LAVE OS PÉS, LIMPE OS SAPATOS, SENÃO....
Quarto é sempre um bom objeto de decoração de contos surreais. E aquele era um bom exemplo disto.
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Um quarto preenchido de móveis e acessórios típicos de sua habitante. Uma garota absorta em seus afazeres do presente, visando a um futuro promissor. Seus utensílios, roupas e calçados depositados no chão, em repouso, aguardando um próximo uso. Um labirinto de objetos a ser vencido a cada entrar e sair. Sem que percebesse, tudo o que fazia no quarto: conversas, choros, suores, risos, confissões, ia grudando nas paredes de cor quente. Uma vida toda de energias liberadas.
A jovem nada via de errado em sua ilha. Sua ordem, seu cheiro, sua aparência. Vez ou outra, incitada pelos pais, ajeitava um pouco a bagunça. Longe de ser suficiente.
O acúmulo de energias condensadas passou a causar-lhe noites maldormidas. Seus sonhos passaram a ter temas estranhos, mas com final sempre comum: sapatos sujos.
Fragmentos de sonhos grudaram nela e ela os via cada vez que se olhava num espelho. Descobriu que molhar o rosto funcionava como antídoto, pois a água limpa afugentava os medos e mostrava só a sua imagem refletida.
Em pouco tempo, pressentia que já não era a única habitante daquele quarto. Já não conseguia passar horas jogando vídeo game; não conseguia mais se concentrar nos estudos; não conseguia mais sentir o aconchego do namorado (e não entendia porque o namorado nada percebia; imaginava-o numa redoma de vidro, protegido dos sons estranhos e cheiros cada vez mais pesados). As paredes perderam o brilho de antes e ela já não ousava procurar nada embaixo da cama.
Numa noite, seus pais reclamaram do cheiro do quarto: “Que nojo!”, e ela prometeu limpá-lo pela manhã. Fechou a porta e deitou-se, sem querer fazer nada, como se a espera que algo acontecesse. Acabou adormecendo. Sonhou entrar numa loja de calçados. Pediu o tênis mais bonito. Quando abriu a caixa, o tênis era negro e estava encoberto de larvas. Seus cordões criaram vida e se esticaram como tentáculos querendo agarrá-la. Acordou e acendeu a luz. Nas paredes, subia uma gosma negra e malcheirosa. Ouvia murmúrios e sentia a cama chacoalhar. De repente, um bando de sapatos fétidos, de línguas salivantes, saiu debaixo da cama e cobriu o seu corpo. De nada adiantaram o esperneio e os gritos. Foi sufocada por odores, suores, pó.
Ao levantarem-se, os pais sentiram o cheiro de chulé do quarto da filha mais fedido do que nunca. Ao abrirem a porta, foram atingidos por um bafo pestilento. Lá dentro, a filha jazia sob sapatos, roupas e resíduos.
Apenas o par de sapatos novos permanecia (como que acuado) na sapateira enegrecida.
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E então? Como está seu quarto?