O ORFANATO DOS PECADOS.

Essa é a história que eu preferia não contar. Não sei ao certo o que me levou a escrevê-la, talvez seja minha consciência gritando para que eu deixe o passado onde ele deva ficar,no passado.

Vivi a minha infância e adolescência em um orfanato católico chamado Nossa Senhora de Fátima.

Havia uma garota que eu era apaixonado desde os meus oito anos; Tereza era o nome dela.

Garota de sorriso fácil estava sempre disposta a ajudar os outros.

Ela era o meu porto seguro nos dias ruins.

Tínhamos uma educação rígida. Os dormitórios masculinos ficavam localizados na ala sul do orfanato e o feminino na ala norte.

Era raro termos algum contato com as meninas a sós, geralmente havia alguma freira nos observando.

As punições para quem transgredisse as regras variavam de um simples “ficar sem jantar” a surras com fio de cobre; eu mesmo possuía uma cicatriz nas costas por ter sido descoberto em uma noite folheando uma revista com teor pornográfico.

A irmã Carmem era a diretora do orfanato, sem duvida era a figura mais temida na época.

Por enquanto não falarei mais sobre a Irmã Carmem, não pretendo fugir do assunto principal da história que é Sobre Tereza.

A primeira vez que conseguir falar com ela foi no dia das crianças de 1980,naquele ano a comunidade fez uma festa para as crianças do orfanato.

Eu estava andando distraidamente com o balão de gás que acabará de ganhar de um palhaço quando a avistei sentada sozinha no gramado.

-Porque essa cara de tristeza menina? Perguntei.

Ela olhou para mim e pude notar que finas gotas de lágrimas caiam de seus olhos.

-Porque não ganhei um balão. Respondeu ela limpando os olhos com o canto da mão.

-Tome. É seu. Disse estendendo minha mão oferecendo o balão para ela.

Ela deu o sorriso mais lindo que até então eu já tinha visto, naquele momento eu sabia que estava apaixonado.

-Qual é o seu nome? Perguntou ela.

- Erick. E o seu.

-Tereza.

Conversamos mais uns dois minutos antes de aparecer uma freira para nos separar.

A freira a puxou rudemente pelo braço para longe de mim. Eu estava estático não conseguia tirar os olhos dela e ela não conseguia olhar para frente, foi à troca de olhar mais tensa que eu experimentei ate hoje.

Nossa segunda Conversa demorou dois meses para acontecer, sempre a via no refeitório ou passando pelos corredores, mas nunca tivemos a chance de ter uma conversa.,sempre havia uma freira observando,isso me causava uma enorme frustração,passava noites e noites escrevendo poesias para ela,em minhas fantasias antes de dormir imaginava como seria nossa vida de casados.

Nossa segunda conversa foi um pouco mais longa que a primeira, acredito que conversamos por uns cinco minutos, não me lembro bem qual foi os assuntos que abordamos, mas lembro bem de uma coisa que ela me disse: - Meu sonho é algum dia ver o mar.

-Juro que te levarei. Respondi.

Conforme os anos foram passando nossas conversas foram aumentando, e o desejo era crescente por ambas as partes. Trocamos nosso primeiro beijo aos onze anos, sentados na escada numa madrugada de novembro, enquanto todos dormiam.

Sabíamos que não podíamos ser descobertos. Não estava preocupado comigo, eu já havia sofrido todos os tipos de corretivos naquele orfanato, estava preocupado com Tereza, não queria que nada acontecesse a ela.

No aniversário de treze anos dela, a esperei sentado na escada como fazia uma vez por semana naqueles anos todos.

Assim que ela desceu notei um olhar triste no rosto dela. Aquilo me magoava, porque Deus permitia que um tesouro daquele sofresse? Minha vontade era abraçá-la forte e transferir toda a tristeza dela para mim.

-O que aconteceu? Perguntei.

-Nada. – Apenas queria ter a chance de uma vida melhor. – não sei o que vai ser da gente quando formos adultos.

Segurei gentilmente as mãos dela na minha e encostei meus lábios de leve nos seus e sussurrei:

-Você vai Ser oceanógrafa, lembra?

-Uma oceanógrafa que nunca viu o mar. Disse ela olhando para os próprios pés.

-Você vai ser a melhor de todas, tenho certeza disso.

Ela alisou meu rosto e sorriu. Era um sorriso tímido, mas era melhor do que nada.

Naquele dia fomos surpreendidos pela irmã Marisa. – O que está acontecendo aqui? Perguntou ela ao nos ver aos beijos.

Eu estava tremendo. Temia que ela contasse para alguém: - por favor, não conte para a irmã Carmem. Supliquei.

Ela nos deu um olhar generoso e respondeu baixinho: - crianças se alguém pega vocês aqui, vocês sofreriam corretivos. Já para os seus respectivos quartos!

Afastamos-nos e fomos cada um para o seu respectivo dormitório.

Só voltamos a nos encontrar duas semanas depois, percebi que ela estava com um olhar tenso e então perguntei: - Está com medo? – Não é isso. –É que eu tenho que te contar uma coisa. Disse Tereza mordendo seu lábio inferior.

Não respondi nada. Depois de alguns longos segundos ela continuou: - Sou sobrinha neta da Irmã Carmem.

Eu já tinha ouvido esse boato nos corredores, mas nunca acreditei. – Como você sabe?

Ela continuou falando como se não tivesse ouvido minha pergunta: - Meu avô era casado com a Irmã Carmem, eu sou fruto de uma traição entre meu avô e a irmã dela.

Quando minha vó descobriu que estava grávida, eles fugiram juntos deixando a irmã Carmem para trás.

-Meu deus, como você sabe disso?

- Me lembro das histórias que minha mãe contava. – segundo ela quando meus avôs fugiram não conseguiram ter paz em nenhum momento. – Quando meu avô estava saindo de casa, a irmã Carmem o amaldiçoou disse que eles nunca iriam conseguir serem felizes e que a maldição não recairia só sobre os dois mais por todas as gerações ae família que viesse depois deles.

-Nossa! – Mas como a irmã Carmem virou freira.

-Em algum momento depois que ela foi abandonada pelo meu avô. - Não sei ao certo.

- E como você veio parar aqui?

-Meu avô morreu exatamente um ano depois de ter abandonado a irmã Carmem. – Os tempos eram difíceis e ele arrumou um emprego na roça, enquanto minha avó ficava em casa lavando roupa para fora e cuidando da minha mãe.

-Ele havia virado um alcoólatra. – Morreu em um acidente envolvendo um trator. – Não sobrou muita coisa para o reconhecimento do corpo.

Ficamos calados por um instante, eu estava tentando absorver tudo o que ela estava me contando, Joguei meus braços sobre os seus ombros e a aninhei entre o meu peito.

Ela levou um dedo à boca e logo em seguida continuou:- Minha avó e minha mãe faleceram quando eu tinha apenas seis anos, contraíram algum tipo de doença que os médicos não conseguiram detectar.

-Eu fiquei em um orfanato esperando que alguma família quisesse me adotar, mas quem acabou me encontrando foi à irmã Carmem.

- A primeira vez que eu a vi,eu tremia,sabia que estava diante da pessoa responsável pela morte dos meus avôs e dos meus pais.

-Você não mencionou nada sobre seu pai. Interrompi.

-Nunca o conheci. – Ele sumiu antes de minha mãe saber que estava grávida. –Acreditava que algo tinha acontecido a ele, afinal, ele não sabia que minha mãe estava grávida, tinha um emprego, porque ele fugiria?

-A primeira coisa que Irmã Carmem me disse foi que eu não deveria contar nunca para ninguém que éramos da mesma família, nesses anos todos foram poucas as vezes que ela me dirigiu a palavra, às vezes me pego pensando em como ela me encontrou...

Mais um tempo em silêncio, e em seguida ela emendou:- Está tarde.É melhor eu voltar para o dormitório. Deu-me um beijo demorado e foi em direção a seu quarto, enquanto eu permaneci ali, sentando apenas observando ela desaparecer da minha visão.

O tempo foi passando e nunca mais voltamos a falar sobre esse assunto, certa vez entrei no quarto da Irmã Carmem apenas para satisfazer a minha curiosidade, se ela fosse realmente uma bruxa, ela teria algum objeto macabro, revirei o quarto todo, mas nada encontrei. Conseguir sair sem ser visto, mas todas as vezes que esbarrava com ela pelos corredores ela me lançava um olhar como se soubesse o que eu estava escondendo.

No meu aniversario de dezesseis anos nos entregamos aos nossos desejos e tivemos nossa primeira vez, foi no nosso lugar de sempre, na escada. Entreguei-me totalmente. Ela possuía um corpo perfeito, ficamos quase a noite toda ali, naquela troca de afeto.

Na nossa segunda vez, uma semana depois, fomos descobertos pela Irmã Carmem: - O que significa isso? Gritou ela.

No susto Tereza saiu de cima do meu corpo e procurou seu vestido para esconder seu corpo nu.

-Nem pense em fazer isso. Gritou Irmã Carmem enquanto tomava o vestido das mãos de Tereza.

-Me acompanhem do jeito que vocês estão!

Olhei para Tereza que apenas olhava para o chão.

Duas freiras apareceram.Tamparam os olhos com a mão diante de nossos corpos nus.

-Acordem os alunos e os levem até os jardins. –Quero que todos vejam isso. Disse apontando para nós.

Ficamos expostos para o orfanato inteiro no jardim, fazia bastante frio naquela noite, mas não tinha certeza se meus tremores eram ocasionados pela baixa temperatura.

-Sabem o que eles faziam? Perguntou Irmã Carmem.

- Eles fornicavam nas escadas, e como todos aqui sabem isso é um ato ilícito condenado por Deus, A bíblia diz em Apocalipse 21:8: "Mas, quanto aos tímidos, e aos incrédulos, e aos abomináveis, e aos homicidas, e aos fornicadores, e aos feiticeiros, e aos idólatras e a todos os mentirosos, a sua parte será no lago que arde com fogo e enxofre; o que é a segunda morte.”

Ninguém falava nada. A Irmã Carmem parecia estar gostando do circo montado.

Sem me conter eu resolvi falar tudo o que eu pensava: - Porque dizem que fornicar significa ter relações sexuais antes do casamento? Acho que a interpretação que fazem está um tanto quanto errada. O sexo quando feito entre duas pessoas que se amam, configura uma troca de boas energias e não uma prática demoníaca.

Irmã Carmem jogou sua cabeça para trás e deu uma risada alta: Então você acha que entende a bíblia garoto? – Ninguém lhe concedeu permissão para falar, por causa desse seu ato de rebeldia Tereza vai pagar.

Olhou para uma das irmãs que entregou a ela um fio de cobre. Aproximou-se de Tereza e ordenou que ela se curvasse: - Serão 13 chibatadas!

A cada chibatada, meu coração doía, Tereza estava de frente para mim podia ver as lagrimas rolarem por seu rosto, mas ela não gritava,não queria dar esse prazer a sua tia avó.

Na décima chibatada Tereza não aguentava mais ficar em pé caiu curvada sobre a grama molhada.

-Você me deve três ainda, mas serei generosa e deixarei para a próxima. Disse Irmã Carmem.

-Levem na para o porão e a amarrem como se estivesse crucificada, ela deverá ficar lá por três dias, sendo alimentada por migalhas de pão e um copo de água a cada doze horas.

Aqueles dias foram difíceis, ela me relatou depois que ficou amarrada nua, que de vez em quando alguém a via espionar, achou que não iria sobreviver. Quando finalmente foi tirada do porão eu estava próximo, parei em uma distancia segura apenas para olhar para ela.

Estava bastante abatida, uma freira havia enrolado uma toalha sobre o corpo dela.

Um dia depois de ter sido tirada do porão, fiquei sabendo pela irmã Marisa que Tereza iria embora, tinham arrumado uma família para ela, ela já estava com dezessete anos, era raro uma família querer adotar uma pessoa no fim da adolescência, mas segundo a Irmã Marisa a Irmã Carmem tinha bastante influencia no mundo exterior e dificilmente um pedido seu era negado.

No dia seguinte estava no jardim com os olhos cheio de lágrimas vendo ela partir,ela diferentemente do nosso primeiro encontro não olhou para trás,era como se estivesse me evitando para evitar sofrer. Em frente a um carro, um casal de meia idade a aguardava, o homem abriu a porta do carro para ela, para em seguida entrar e partir.

Naquela mesma noite a Irmã Marisa me trouxe uma carta de Tereza, ela dizia que me amava muito e que a decisão dela de aceitar a família escolhida pela Irmã Carmem, foi simplesmente para evitar que algo acontecesse comigo. A sua tia avõ tinha prometido a ela que caso partisse quando eu completasse dezoito anos me arrumaria um bom emprego.

Guardei a carta no bolso e comecei a pensar num jeito de reencontra - lá.

Alguns meses depois da partida de Tereza Irmã Marisa me contou que um policial havia ido ao orfanato para comunicar que aconteceu uma tragédia com a família que Tereza estava vivendo.

-Que tragédia? Perguntei temendo o pior.

-Um homem entrou na casa durante a noite e matou os pais adotivos de Tereza.

-E onde está ela? Perguntei quase gritando.

-Ela está bem. – Está no hospital. - A policial conseguiu chegar antes que ele escapasse.

O olhar da freira não escondia a tensão. Ela tinha mais para falar, mas alguma coisa a estava impedindo, talvez não saber qual seria minha reação.

- O que mais aconteceu?- Me conte, por favor.

-Ela sentou do meu lado e falou: - Ela foi estuprada.

Levou minhas mãos ao rosto e comecei a chorar. Ela não merecia aquilo, por que com ela?

- Não é só isso. Disse a freira demonstrando certa cautela na voz.

- A policia nos disse que o homem estava contaminado com o vírus do HIV.

Eu sabia naquela época o que significava. Era a AIDS. Uma doença que surgiu naqueles anos; naquela época as vitimas do vírus morriam depressa.

-Não! Gritei eu. -Não pode ser!

A Irmã Marisa me abraçou e me pediu calma disse que talvez ela não estivesse infectada, mas sabíamos a verdade, ela estava.

Alguns dias depois ela voltou para o orfanato. Uma semana depois de sua chegada foi confirmado que ela estava com o vírus HIV, eu estava arrasado não suportava a idéia de ficar sem ela.

A Irmã Carmem apenas disse que tudo que aconteceu foi à vontade de Deus foi o castigo que ela teve por ter fornicado.

Dois meses depois da volta de Tereza para o orfanato fugimos no meio da noite.

Entrei na administração do orfanato e roubei algum dinheiro. Fomos para o Rio de Janeiro.

A saúde de Tereza já estava debilitada, não podia deixá-la morrer sem realizar o maior sonho dela, que era ver o mar.

-Aqui é lindo! Disse ela.

Caminhou ate a beira da praia e deixou seus pés se chocarem com as ondas que iam e vinham num ritmo ininterrupto.

Ficamos o dia todo ali, apenas nas areias da praia de Copacabana, sentindo toda a beleza do lugar.

-O que aconteceu comigo, foi por causa da maldição. Ela não olhava para mim quando disse isso, apenas observava o mar.

Não respondi nada. Não tinha uma opinião formada sobre isso.

- Eu só queria ser feliz. - Eu tinha tantos sonhos. Disse ela me abraçando em meio às lágrimas.

Tereza faleceu duas semanas depois. Eu permaneci no Rio mesmo após a morte dela.

Não sei o que aconteceu com a irmã Carmem, acredito que a essa altura ela já esteja morta.

Tentei ter outros relacionamentos, mas ainda vivia a sombra de Tereza, todos os meus relacionamentos não duravam mais de um ano. Às vezes até eu acreditava que a irmã Carmem era uma bruxa, e que a maldição que ela havia rogado para a família de Tereza tinha caído sobre meus ombros.

Se ela era uma bruxa mesmo nunca terei certeza, a única certeza que eu tenho é que eu devo ficar sozinho.Não posso construir nada com outra pessoa porque estou preso ao passado, não seria honesto com ninguém.

Como diria Renato Russo: Pecado é despertar desejo para depois renunciar.