O HOMEM DE PRETO

‘’Vindo de Teroarea onde as noites são infinitas e o vento traz o som dos gritos desesperados dos suicidas. Quando ele nasceu uma tempestade de sangue caiu dos céus escuros. Fora batizado com o sangue menstrual de Ix Tab, a deusa dos enforcados. Sua mãe Éris, a deusa do caos e da discórdia, o amamentou até a idade dos cinco anos. Quando ele cresceu se casou com sua mãe, a linda deusa da confusão eterna. Depois de cortar a cabeça de sua bela genitora, a pedido da própria e, em nome do caos, ele se casou com Lillith, a mais rebelde das mulheres do infinito. Ele é filho de Lúcifer, o portador da luz. Ele vê e sorri no escuro, escrevendo no livro negro de Azrael’’.

Samael, o veneno de Deus

Carta 1-

Estamos todos presos aqui dentro deste vagão, não temos mais a noção de hora, não se sabe se é dia ou noite, não lembramos mais da luz do Sol, esquecemos os nossos nomes, nossos amigos e irmãos, não existem mais memórias das vidas que tínhamos fora daqui. Não conseguimos nos lembrar como tudo aconteceu, apenas estamos nesse vagão do metrô. Ele não para, apenas segue um rumo infinito em direção do nada. É impossível enxergar alguma coisa pelas janelas, apenas a escuridão lá fora. Passamos sempre por uma estação de metrô vazia e assustadora. É sempre a mesma estação que passa pelas janelas e por nossos olhos, como se estivéssemos dando voltas eternas pelo mesmo lugar. O trem nunca parou nesse local, ele apenas segue o seu ritmo alucinante pelos túneis infinitos. Não sabemos se estamos sendo conduzidos por alguém, nenhum contato foi feito até agora, não sabemos se existem mais pessoas ou mais vagões. Estamos sem comer, sem beber água, não dormimos, nem sequer urinamos ou defecamos. O mais estranho é que não sentimos mais estas necessidades fisiológicas básicas. Não vemos outros trens passando pelas janelas, não sabemos se existem outras linhas. É impossível enxergar algo pelas janelas, não se sabe se existe algo fora do vagão. Todos estão com muito medo. Nossos celulares não funcionam. Estamos condenados em uma maldição que se repete e repete sem um fim.

Somos 22 pessoas aqui dentro, a iluminação é precária. Uma grávida, um homem negro, uma lésbica adolescente, um jovem homossexual, uma transexual, uma senhora oriental, um muçulmano, um skinhead,um punk de calças rasgadas,um senhor nordestino,um pastor evangélico,uma freira de meia idade,uma senhora com mais de setenta anos,uma criança autista carregando um caderno de anotações,um mendigo, um homem com uma perna mecânica, uma mulher obesa, um homem com nanismo, duas irmãs gêmeas com aproximadamente vinte anos de idade,um garoto albino e eu. Sou um garoto de quinze anos e sou deficiente físico, estou em minha cadeira de rodas. Somos um grupo de pessoas vivendo neste vagão sem rumo. O tempo não existe mais.

Resolvi escrever esta carta com o intuito de avisar alguém lá fora, ainda tenho esta esperança. Assim que passarmos pela estação novamente, vou jogar a carta pelo vão da janela do trem. Talvez alguém a leia, talvez alguma ajuda possa chegar até nós. Algo tem de ser feito. O único receio que tenho é de que o homem de preto possa pegar minha carta. Ainda não contei sobre ele. O homem de preto está sempre nos perseguindo. Às vezes ele aparece nas janelas do vagão, em outras ocasiões nos o vemos lá na estação em pé,apenas observando o trem passar. Ele sempre está sorrindo e nos observando presos aqui dentro. Ele sempre está lá, do mesmo jeito, em pé, sorrindo com seu sorriso maldito que nunca termina, o seu corpo é magro, como uma sombra negra, flutuando no meio da estação que passa pelos nossos olhos constantemente. Não conseguimos ver o seu rosto, sabemos que ele é uma sombra com um sorriso enorme e terrível, nada abala ou faz cessar aquele sorriso desgraçado que parece zombar de nossa condição. Na mesma estação vi que ao lado do homem de preto, existe ainda uma menina que chora sangue com a sua barriga aberta,tentando desesperadamente recolocar suas vísceras em seu corpo dilacerado. Do outro lado do homem preto vemos uma criança com cerca de dois anos de idade segurando uma enorme faca em sua mão esquerda. Sempre que passamos por ali a criança nos observa e lentamente ela corta sua garganta deslizando aquela lâmina brilhante em seu pequeno pescoço. Não sabemos se isso seria algum tipo de mensagem que eles querem nos passar. A estação ao qual sempre passamos se chama ‘’Estação Teroarea’’. Não sei em que cidade essa linha de metrô passa ou onde ela fica talvez essa informação os ajude ai fora para que o nosso resgate seja facilitado.

Os ânimos aqui dentro estão exaltados, as pessoas estão a ponto de se matarem. Todos se odeiam e briga por tudo, a intolerância é enorme. O homem negro não pode sentar perto do skinhead. O homossexual, a trans e a lésbica não podem se aproximar do pastor. O muçulmano odeia a freira, a freira odeia o punk de calças rasgadas, a grávida não quer que a criança autista encoste em sua barriga pois tem medo que seu filho nasça com autismo,como se isso fosse uma doença transmissível. A mulher oriental tem nojo do nordestino, ela sempre teve medo das pessoas do Nordeste, a senhora com mais de setenta anos não quer chegar perto do mendigo, pois acredita que ele vá violentá-la sexualmente, além de reclamar que ele tem mau cheiro. O mendigo tem medo de anões, a mulher obesa odeia pessoas com perna mecânica, as gêmeas tiram sarro da mulher obesa, o garoto albino diz que eu só dou trabalho por não poder andar e que minha cadeira de rodas atrapalha o grupo. E eu nunca gostei de pessoas albinas. Todos se detestam se odeiam, aprisionados em nossos preconceitos e medos. E isso não irá nos ajudar a sair daqui. Estou escrevendo esta carta sem falar pra ninguém do grupo, vou fazer por minha própria conta, enquanto elas brigam se agridem e se ofendem. Talvez esse seja o motivo do sorriso sem fim do homem de preto, a nossa própria estupidez. Estamos num circo dos horrores, gritos, choros, ofensas, e preces intermináveis, palavras de ordem fascista, o nome de deus já foi dito por diversas vezes. Palavras racistas e homofóbicas ditas a todo instante, talvez fosse melhor estar lá fora rindo com o homem de preto, olhando para aquele homem sem rosto e sem olhos, com aquele maldito sorriso que nunca acaba. Todos aqui dentro estão cheios de suas razões, com seus umbigos recheados de algodão, donos da verdade aprisionados em seus egos infantis, com medo de si mesmos. Pois cada um aqui dentro é a própria denúncia da fragilidade da existência humana.

Escrevo para pedir ajuda, espero que alguém consiga parar este trem e nos tire desse pesadelo sem fim, por favor, alguém nos tire desse metrô infernal. Apenas quero voltar para a minha casa e recuperar a minha vida, vida que infelizmente eu não me lembro de como ela era. Talvez eu nem tenha casa, só sei que não agüento mais ficar aqui dentro neste pesadelo infernal.

Não agüento mais essa repetição sem fim e estas pessoas perdidas. Cheios de si,donos de suas verdades,cegos em suas cabeças,se esquecem que aquilo que acreditam ser a realidade nada mais é do que a interpretação singela que seus pequenos cérebros fazem daquilo que estão vendo, ouvindo e sentindo. Nós não conhecemos a verdade, nós nunca enxergaremos a realidade. Talvez nós não mereçamos ser salvos.

Devo informar nesta carta que o único que não julgou ninguém,ofendeu e agrediu, foi o garoto autista. Ele é o que é,sem mascaras,puro e autêntico,vivendo livre em suas diversas realidades as quais ele tem acesso, diferente de nós ,aprisionados em uma visão unilateral a qual tentamos defender com nossas vidas mesquinhas, não aceitando aquilo que nos faz ver outras possibilidades ,outros mundos e outras formas de viver. Ele apenas fica sentado no chão escrevendo em seu caderninho de anotações.

Devo lhes dizer que apesar de nossas brigas sem fim, o grupo decidiu de forma democrática que todos deveriam ficar dentro do trem, ninguém tentaria sair para pedir ajuda. Decidimos que iríamos ficar esperando até que alguém viesse nos resgatar e nos ajudar. É uma espera longa e torturante, a tão esperada ajuda nunca chega, o nosso salvador nunca aparece para nos tirar daqui e fazer com que o pesadelo termine. Mas como foi decidido pela maioria, temos de ficar aqui dentro até que alguém nos tire daqui. Eu vou desrespeitar um pouco essa decisão com esta carta, espero que ela caia nas mãos de alguém. O meu grupo não ficará sabendo de nada, vou fazer tudo escondido enquanto todos estiverem distraídos brigando uns com os outros. Vou finalizando minha carta por aqui, espero que tudo dê certo no final.

Carta 2 –

Infelizmente as coisas pioraram aqui dentro do trem. As pessoas daqui formaram quatro grupos diferentes. Estão espalhadas pelos quatro cantos, separadas pelas barras de ferro e pelos bancos que foram arrancados formando uma barricada no meio do vagão. Os grupos foram formados no calor das discussões, as afinidades os uniram para lutarem uns contra os outros, transformaram o medo em ódio, ódio irracional que os dividiram tornando-os inimigos mortais. Uma tragédia está para acontecer aqui dentro, a raiva brilha em seus rostos escurecendo a máscara que cobre o medo em seus olhos. A loucura e o caos imperam no vagão, a morte escorre na saliva de suas bocas odiosas. Precisamos de ajuda urgente! Eu não me uni a nenhum dos grupos, estou perdido no meio do vagão, protegendo a criança autista que parece não se importar muito com o que está acontecendo aqui dentro. Eu estou com muito medo. Minha primeira tentativa de me comunicar com o mundo exterior falhou. Na última vez que passamos pela estação de Teroarea,vi que o homem de preto segurava minha carta em suas mãos, ele sorria como sempre. Aquele mesmo sorriso que nos tem acompanhado durante muito tempo, tempo que já não faz mais sentido aqui dentro. Não sei quando passaremos novamente pela estação maldita ou quando verei aquele sorriso aterrorizante mais uma vez. Sei que esta pode ser a última vez que tento me comunicar com alguém do lado de fora do vagão, se é que existe um ‘’lá fora’’.

Não deixarei de escrever aqui na carta que eu percebi mais um detalhe na estação de Teroarea enquanto passávamos por ela. Vi que em uma de suas paredes, atrás do homem de preto havia um pôster, com uma espécie de propaganda sobre um livro de terror. Em suas letras eu pude ler ‘’ Lançamento do livro – O vagão’’. Talvez essa informação nova possa nos dar alguma resposta sobre o que está acontecendo aqui dentro. Tentarei jogar minha carta para fora do trem, antes que a estação de Teroarea apareça novamente, antes que ela caia nas mãos do homem de preto. Desejo imensamente que alguém me salve e me tire dessa maldita repetição sem fim e impeça o massacre que está para acontecer aqui dentro.

O inferno está piorando, neste momento eu vejo no canto esquerdo do vagão o pequeno bebê cortando lentamente sua garganta com a lâmina de sua faca brilhante. No outro extremo do trem eu vejo a mulher com a barriga aberta deslizando no chão do vagão, passando por cima de suas vísceras expostas com os seus terríveis olhos psicóticos. Como eles conseguiram entrar aqui dentro? Nas janelas dezenas de mãos negras batem freneticamente nos vidros, vejo sangue escorrer das portas de saída e entrada. Logo todo o vagão estará inundado com sangue que nos afogará. Gritos atordoantes que surgem do lado de fora penetram em nossos ouvidos causando pânico generalizado. Olho para cima e vejo que o horrível homem de preto está aqui dentro, ele caminha se arrasta pelo teto como seu fosse um enorme aranha negra, ele olha para mim e apenas sorri como sempre faz. Vejo que o garoto autista está ao meu lado, ele escreve com velocidade em seu caderno de capa preta, sem parar. Enquanto ele escreve, vozes em minha cabeça ditam os meus pensamentos, meus atos e antecipam os acontecimentos aqui dentro do vagão. Alguém me ajude, creio que fiquei louco. Vou jogar a carta lá fora pela janela, seja o que Deus quiser.

Carta 3-

Olá caro amigos Fer,Carlos e Faby. Vocês ainda não me conhecem, sou o irmão de um escritor amador e estou enviando seu último conto para ser lançado em sua próxima coletânea de terror de vossa editora, a grande e famosa Teroarea. O conto dele se chama ‘’O vagão’’. É sobre um grupo de pessoas que não sabem que eles são personagens de uma história de terror, que eles só existem nas páginas do livro, que estão condenados a repetição sem ter a noção de que vivem nesta realidade paralela à nossa. Ele escreveu este conto em seu pequeno caderno de capa negra, ele é autista e tem apenas onze anos de idade. Ao longo do enredo, um dos personagens irá perceber que eles estão presos numa história e que estão condenados a revivê-la todos os dias. Não posso contar mais detalhes sobre o conto, espero ter a honra de vê-lo publicado em seus projetos de imenso sucesso. Meu pequeno irmão é muito fã dos seus contos ‘’O bebe e a faca’’ e ‘’ A mulher das vísceras expostas’’. Agradeço desde já pela oportunidade. Por enquanto deixarei apenas o pseudônimo favorito do meu jovem irmão, fiquem com as bênçãos da grande Ix Tab,a deusa dos enforcados, grato!

ASS: O HOMEM DE PRETO (seu pseudônimo)

K H A O S
Enviado por K H A O S em 31/07/2017
Código do texto: T6070035
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