Horror no Hospício
Faz duas semanas que visitei as ruínas do antigo hospício em Belo Monte, e até agora não consegui me livrar dos pesadelos que me acometem após ter estado em tão deprimente lugar. A motiva de eu ter ido lá, foi apenas uns recortes de jornal e um diário encontrado nas velhas coisas de meu já falecido avô Dr. Azevedo. Ele era um renomado psiquiatra de Belo Monte, e era justamente ele quem dirigia o velho hospício, hoje já demolido.
Não me lembro muito bem em quando o hospício ainda funcionava. Pelas informações que tive, há uma vaga recordação de funcionamento ainda em mil novecentos e oitenta, embora ele já estivesse prestes a fechar. É tudo muito confuso, a história do hospício é como um segredo oculto na névoa, e se eu estivesse realmente interessado em saber mais sobre ele teria ficado feliz com os achados na residência de meu avô.
Mas não foi bem isso que ocorreu. Acabei tropeçando em material proibido, algo que afetaria a sanidade humana. Mesmo assim segui em frente, e tive um fim não muito agradável. Não sei como meu avô, Dr. Azevedo, conseguiu continuar sã mesmo após todos aqueles acontecimentos que ele relatou. Ele era um homem forte, até por demais, e não foi à toa que desconfiei de sua morte.
Sua morte ocorreu em circunstâncias estranhas. Dizem que ele estava em casa quando, acidentalmente, caiu da escada e quebrou o pescoço. Sei que ele já era de idade e frágil, mas é tão estranha a circunstância de sua morte que para mim ainda vejo ele andando pela casa com o maior cuidado do mundo e tomando seus remédios no horário certo. Existem mil possibilidades que expliquem sua morte, mas a criada, assustada, insiste em dizer que ele deve ter passado mal antes de descer as escadas e acabou caindo. Não culpo ou tenho suspeitas da criada. Ela é de boa prole e provavelmente se assustou com a primeira morte de um patrão em sua carreira de dona de casa.
É de certo que meu avô era inimigo ferrenho da morte, pois falava dela sempre como se fala de um antagonista distante, e que mesmo assim se faz presente. Suas batalhas contra ela foram muitas, mas no fundo ele sabia que no fim teria de se entregar aos braços da ceifadora da vida, cedo ou tarde. Antes de morrer, meu avô escrevia longos artigos sobre a mente humana e suas capacidades. Hoje, tenho medo desses artigos. Saber que meu avô enfrentou um caso tão sinistro com poucos recursos é desesperador, principalmente na função qual ele se encontrava na época: um simples enfermeiro psiquiátrico.
Eu nunca cheguei a conhecer o hospício de Belo Monte. Quando eu tinha apenas três anos, meu avô abandonou o hospício e o mesmo ficou à deriva, sendo fechado e demolido pouquíssimo tempo depois. A geração da época fala do hospício como se conta uma história de trancoso á uma criança, e muitas vezes apenas sussurram palavras mórbidas e grosseiras em nossos ouvidos. É claro que não poderia se esperar muita coisa boa de um hospício, mas o de Belo Monte tem um toque especial. As histórias sobre ele ecoam em meus ouvidos como um sussurro nas trevas, sua imagem reflete um inferno de sensações emocionais e coisas mórbidas.
Hoje, tremo até os ossos só de pensar na experiência que tive com o sanatório, que mesmo depois de fechado ainda havia história para contar. Minha conclusão pode ser taxada como um embuste grosseiro, mas é de certo que não havia nada de flores no decorrer da historia que me foi contada aos fragmentos.
Sei há muito que dei um fim no diário e nas anotações. Eu poderia não estar sã na hora, mas tenho lembranças vagas, depois da minha fuga, de algo queimando no meu quintal, enquanto eu observava. Oh meu Deus! Ainda sinto o cheiro do papel ardendo, e aquelas coisas...
Foi numa tarde que eu encontrei um diário. Depois do enterro de meu avô, fui para a casa dele e fiquei uns dias por lá com a criada. Um dia, a criada, exaltada, me apresentou um velho caderno. “Foi a única coisa escrita que ele deixou” ela falou, quase sussurrando. Quando lhe perguntei se ela já havia lido os escritos de meu avô, ela mudou de assunto rapidamente. Não continuei insistindo, peguei o caderno velho e fui para o meu quarto. Passei a noite em claro.
È difícil explicar onde começam as escritas do meu avô. Como um bom intelectual, sua escrita era cheia de rodeios e ele parecia querer adiar o que realmente queria falar. Foi difícil para mim, pois em algumas vezes a escrita perdia forma e se transformava em nada mais que um rabisco, como se as frases estivessem sido escritas às pressas.
Foi na primeira fotografia que o diário começou. Bem destacada, colada no meio da folha, uma foto em preto e branco de um grande prédio. Na foto, a legenda “Hospício Santa Rosa, 1954”. Estremeci. Era o hospício onde meu avô, Dr. Azevedo, trabalhou. O porquê dele ter colado aquela velha fotografia recortada de um jornal, não sei.
Foi quando ele começou falar de um paciente específico do hospício que as coisas começaram a ficar interessantes. Um certo Zain havia estado por lá, e não era muito bom da bola. Apesar de seus juvenis vinte anos, havia perdido a maior parte do cabelo e das unhas, e seu rosto tinha uma aparência grácil que só os mais velhos conseguem obter. Zain era muito citado nos escritos do meu avô. Realmente, era um paciente que assustava.
Quando os médicos vinham falar com Zain, o mesmo sempre repetia a mesma história. Um passeio entre amigos e um fim macabro. Não tenho muitos detalhes da história em mãos, mas é de certo que o acontecimento fez a sanidade de Zain se quebrar por completo. É uma história interessante e em certos pontos chega a ser extraordinária. E era incrível o modo como Zain a narrava, e logo depois, em excitação, voltava a se deitar em posição fetal e começava a soltar gritos histéricos.
Zain era um paciente no mínimo excêntrico, e as histórias sobre ele rondavam de boca em boca no hospício. A verdade é que ninguém sabe como ele foi parar em Belo Monte, tudo o que se sabe é que ele havia aparecido caído na estrada, num dia quente de julho, com a memória afetada e semblante gravemente deprimido. Ele foi socorrido e depois encaminhado para o hospício, onde as pessoas não davam muita atenção às suas curiosas histórias.
Mas meu avô, Dr. Azevedo, viu algo em Zain que os outros não viram. Um dia, na hora do almoço, quando foi dar de comer a Zain, meu avô ouviu a história de um sonho que Zain havia tido na noite anterior. O conteúdo dele traria horror ao mais durão de Belo Monte. Os sonhos falavam sobre seres ocultos e monstros que desafiam a mente do mais criativo humano. Seus relatos eram detalhados e cheios de horror, transmitiam tristeza e pensamentos negativos, além de loucura.
Mas meu avô resistiu a essa áurea maligna e continuou ouvindo, dia após dia, os sonhos de Zain. E como eram aterradores estes sonhos! Visões infernais, monstros rastejantes, viagens solitárias no cosmos... Dr. Azevedo teve muito cuidado ao anotar esse material. Zain era um paciente especial, segundo ele mesmo, tinha o dom de se comunicar com um certo Aljar. O deus vizinho. Azevedo não fazia a menor idéia de quem era Aljar, mas sabia que Zain era um exemplo de como a sanidade pode ser afetada por alguns episódios aterradores; pois a história de Zain era aterradora, e todos sabiam disso.
Um dia, Zain morreu. Foi rápido como uma flecha. Ele acordou, gritou palavras incompreensíveis, pediu papel e caneta. Foi cedido a ela uma folha e um lápis, com muita dificuldade. Zain escreveu ali as seguintes palavras, e então caiu morto na cama. “Et Aljar DeDen’Viz Sig’U”. Era isso que estava escrito no diário de Azevedo, e não faço a mínima idéia do que essas palavras significam. Tenho certeza de que Azevedo também não fazia mínima idéia do que aquilo significava, mas de certo foi um material interessante.
Acontecimentos estranhos sucederam a morte de Zain. Um paciente, ninguém sabe como, conseguiu uma lâmina e cortou uma veia, escrevendo com o sangue na parede “El’ Aljar”. A direção do hospital ficou choque. Azevedo não podia fazer nada, ainda não era médico, mas se interessou pelos casos e passou a investigar tudo sozinho.
O hospício viveu então um grande momento de suspense. Tudo era acompanhado com rigorosa discrição e regra, calculado e pensado. Azevedo passou a ver no rosto dos pacientes a angústia que só o mais intenso pensamento de morte para trazer. Tentativas de suicídio se tornaram comuns, e a direção começou a ficar preocupada, e Azevedo passou a prestar mais atenção nos pacientes. Agora, era tudo diferente. Tudo tinha um toque mórbido, algo era feito nas trevas, como se a alma de Zain continuasse por ali, contando suas histórias de horror e viagens no espaço-tempo.
A morte de mais um paciente aconteceu. Antes de morrer, ele gritou o conhecido nome por meu avô, Aljar. É de certo que algo de errado havia ali. Quem era Aljar? Isso ninguém sabia responder. É de certo que só podia ser uma entidade saída da mais mórbida mente humana, um ser das trevas e da solidão amarga que corrói os corações dos mais frágeis. Aljar agora não virou mais apenas um nome, e sim um ser que ali habitava. Todos sentiam sua áurea maligna, e ela tomava a mente dos presentes. Era impossível não se sentir mal naquele ambiente mal iluminado e tomado pelo horror.
Azevedo passou a ficar ainda mais atento aos casos. De repente, todos os pacientes falavam em Aljar. Seu nome era citado como se fala de um velho amigo, e passavam de boca em boca pelos pacientes do hospital. Alguns pacientes gritavam esse nome com força, enquanto outros contavam histórias de viagens no espaço com um certo vizinho de nome Aljar. A equipe começou a ficar preocupada. Azevedo falava com os pacientes, buscando respostas. Chegou a um certo senhor Tomás, qual descreveu um sonho mórbido por demais para Azevedo.
Tomás era um paciente não muito diferente dos outros. Passou a ver coisas demais, pensar coisas demais, e então foi levado para ali. Apesar de tudo, não era agressivo. Muito pelo contrário, falava com calma e dava uma atenção ao espectador que só alguém mais polido teria. Foi então que Tomás contou seu sonho para Azevedo, quase sussurrando.
Tomás era levado pela imensidão do cosmos nas asas de seres horrivelmente deformados, e então ele tentava gritar, mas a voz não saía. E foi no meio da narrativa que meu avô viu. A “coisa”, apenas assim como ele descreve, apareceu em sua mente. Ele viu todo o motivo daquela confusão no hospício, e começou a gritar.
Foi assim, do nada. No meio da história da viagem de Tomás, meu avô teve um pensamento. E nesse pensamento estava a coisa. Um ser de altura colossal, que tomava conta de todo o céu. Um horror indescritível tomou conta do coração de Azevedo, ele não conseguia controlar. Ele via a coisa perfeitamente em seus pensamentos, e não conseguia controlar! Qual não deve ter sido o mal bocado que ele passou! Saiu dali correndo e deixou Tomás, para sempre.
Azevedo quase foi demitido, mas tentou continuar forte. Agora era toda noite acometido por sonhos infernais. Nesses sonhos, seres quase humanos dotados de asas e com bicos de galinha o levavam numa viagem pelo céu, onde ele passava por buracos negros e estrelas ardentes, todo o horror que ele tinha direito. A próxima coisa que achei foi um recorte de jornal falando sobre um suicídio noturno em uma das clínicas psiquiátricas de Belo Monte. É incrível as circunstâncias dessa morte. Um paciente, não identificado, corta os pulsos com uma lamina e ri muito antes de morrer.
É de certo que a falta de sanidade por outrem acompanhou meu avô por quase toda a sua vida, mas isso ainda não foi o suficiente para o afetar. Depois de um certo tempo, as estranhas possessões de internos e invocações do nome de Aljar cessaram subitamente. Azevedo saiu para estudar medicina, e o sanatório funcionou até ele voltar e virar diretor de lá.
Terminei de ler as anotações com certo terror. Que era um caso estranho, isso eu concordo. Algo naquelas palavras me agoniava. Eu fechei os olhos, e então vi a coisa. Ela se rastejava na imensidão do cosmos e na minha mente, suas garras afiadíssimas acompanhando seus dentes bem amolados. Seu sorriso grácil de quem conseguiu sua presa.
Então eu gritei. Um urro de horror que se espalhou pelos confins desse mundo louco. Nunca mais quero ver esse diário na minha frente. Nunca!