Os Outros
“Você já teve aquela sensação de não estar sozinho, mesmo quando não há ninguém por perto? Um pressentimento estranho de estar sendo observado?
Na maioria das vezes não damos muita atenção a isso, o pressentimento passa e vamos cuidar dos nossos afazeres mundanos. Outras vezes tentamos não pensar sobre isso, mas ficamos com aquilo na cabeça, a nos atormentar, com aquela pergunta martelando: ‘E se?’
E se for possível mesmo existir alguém, ou algo, sempre próximo de nós?
Algumas pessoas realmente acreditam nisso, para alguns o mundo é cheio de espíritos, almas daqueles que já viveram um dia, mas hoje vagam por aí, perdidos, sem saber que já morreram. Já me disseram por outro lado que a Terra é repleta de entidades que não podemos ver, a não ser em casos excepcionais, são fadas, duendes, demônios, elfos, toda sorte de seres místicos vivendo no planeta bem antes da aurora da humanidade. Meus avós por outro lado diziam que anjos da guarda sempre ficavam a nossa espreita, nos protegendo, mas que também podiam haver capetas e outros seres infernais a solta no mundo. Os mais religiosos por sua vez dizem que tal presença só pode ser deus, sendo que alguns acham que também pode ser o diabo. Antigamente, as religiões antigas achavam que o mundo era repleto de não um deus, mas sim de vários deuses, na maioria das vezes indiferentes a condição humana.
Já alguns teóricos e nerds acreditam que o mundo é uma Matrix, cheia de operadores ocultos, e não passamos de meros conjuntos de dados, agrupamentos de zeros e uns, sem controle nenhum sobre nossas vidas, e as tais presenças não são nada menos que sombras dos programadores do sistema, sempre à espreita, mas sem se revelar, controlando nossas vidas nos mínimos detalhes.
Nunca pensei muito sobre isso, mas uma amiga minha fez mudar essa opinião.
- Sim, o mundo tá cheio de coisas que não podemos ver – disse-me ela.
- Claro – retruquei – mas é só pegar um microscópio e poderemos vê-los, são vermes, bactérias e um cem número de microrganismos.
- Bobo, fica assim vai, acredite se quiser. Mas eu sei.
- Como sabe? - a desafiei – Você já viu?
- Não, mas sei que um dia posso ver – ela respondeu com tranquilidade – tem muita coisa a nossa volta, umas boas, outras ruins, outras nem aí pra gente.
- E como você vai fazer pra ver?
- Olha, basta se concentrar um pouco, talvez eu já tenha até visto, talvez você também já tenha visto. Eles aparecem naqueles momentos em que mal prestamos atenção, em que nosso subconsciente subjuga o consciente, quando, mesmo sem parecer, nossos sentidos se sobressaem mais, pois a mente se aquieta.
- Ah é? E quais momentos seriam esses? - perguntei curioso.
- Ora, você sabe – ela respondeu – as vezes você está distraído, e de repente pensa ter visto algo com o canto do olho, mas quando se vira, surpresa, não vê mais nada. E há também aqueles momentos em que está quase pegando no sono e sente uma presença no quarto, ou o contrário, está dormindo ou despertando, e não sabe se ainda está sonhando ou não, vê coisas vagando no seu quarto, tenta se mexer mais não consegue, se pergunta se já acordou ou não.
- Isso me parece mais alucinação causada pelo cansaço.
- Bem, pode até ser, mas eu acredito. Tem gente que ouve até vozes.
- Olha minha querida, se você começar a ver coisas e há ouvir vozes eu vou me preocupar, pois o nome disso é esquizofrenia.
- Palhaço! – disse ela me dando um forte tapa – Bom, não posso fazer nada se você é como São Tomé que precisa ver pra crer, mas espero que se um dia você ver algo, que seja algo bom.
Me despedi dela, mas o problema é que fiquei pensando naquilo. E se ela estivesse certa?
O tempo foi passando, e aquele pensando me acompanhava.
Tentei ficar mais atento as coisas que me cercavam, tentei apurar melhor meus sentidos, me concentrar mais.
E realmente, de forma muito sútil, parecia mesmo que naqueles momentos quando nossa mente divagava que, com o canto do olho como ela disse, formas quase invisíveis apareciam e desapareciam, como se materializam de algum éter invisível. E, novamente como ela disse, naqueles momentos entre o estar acordado e o sono, sombras atravessavam o ar a minha volta.
Comecei a ficar um pouco inquieto, tinha vontade de parar com aquilo, mas não era algo fácil, na verdade ficava cada vez mais curioso, forçava minha concentração cada vez mais. Meus amigos diziam que eu estava cada vez mais distraído, meio que fora do mundo, com a cabeça nas nuvens. Não me importava.
Estava na iminência de alguma descoberta, sentia isso.
Me esforçava para ver alguma coisa que não fossem sombras ariscas, descobrir o que me cercava.
Então, um dia, já cansado, pensei ter visto algo e, impaciente, gritei:
- Não se esconda mais! Apareça!
Desde então ele apareceu, e começou a falar comigo, infelizmente não era um dos bons, nem dos maus, era um dos indiferentes. Ele começou a falar comigo, e eu com ele.
Mas o problema é que somente eu o via, mais ninguém, ele e aos outros.”
- Então há outros? – perguntou o doutor.
- Sim, há muitos, o mundo é cheio deles, o cosmo todo é cheio deles, são os verdadeiros residentes do Universo. Nós não somos nada além de passageiros, visitantes de vida curta doutor.
- Entendo... – disse o doutor, incrédulo como sempre – bem, vejo que você está indo bem, mas não podemos reduzir sua medicação ainda, nem libera-lo para casa. Terá que ficar aqui no hospital por mais um tempo.
- Tudo bem – disse eu resignado – eles me disseram que seria assim.
- Quem disse? – perguntou o doutor.
- Os outros doutor.
- Bom, neste caso vamos aumentar a dose da quetiapina, e talvez também do Risperdal. Se não funcionar voltamos pro Ziplexia. Talvez isto mantenha os outros afastados.
Me despedi do doutor, mas não dos outros, eles me acompanhariam sempre, eu tinha certeza, sendo aquilo esquizofrenia ou não.