamos Bauer, Josehp?! Acalmasse Doutor Marcos, o senhor está tendo sua caixinha aberta, a vida é como uma caixa, não permita que ela se feche só por que o senhor está diante de coisas que nunca vivenciou. Me disse Josehp com aquele jeito ponderado e elegante dele. Olhe senhor Marcos, veja como é linda! Falou Antonin, apontando para a montanha insensível que estava a nossa frente. Seu brilho parecia ofuscar os faróis do carro. Pela janela eu via aturdido colinas e mais colinas de cristais prateados.

A brisa da madrugada era irresistivelmente gostosa naquele lugar.

Ainda havia algumas estrelas no céu, os picos dos montes prateados pareciam estar acenando para elas. Pude ver também algumas plantações de soja e de milho. Doutor Marcos! Eu lhe acordei antes de entramos na Cidade, porque eu gostaria muito que você compreendesse aonde estar. Não me julgue mal, mas como um homem “civilizado” você cresceu cheio de pretensões e falsas verdades pessoais, há muito mais do que a sua patética moralidade burguesa possa imaginar, a cidade grande tem esse mal de criar pessoas pressas em uma pretensiosa racionalidade pura. Mas a vida Doutor, não é pura! Ela é mestiça, coisa que nossos antepassados insistiam em ignorar, e o resultado foi aquele que você leu nos livros de História. A vida é composta de dualidades Doutor, como na cidade grande não tivermos espaço para nossas dualidades resolvemos criar a nossa Cidade. Dizia Bauer com seus olhos brilhando de ira, definitivamente eu era o estereótipo de tudo que ele mais desprezava. Senhor Bauer me desculpe se o fato de eu ser da cidade lhe incomoda, não tenho culpa. Tudo bem senhor, me desculpe o meu entusiasmo, é que o senhor é o primeiro visitante que temos, a nossa comunidade é muito reservada. E eu ansiava muito por poder esfregar essas verdades na cara de alguém da cidade grande, vejo que o senhor não merece minha fúria. Me desculpe novamente (virando o rosto para o outro lado, olhando as montanhas prateadas.), prometo não cometer mais esses excessos enquanto o senhor estiver sobre nossa hospitalidade. Tudo bem Bauer! Confesso que estou entusiasmado com essas montanhas, não vejo a hora de conhecer a cidade de vocês.

O garoto ruivo que estava sentado ao lado do motorista deu uma grande rizada, desfazendo um pouco o ar pesado que ele possuía. Ele se virou para mim e depois apontou para a frente. Doutor Marcos, estamos perto do portão da cidade, se os cristais lhe impressionaram, acho que o senhor irá enlouquecer agora! (Soltou uma outra gargalhada.).

O carro entrou por uma fenda que havia na montanha de cristais a nossa frente, do outro lado da fenda havia um caminho pavimentado por pedras escuras. Fiquei sem fala assistindo nosso veículo percorrer aquela estrada. Do lado do caminho havia túneis, escadarias e algumas bifurcações que pareciam dar acesso a lugares inimagináveis, era muito estranho saber que estávamos passando por dentro da montanha.

Depois de uns 20 ou trinta minutos (não me lembro ao certo, toda aquela situação inusitada estava roubando minha noção de tempo e espaço.) vi um arco gigantesco de pedra, havia inscrições muito estranhas nele. Transcrevi rapidamente em uma folha de um bloco de anotações que estava comigo, três caracteres do arco, que me chamaram a atenção por se repetirem bastante, acredito que eles juntos formam uma frase. Para enriquecer mais o meu relato e para o tornar mais verossímil, decidi incluir uma transcrição dos três caracteres do arco.

Tml nn nf

Aqueles caracteres não pareciam com nem uma letra que eu já havia visto, não perguntei para Bauer qual língua era aquela, apenas guardei o bloco de anotações no bolso da minha camisa e comecei a pensar em minha paciente, que era o real motivo de eu estar embarcando naquela estranha aventura. Quando o carro passou por debaixo do arco pude perceber que ele era maior do que parecia, pensei que ele fosse despencar sobre nós, pois possuía um aspecto decadente, estava repleto de rachaduras. Tentei me levantar do banco em pânico.

Acalmasse Doutor! Não deixe a aparência da porta lhe assustar, ela foi edificada a muito tempo, mas é segura! Lhe asseguro que ela ainda estará aqui em pé por muitos e muitos anos. Disse Bauer, pegando no meu braço direito. Fiquei em silêncio e balancei a cabeça em sinal positivo. Minha cabeça começou a latejar, sentir um mal pressentimento, aquele arco e aqueles símbolos pareciam representar a presença de um mal primitivo. Que civilização teria tecnologia o suficiente para escavar essa montanha, pavimentar todo esse caminho e ainda construir esse arco de pedra imenso? E como eu nunca ouvir falar de tal coisa aqui no Brasil? Esses questionamentos me deixaram apavorado. Um pouco a frente do arco pude ver uma outra fenda, essa era ornamentada com pedras vermelhas. O carro entrou dentro da fenda, do outro lado estava a saída daquela gigantesca montanha prateada.

Lá fora, vislumbrei blocos e mais blocos de pedras cobertos por musgo e ervas trepadeiras, havia estranhas edificações, ruínas do que um dia parecia ter sido uma cidade. Entramos em um pátio em formato oval, uma fonte de água suja corria envolta dele. A frente havia um estranho monólito brilhante em formato cilíndrico e ao lado dele uma estátua de um homem nu apontando para o norte. O carro passou por uma fileira de colunas de pedra, muito semelhantes a colunas gregas, mas eram mais rústicas. Vi uma horrenda capela grotesca com uma estátua gigante de um anjo desfigurado, em uma mão ele segurava um tridente e em outra um escudo, algo nessa construção me assustava profundamente.

Doutor Marcos! Essas ruínas já estavam aqui muito antes dos nossos ancestrais formarem nossa comunidade, não sabemos nada do povo que morava aqui, evitamos ficar muito tempo neste lugar. Falou Bauer de um modo ríspido como que estivesse tentando me impedir de fazer perguntas. Compreendi claramente sua ação e por isso não falei nada.

O carro acelerou, entramos com muita dificuldade em uma rua estreita, formada por vários casarões e pequenos edifícios. A arquitetura daquele lugar parecia uma mistura de arquitetura asteca com arquitetura Greco Romana. Subimos por uma ladeira aonde havia uma imensa cruz de ouro com uma serpente esculpida em volta dela. Logo a frente vi uma muralha composta por troncos velhos e arame farpado, a luz da lua iluminava a entrada.

O sono tentava me pegar de novo, eu estava me sentido muito cansado por causa da viagem. Eu desejava poder caminhar, minha bunda já estava doendo por ficar sentado por muito tempo. Tentei ser mais paciente, afinal eu já podia ver pelas janelas do carro sombras de casas, postes de energia e prédios. Doutor seja bem vindo a nossa comunidade, o Novo Reich. Falou Bauer, com um olhar gatuno, apesar do nome, não se preocupe Doutor, nós aprendemos com o fracasso dos nossos ancestrais, não somos uma comunidade Nazista, na verdade ao contrário do que o senhor pode ter imaginado, não há somente descendentes de alemães nessa cidade. Enquanto Bauer falava, eu observava pela janela do carro, lindas casas de madeira, estavam quase todas com as luzes apagadas, realmente já era a calada da noite mas a luz pálida da lua pairava sobre as ruas da cidade.

Vi muitas lojas, farmácias e inclusive ao longe pude ver um grande shopping center, dei uma gargalhada observando isso, aquele edifício tornava aquele lugar tão inverossímil, como uma cidade tão desenvolvida assim poderia se manter oculta? A sensação de que eu estava vivendo um sonho louco aumentou, como tudo isso poderia ser real? O telefone na madrugada, a grande montanha prateada, o arco de pedra com aquelas estranhas inscrições, a misteriosa e sinistra cidade em ruínas que mais parecia ter saído de algum conto louco do H.P Lovecraft, tudo isso não fazia nem um sentido. No meio de tantos fatos extraordinários eu havia me esquecido completamente do motivo de minha inserção naquela aventura fantástica. Só me lembrei quando Joseph me avisou que já estávamos chegando perto da residência do Lorde Hardrian, não sei porque mas comecei a ter a certeza de que a minha paciente era apenas um subterfúgio para me trazerem àquela cidade, me vi como um joguete nas mãos de uma trama muito maior.

II

Na casa de Lorde Hadrian.

O carro estacionou debaixo de um grande pé de ipê, saímos apressadamente do carro, vislumbrei uma cerca de ferro retorcida a minha frente. É por aqui Doutor Marcos, disse Bauer não olhando para o meu rosto, ele caminhou a minha frente em direção a um lindo gramado, havia uma pequena horta ao lado e uma casinha de cachorro aparentemente abandonada. Me voltei para minhas malas, mas Antonin me censurou, deixei comigo senhor, é melhor você alcançar Bauer, o patrão Hadrian odeia esperar! Eu estarei bem atrás de você com seu equipamento médico, não se preocupe. Em um instante parecia que toda aquela cordialidade que eu havia presenciado dentro do carro a caminho daqui estava caíndo por terra. O clima estava obscuro e altamente tenso. Andei passos rápidos por meio daquele jardim que agora não parecia tão bonito como antes. A luz da lua foi desaparecendo dando lugar a escuridão primordial que parecia dominar aquele lugar. Cuidado aonde pisa Doutor Marcos, o chão está úmido, aqui chove muito. Tudo bem Bauer, estou caminhando com cautela, odeio andar no escuro.

Subimos uma escadaria de pedra, havia muito musgo e cogumelos no chão, o caminho a frente aos poucos ia se iluminando. Pude ver iluminarias luxuosas e janelas do que parecia ser uma casa. Por aqui Doutor Marcos. Bauer me conduziu para uma porta, ele a abriu, do outro lado vi um longo salão de festas, havia algumas mulheres vestidas de preto chorando muito, e a longe pude ver a sombra de um homem olhando para um grande quadro na parede, a pintura retratava anjos amarelos sobrevoando um céu escarlate. Os mensageiros de Deus estão próximos dessa casa, Doutor Marcos, posso ouvir o barulho de suas assas batendo nos céus, eles estão chegando, em poucas horas essa será uma casa de luto, lamento lhe informar, mas creio que o senhor demorou muito a chegar. As palavras do meu misterioso anfitrião pareciam estar carregadas de sacarsmo e melancolia. Caminhei em direção a ele, as mulheres que estavam sentadas na sala eram incrivelmente lindas, em sua maioria loiras, com olhos azuis e algumas com olhos verdes. Elas me cumprimentaram com muita reverencia e respeito. Me senti constrangido na presença de mulheres tão lindas e ao mesmo tempo tão tristes, realmente parecia que alguém estava morrendo naquela casa. Presumo que o senhor seja o Lorde Hadrian, me desculpe a demora, mas os seus homens andaram o mais rápido que puderam, o senhor deve saber que não é fácil chegar até essa localidade, só Deus sabe quantas horas nós levamos para chegar aqui. O dono da casa se aproximou de mim, ele era um homem alto e forte, seus cabelos eram grisalhos, seus olhos azuis, ele estava usando uma camiseta branca, calça social preta e estava calçado com um par de chinelos marrom.

Olá meu caro doutor, levantando os braços em minha direção, desculpe a minha falta de educação, sou um homem bem simples sabe, fui criado no campo e mesmo sendo alemão sofri horrores na época da Alemanha nazista, por a minha família ser Testemunha de Jeová. Mas não falemos sobre isso, o que está enterrado precisa continuar enterrado. Tudo bem Hadrian, posso lhe chamar apenas de Hadrian né?

Sim, claro que pode, não sou lorde de coisa alguma, esse é um termo usado pelos meus empregados que ainda estão presos as tradições de nosso povo, mas isso não importa, Doutor, a febre de minha filha aumentou, ela ainda está viva, mas já perdeu a consciência, não sei se será possível salvar a criança agora. Hadrian se ajoelhou e chorou profundamente, meu coração se encheu de grande comoção por aquele pai.

Não me veio a mente nem uma palavra para consolar aquele velho homem, felizmente uma das mulheres que estavam na sala, o abraçou e o beijou intensamente, seu nome era Helena, sua esposa.

Doutor! eu deixarei meu marido aos cuidados de nossas filhas que estão aqui presentes, Ingrid, Julia, Anne, Katharina e Isabel, e em seguida lhe levarei aonde estar a nossa outra filha, que é o motivo de sua viagem para cá.

Cumprimentei novamente aquelas belas damas, e me peguei pensando se acaso alguma delas estaria solteira, e disposta a ter um relacionamento afetivo comigo. Dentro de minha mente dei várias gargalhadas diante de tal pensamento importuno, aquela não era uma ocasião para se pensar em flete, paquera e sexo.

Ouvi passos se aproximando atrás de mim, quando me virei, vi que era Antonin que chegava com as minhas malas em suas mãos, Joseph estava ao seu lado gritando algo em alemão para Bauer que estava perto de mim conversando com uma de suas irmãs, a Isabel.

Bauer se irritou com Joseph e disse outra coisa em alemão em um tom mais alto. Joseph abaixou a cabeça e ele e Bauer partiram em direção a um corredor escuro. Helena me disse para eu não me preocupar com aquilo, porque se tratava apenas de uma briga tola, segundo ela Joseph estava lembrando Bauer de ligar para sua casa para avisar Manuela que ele já havia voltado da cidade grande, segundo Helena Manuela era a noiva de Bauer e irmã de Joseph.

Fui levado por Helena juntamente com Antonin para um cômodo muito escuro aonde segundo ela, estava Camile, a filha mais nova dela e de Adrian, ela tinha 21 anos, e segundo Helena estava gravida de um estrangeiro, que ficou apenas três semanas na cidade e depois partiu. Senti muita tristeza na fala da mãe.

Ao entrar no quatro fui tomado por um grande horror, o lugar era na verdade um poço, a jovem garota estava estirada em algo parecido com uma piscina, havia sangue nas paredes do recinto, a menina falava baixinho, quase um sussurro. Me ajude. Isso está dentro de mim me devorando, por favor tira isso de mim. A jovem estava nua, sua barriga estava horrivelmente inchada, seus seios que provavelmente um dia foram lindos agora estavam repletos de veias escuras e de seus bicos estavam escorrendo pus, a garota se retorcia de dor na água. A água era escura, mas a medida que o corpo dela se contorcia, a água ia ganhando uma tonalidade roxa, pelo cheiro imaginei que fosse o sangue dela. Mas quando a levantei da água com a ajuda de Antonin eu pude ver que de seu útero estava escorrendo um líquido amarelado e viscoso que quando se misturava com a água se tornava roxo. Naquele momento eu não me senti como um médico, mas sim como um veterinário, aquela cena era desumana demais, Helena me disse que a água estava ajudando a manter sua filha viva, eu perguntei como, e foi aí que as coisas ganharam contornos mais horripilantes, ela me mostrou as nadadeiras que estavam se formando debaixo dos braços de Camile, no pescoço havia brânquias. Ela não sabia me responder o porquê sua filha estava se transformando em um tipo de ser hibrido aquático.

Estranhamente consegui manter a calma, pois os olhos da garota ainda eram humanos, e eles me pediam ajuda, definitivamente eu não iria abandonar a minha paciente.

Hadrian voltou, estava calmo e trouxe consigo lençóis limpos.

Doutor agora o senhor sabe o segredo de nossa filha, algo me dizia que só você poderia nos ajudar. A coisa que está dentro dela precisa ser tirada, se não ela vai morrer, acredito que as transformações no corpo dela possuem ligação com o estranho ser que estava sendo gerado nela.

Tudo bem Hadrian o segredo de sua filha está a salvo comigo. Falei de um modo calmo, tentando ocultar o medo que eu estava sentindo, o mal cheiro que estava sendo emanado do corpo da jovem Camile, havia me despertado por completo, agora eu possuía total certeza de que eu não estava sonhando, todo aquele pesadelo era real, eu estava diante de uma situação estranha e macabra, nunca pensei que na minha carreira de medico eu fosse ver tal coisa, nem ao menos imaginava que existia coisas assim na terra.

III

Relatos Finais.

Devido as circunstâncias fui obrigado a fazer uma cesariana em Camile, Antonin me auxiliou, confesso que o garoto leva jeito para a profissão. Quando abri a barriga de Camile eu quase vomitei, peixes mortos, peixes mortos envoltos por uma gosma preta, foi isso que saiu da barriga de minha paciente. Nem um bebê e nem algo parecido com um feto, apenas podridão marítima, era isso que a jovem estava gerando em seu ventre.

Helena e Hadrian pareciam aliviados, a jovem Camile também, após os curativos ela despertou e me perguntou com uma expressão calma em seu rosto. Doutor não nasceu nada de apavorante né? Sim Camile não nasceu nada, apenas retirei alguns peixes podres de você, oque confesso foi a experiência mais bizarra pela qual passei em todos esses anos de profissão. Isso sem falar daquela gosma preta fedorenta.

Por favor Doutor, se livre daquilo, aquela coisa serve como um tipo de rastreador, eles podem aparecer aqui em busca da criança que graças a Deus não nasceu.

Fiquei atônito com aquelas palavras, oque poderia significar tudo aquilo? Seria um delírio de minha paciente? Ou seria parte do segredo que envolvia aquela cidade?

Doutor vejo pelo seu rosto que as perguntas lhe consomem, é chegada a hora de algumas respostas, disse Lorde Hadrian.

Hadrian deixou Antonin e Helena cuidando de Camile, e me levou para a sua chamada sala de leitura.

Estávamos em uma sala cheias de livros, aonde havia duas grandes poltronas. Eu me sentei em uma, e Hadrian em outra.

Caro Doutor, escute bem o que eu irei lhe falar. Perto do fim da segunda guerra mundial, meus ancestrais, em sua maioria membros da SS, foram enviados para essa região do Brasil, para fundarem essa comunidade e investigarem possíveis segredos que segundo um documento do próprio Führer , essas terras abrigavam.

Os fundadores dessa cidade descobriram muito mais do que Adolf Hitler podia imaginar, muitos horrores dormiam tranquilamente do outro lado daquelas montanhas prateadas, sonhando com o momento em que curiosos os despertariam de novo.

Para não lhe aprisionar mais nessa maldita cidade Doutor Marcos, não lhe contarei o significado daquelas letras no arco de pedra da montanha, tal revelação estenderia sua estadia nessa cidade, e isso não pode acontecer para sua própria segurança, eu gostei de você Doutor, você é um homem bom. Bom mas muito inteligente e curioso, o que não é uma combinação ótima, se você pretende ter muitos anos de vida. Pelo seu olhar Doutor, eu sei que a sua mente está fervilhando tentando buscar respostas para as coisas que você viu no percurso até a minha casa, e sei que quando chegou aqui você só recebeu mais perguntas e poucas respostas para os enigmas que estavam em sua mente. Por isso lhe darei algumas respostas usando a linguagem do Mito.

Dizem que a muito tempo atrás, muito tempo mesmo, muito antes do Brasil sonhar em ter sido descoberto pelos portugueses. Dizem que os índios moravam em uma aldeia no fundo do rio.

Mas então apareceu um menino, um estrangeiro, branco e de cabelos vermelhos, ele mostrou o caminho para fora das águas. Ensinou os índios a falarem e a escreverem, criou toda uma linguagem para eles e no momento certo os levou para um lugar chamado de O Buraco das Araras.

Só que a história não para por aí, os índios eram propriedades de humanoides que estariam aqui na terra desde os tempos em que ela era sem forma e vazia, futuramente os desentendes desses índios iriam os chamar de Aruanãs, até hoje muitas tribos indígenas aqui do Brasil veneram esses seres pensando que eles eram seus ancestrais que hoje os protegem como espíritos guardiões, doce engano. Os Aruanãs escravizavam os índios no fundo do rio.

Quando o Kunumin libertou os índios, ele despertou a fúria dos Aruanãs. Por isso ele teve que levar os índios para a sua aldeia no meio do céu o Buraco das Araras, ficando assim longe dos rios e mares. Nesse momento Hadrian olhou para o teto, aonde havia uma linda pintura de Jesus Cristo subindo aos céus, seus cabelos eram vermelhos.

Os meus ancestrais acreditavam que o Buraco das Araras, é uma cidade futurística que paira a deriva nos céus, especificamente sobre os céus da selva amazônica.

Depois de contar essa fabulosa narrativa, Hadrian se calou e olhou fixamente para os meus olhos. Sinceramente eu não sei oque lhe falar Hadrian, tudo que você falou assombrou demais o meu coração, se esses fatos forem reais, isso muda tudo que eu aprendi sobre o mundo. E Deus aonde ele entra nessa mirabolante história?

Deus? Soltando uma grande gargalhada, por favor Doutor Marcos, você acredita mesmo na existência de um ser divino que olha por todos nós? O Deus que você criou em sua mente nunca existiu, e se algum dia ele realmente existiu, eu posso lhe garantir que alguém o matou. Tudo que eu sei Doutor, vivendo por muito tempo nesse pesadelo que alguns chamam de cidade, é que as divindades são indiferentes perante os nossos sofrimentos.

Eu pensava que o senhor fosse um homem mais inteligente, Marcos. Agora vejo que me enganei, estou completamente desapontado com você, exijo que você vá embora agora.

Após Hadrian me falar isso, sentir um cheiro horrível de peixe podre se aproximando de mim.

Perdi a consciência, acordei três horas depois em meu apartamento. Do meu lado havia uma sacola com quarenta moedas de ouro, as moedas eram muito estranhas. Elas possuíam em um lado a figura de um homem ajoelhado rezando e do outro lado o desenho de uma coroa com um arco e uma flecha.

Assim termino meu relato com a certeza de que devo me mudar o mais rápido possível, preciso fugir, sinto que os estranhos habitantes do Novo Reich virão a minha procura na calada da noite. Algo no olhar de Hadrian me mostrou que para ele essa história não termina aqui. Minha cabeça lateja e com essa dor há também o horrível cheiro de peixe podre que parece não querer sair do meu corpo, já tomei vários banhos e o cheiro não sai, é como se eu estivesse marcado. Talvez seja a gosma preta que saiu do útero de Camile, talvez esse seja o sinal de que eu fui marcado pelos Aruanãs, só Deus sabe para que. De uma forma ou de outra sinto que em breve eu irei descobri.

FIM?

Luan Ribeiro
Enviado por Luan Ribeiro em 24/04/2018
Reeditado em 02/06/2018
Código do texto: T6317671
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