APENAS UM CONTO DE NATAL

A neve salpicava a soleira da porta de entrada trazida pelo vento que uivava desde às primeiras horas da manhã daquele vinte e quatro de dezembro. Voltando das compras, a Sra. Liza Austin subiu as escadas quase tropeçando no último degrau devido à fina camada de água congelada formando um espelho liso e brilhante. Por um longo segundo ela teve a certeza de que a bolsa de papel se abriria, devido ao movimento brusco, e todos as latas de carne processada rolariam pela calçada.

Com dificuldade, retirou o molho de chaves do bolso e conseguiu ganhar a sala de estar. Alguns flocos de neve morriam nas pontas finas do tapete felpudo indo do branco ao transparente devido ao aquecedor mantendo o ambiente a agradáveis vinte graus. Liza sapecou a sacola semi rasgada na mesa de centro e tratou de retirar o capucho do casaco de lã. O cachecol e as luvas foram logo depois jogados sobre o sofá, pois as primeiras gotas de suor brotavam da testa.

O vento soprava golpeando as tábuas de proteção da janela emitindo o som semelhante a um carro passando em uma via esburacada. Richard não estava em casa e nem mesmo tinha previsão de chegada, uma vez que, após a última briga, disse preferir a morte ao ter que morar com uma mãe “tirana e louca”. — Foram exatamente essas as palavras de Richard naquela manhã de domingo, quando passou violentamente dos seus limites quase a agredindo. — O último final de semana antes da primeira nevasca daquele ano.

Liza sentou-se no confortável sofá vermelho retirando as botas de cano alto. Os pensamentos vagavam pela vida difícil e a aposentadoria de dois míseros salários mínimos dadas como esmola pelo governo após um trabalho de mais de vinte e cinco anos como enfermeira. Após a viuvez, nunca mais havia sentido a companhia verdadeira de um homem, sequer a visita de um amigo naquela casa cada dia mais fria e desguarnecida. Deixou alguns minutos passarem enquanto acariciava os fios brancos do cabelo encaracolado lembrando de James, o marido morto. O silêncio do inverno invadira o cômodo da casa e seus devaneios passeavam pela primeira noite junto ao esposo em sua alcova de amor e prazer.

James era um homem maravilhoso: um descendente de alemão com mais de um metro e oitenta de estatura e corpo atlético. Sabia como fazê-la feliz tanto na vida como na cama. Mas agora estava morto, enterrado abaixo de sete palmos de terra fétida e podre, deixando-a tão sozinha, deprimida e sem sonhos ou objetivos.

Os pensamentos de Liza foram interrompidos pelos fortes batidos na porta. As batidas aumentaram e transformaram-se em socos fortes. Os homens diziam que eram da polícia e que precisavam entrar para fazer algumas perguntas. Calmamente, Liza levantou e caminhou até a bolsa pendurada no prego cravado na parede lateral e de lá retirou um revólver. — Se eu mirar bem no meio da porta posso derrubar um deles. Mas quantos serão? Dois? Três? — Difícil predizer. Mas um tiro sempre é um tiro.

Agora, o vento aumentara significativamente quase arrancando as placas de madeira presas na janela para afugentar o frio, gerando sons de cata-ventos em um vendaval. Provavelmente, a neve também aumentara transformando-se em uma fraca tempestade.

As batidas na porta diminuíram até cessar de vez. Liza trotou até a antessala e, logo depois desceu as escadas até o porão, ainda com o revolver na mão. O cheiro do interior do cômodo não era nada agradável: uma mistura fétida de mofo com carne podre. — Provavelmente dos ratos presos nas armadilhas colocadas anteriormente. — Os roedores eram comuns naquela época do ano.

A mulher tateou a parede procurando o interruptor de luz roçando os dedos na grossa aspereza do cimento mal colocado. Pressionou o botão ouvindo o barulho da estática preencher o ambiente com as lâmpadas preguiçosas piscando três vezes antes de revelar maiores detalhes do cômodo: um grande quadrado com paredes emboçadas.

Liza abriu as portas de um armário de metal retirando uma pequena faca com ponta curva e bem afiada.

— Vou cortar três desses pequenos galhos para enfeitar a árvore de natal. — Os galhos estalavam a cada golpe da lâmina. — Vão ficar lindos.

O vidro da porta dos fundos bateu violentamente devido a ventania e a mulher subiu as escadas ganhando novamente o cômodo principal. O revolver havia sido guardado no bolso da calça e, agora, só era exposto o pequeno cabo de madeira envernizada causando uma ondulação no pano da blusa. Liza esgueirou-se em um pequeno corredor chegando há mais um cômodo onde se apresentava um grande pinheiro verde enfeitado de bolas de vidro coloridas. Uma grande árvore para comemorar o dia de natal. Ela retirou dois ganchos perfurando os três galhos separados e, logo depois, prendeu-os entre as folhas verdes do pinheiro. Os galhos balançavam criando sombras bruxuleantes das velas acesas abaixo do monumento. Liza orgulhou-se de sua obra e nem sequer se assustou quando a porta foi arrombada e alguns agentes fortemente armados adentraram a sala de forma organizada e tática. Uma lufada de ar congelante invadiu furiosamente matando a força do aquecedor a gás.

— Cuidado! Muito cuidado, ela é perigosa. — Dizia o sargento Mathias encostado no que sobrou da porta com seu fuzil em punho apontado para cima.

Liza girou o interruptor do pisca-pisca vagarosamente e ficou deslumbrada com as lâmpadas de led coloridas criando sombras em seu rosto. Deu dois passos até a velha vitrola pressionando o botão de ligar.

— Polícia! Você está cercada! Saia daí com as mãos para cima!

Os gritos de Mathias saíram abafados atrás do lenço colocado no rosto para tapar o nariz. O cheiro de podre era insuportável. Não dava para alguém, em sã consciência sentir aquele aroma sem ao menos ter fortes náuseas. Dois soldados curvaram seus corpos para vomitar devido a graveolência. Os outros ganhavam os cômodos devagar sabendo que o pior poderia acontecer.

De repente, ao fundo, de um jeito sutil e delicado, o som de uma famosa cantiga de natal ocupou o ambiente conduzindo os agentes até ao final do corredor onde a imagem mais caliginosa e funesta decorava o canto da parede do quarto.

Um pinheiro negro decorado com pedaços de corpos em decomposição enfeitava o cômodo. No lugar da tradicional estrela do topo havia uma cabeça enlameada, ainda com os olhos e a boca abertos e um pedaço da coluna vertebral pendurada bem abaixo do pescoço como uma grande lacraia albina invadindo a nuca. Pernas, braços e pés estavam presos a ganchos de ferro nos galhos da árvore morta. Vários nacos de carne putrificada eram expostos já escurecidos pelo tempo. O zunido de milhares de moscas embaralhava-se ao refrão da cantiga de natal. Ao fim da árvore, três dedos ainda sangravam e pareciam balançar sobre a cadência da música.

A mulher estava sentada em uma cadeira logo ao lado do monumento mortuário. Trazia nas mãos o fio com o interruptor liga/desliga das luzes coloridas que davam uma aparência ainda mais tenebrosa a cena. A mulher sorria balançando os lábios, cantarolando a canção bem baixinho. Seus olhos fitaram os dois únicos agentes que conseguiram segurar o lanche dentro do estômago e logo depois viraram para cima encarando o teto. Eles mantinham as armas em riste, porém continuavam parados como estátuas, sem coragem de dar mais um passo na direção daquela mulher-demônio.

Não houve resistência à prisão. A mulher continuou imóvel até entrar na viatura sob custódia. Alguns minutos depois os policiais encontraram o filho Richard amarrado no porão. Em uma de suas mãos faltavam três dedos cortados recentemente devido ao sangramento em abundância, o rapaz estava preso em correntes, desmaiado e amordaçado com uma fita adesiva. O corpo esquartejado pendurado como enfeites de natal era de James, o marido.

Dias mais tarde, a perícia descobriu que Liza esquartejou o marido ainda vivo. Prender o filho talvez não estivesse nos planos, porém o rapaz voltou de viagem antes do previsto e surpreendeu a mãe decorando o pinheiro com os testículos decepados de James em sua obra prima de natal. A mulher confessou ter batido na cabeça do filho com uma tábua e o prendido no porão, no mesmo lugar onde os restos do marido ainda jaziam.

No interrogatório, ao ser perguntada sobre suas razões para ter cometido tal atrocidade, Liza foi enfática:

— Eu queria um natal diferente este ano.

Paulo Costa Lima
Enviado por Paulo Costa Lima em 15/12/2016
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