O Medo Vem de Cima
Não espero que os leitores que lêem este relato acreditem em minhas palavras, apenas desejo que tenham em mente que este foi meu único jeito de desabafar e soltar toda a amargura de meu coração sofredor. Sou um homem quebrado, sem dinheiro e com uma sanidade consideravelmente desconfiável perante meu convívio social, me vejo no limiar de duas decisões cujas proporções de suas conseqüências adquirem poder inimaginavelmente grande perante a capacidade de criação da mente humana: ou dou cabo de minha vida, ou me entrego completamente ao medo que vem de cima.
São duas opções mórbidas, e eu me vejo completamente num beco sem saída. Sem ter como me livrar do medo que vem de cima, temo pela minha vida e por minha sanidade. Hoje vivo praticamente como um selvagem, sem me higienizar e ao menos me alimentar direito. Sinceramente, não sei mais o que fazer. Tudo o que quero é ter a coragem de fincar uma das facas afiadas da cozinha em meu peito, mas um temor do que pode ser da minha alma no além-túmulo me impede de tomar essa decisão drástica. Sem saída, tudo o que posso fazer no momento é tentar lutar contra estas psicoses e delírios que me acometem, com um grande temor sempre vindo do medo que vem de cima.
Foi numa viagem entre amigos que eu me deparei com o início de meu fim. Não havia nenhum presságio no ar, me lembro apenas que era um dia cinzento por demais, mas parecia ótimo para uma escalada nas montanhas ao redor de Belo Monte. Combinando os últimos detalhes e provisões para a escalada na casa de meu amigo Tomás, saímos de lá e fomos nos encontrar com Clécio e Jairo, nossos outros companheiros de escaladas. De todos esses nomes que eu acabei de citar, apenas eu sobrevivi ao medo que vem de cima, e tal detalhe me torna maldito e mal visto nessa pequena cidade. É deprimente a vida em que vivo, mas não tenho mais condições mentais nem físicas para dar uma volta por cima de tudo isso, muito menos amigos para me apoiar.
Confinado num quarto de sobrado numa das ruas mal iluminadas de Belo Monte, me sinto triste e solitário. A única companhia que tenho, é quando a coisa vem. O medo que vem de cima me acompanha especialmente nas noites de luas cheias, e nestes momentos desejo a morte ou qualquer coisa que tire minha consciência por completo. É aterrorizante a presença do medo que vem de cima, e aposto que o homem mais durão da cidade tremeria aos seus pés.
Decido contar minha história, além de para desabafar, como numa maneira de alertar os próximos que pretendem se aventurar pelas terras que eu andei, e que mais nenhum homem ou mulher seja acometido pelo mal que venho sofrendo há tanto tempo. Faz exatamente um ano em que saí da casa de Tomás junto com outros dois amigos em direção a grande montanha que cerca Belo Monte. O lugar é inabitado e não há muita certeza sobre se já foi explorado ou não, mas a visão de se aventurar por terras desconhecidas causou imensa curiosidade nos nossos jovens e puros corações.
A proposta veio num encontro, pela noite já alta, na casa de um de nós. Estávamos bêbados, sendo assim que era mais fácil concordar com qualquer coisa, mas é inegável a seriedade que o assunto foi tomando e indo para um rumo mais compromissado. Sendo assim, cinco dias depois, nos armamos de provisões para três dias e seguimos nossa viagem pelo dia cinzento até a montanha de Belo Monte. Foi uma caminhada tranqüila, porém apressada. Não havia presságio no ar, mesmo assim um sentimento de estranheza no ar e no futuro da viagem habitava nossos corações e não escapávamos de casuais arrepios na espinha.
Chegando na montanha, já noite, armamos nossa barraca num plano que ficava no mínimo a quinhentos metros de altitude, e logo nos preparamos para dormir. É inegável que houve certa ventania incomum durante nossa dormida, e eu acordei no meio da noite com muito frio. Olhei para o lado e vi meus três companheiros dormindo. Logo pensei em respirar um pouco do ar de fora e depois tentar dormir de novo.
Saí da barraca, e o vento gélido da noite me abraçou com a força que só uma natureza de mau humor poderia criar. Olhei para cima, e fitei o céu sem estrelas. Como se alguém tivesse jogado uma coberta negra por cima de Belo Monte, senti certo horror ao perceber a vastidão do cosmos acima de nossa cabeça. Foi então que eu vi a coisa. Ela se mexia pelo céu sorrateiramente, com sua pele quase negra e imperceptível, e com seu ar maligno.
Eu passei alguns segundos tentando definir o que era aquilo, e como não fui tomado pelo mais indescritível terror ao perceber o que se movia no céu lá em cima! Voltei correndo para a barraca, e acordei rapidamente meus companheiros. Os pedi que fossem para fora e olhassem para o céu. Mal saímos da barraca, uma ventania arrastou a mesma metros de distância e quase nos levou junto. Passado o susto, olhamos para o céu e então demos de cara com o medo que vem de cima.
Tomás soltou um grito de horror, e foi então que aconteceu. Seja o que fosse aquela coisa, sua mão negra desceu para a terra e envolveu Tomás com sua escuridão, puxando-o para o céu com uma força colossal. Vimos Tomás gritar enquanto subia e subia, até o perdemos de vista no espaço. Então gritei. Um urro de terror que ecoou pelos confins de nosso universo maldito.
Não me lembro muito bem do que aconteceu depois. Lembro que corri junto com meus amigos restantes e subimos até o pico da montanha. Lá, cercados pelo mato, encaramos com o horror nossa pior decisão. Seria bem mais seguro descer pela montanha e voltar para Belo Monte, mas a coisa parecia prever nossos movimentos...
Confesso que ri e cantei muito enquanto o medo que vem de cima nos espreitava, de lá do céu até o alto da montanha. De meus amigos, também não lembro muito. Lembro que me assustei com gritos e urros vindo do meu redor, e eu então corria para o mato, assustado. Fui encontrado pelo dia, por um escoteiro que por ali passava. Meu amigo Clécio sumiu, e de Jairo restaram apenas suas roupas, espalhadas pela terra.
Fui levado para a casa, em delírio, e lá falei muito sobre o terror que havia no céu, sobre nossas cabeças. Não me deram a devida atenção e me trataram como louco e culpado do sumiço de Tomás, Clécio e Jairo. Mas hoje essas coisas não me importam mais. É na noite, especialmente na lua cheia, que eu a vejo. Seus contornos decoram o céu de forma mórbida e sua presença me força a ir ao seu encontro.
Sou tomado pelo horror, mas não consigo simplesmente sair. Esse manuscrito é um grito desesperado de um homem que já não tem mais forças para lidar com o medo que vem de cima. Estou morrendo aos poucos, e isso é verdade. Emagreci vinte quilos desde que fui pego pelo medo que vem de cima, e já estou irreconhecível. Minhas olheiras fazem companhia ao meu semblante deprimido e assustado. Já me consultei três vezes com o doutor Azevedo, e o mesmo passou remédios que eu nunca tomei.
Não quero mais viver, desejo a morte ardentemente. Oh meu Deus! Lá vem, a coisa! Leve-me! Leve-me! Leve-me para a imensidão do cosmos e me livre dessa dor, oh Deus!