A ÚLTIMA TESTEMUNHA
Eu sou a morte. O ceifador. Onde existir medo, desespero, sangue e escuridão eu estarei. Sou a última testemunha dos maiores e mais bárbaros crimes. Sou o último espectador do circo de horrores e estarei presente após o seu finado suspiro. Segurarei na sua mão e você sentirá meus finos e longos dedos ensebados, cravando as unhas na palma e retirando de lá a linha da vida tão falada e tão temida pelos ciganos.
Todos querem se livrar de mim, mas sou a única certeza. Sou o funesto prêmio que todos herdarão. E estarei te esperando, à espreita de tudo e de todos. Naquele descuido ao atravessar a rua, ou mesmo disfarçado de qualquer coisa inanimada espiando suas horas passarem a cada badalada do relógio da vida até qualquer ser microscópico invadir seu corpo e devorar seus órgãos um por um.
Estudo cada movimento seu. Sei que em breve estaremos juntos doando aquela patética moeda ao senhor barqueiro. Nós dois! Para depois acertarmos as contas. Deixar-te-ei novamente sozinho e voltarei para buscar mais um infeliz. Não realizo o julgamento, apenas conduzo o infeliz ao banco dos réus. Dalí para frente você que se entenda com as forças superiores. Cada um possui sua própria corda que vai puindo a cada má ação, cada praga rogada. O mundo também é daqueles que pensam que pode conquista-lo e as consequências duram uma eternidade.
Às vezes prego peças. Lembro-me de Danilo, segundos depois que o caminhão passou sobre seu corpo inerte. Já havia ido embora pelo impacto devido a queda da motocicleta, mas mesmo assim ainda teve a tal infelicidade de rolar pelo asfalto quente e receber toneladas de peso. Este se espatifou e, praticamente, desfiou como frango cozido abaixo dos cálidos pneus. Danilo correu para o acostamento na certeza de ter escapado, logo depois aproximou-se da própria carcaça fedendo a carne e borracha queimadas. Eu poderia ter intercedido lançando minha foice em sua cintura trazendo-o para perto de mim, mas, confesso que adoro ver o rosto atormentado nesses casos onde o corpo parece um pano de chão desairoso depois que acabamos de limpar uma grande sujeira. O rapaz desesperou-se ao ver seu rosto com um dos olhos pendurados na bochecha e praticamente, metade de sua face comida pelo asfalto. Uma das pernas dobrou-se para o lado oposto mostrando o que um dia havia sido um fêmur, completamente esfarelado trinchando a carne da coxa. Parece que a cada dia o cheiro de sangue me excita mais e neste caso eram litros e litros espalhados pela rua, uma bela poça semi coagulada como gelatina de morango putrificada no solo. Não demorou muito e peguei Danilo pelo pulso trazendo-o comigo. Infelizmente o show termina muito rápido e a minha missão não é apenas divertir-se com a desgraça alheia, mas sim conduzir minhas crianças até o julgamento final.
Falando em crianças, por estas sim tenho até um pouco de compaixão. Um capítulo à parte em meu oficio tão estafante. Algumas se vão muito cedo. Tão cedo que tenho que levá-las no colo em muitas das vezes. Mas deixo essa parte tétrica da história para uma outra oportunidade. Prefiro falar de Carolina: Loira, olhos claros e corpo escultural. Uma boca carnuda cobiçada por tantas pessoas de bem e de mal. Pena... A jovem foi se encantar logo pelo mal. Um traficantezinho de merda que achava que poderia me vencer. — Diga-se de passagem, adoro ser desafiado! Até hoje sempre venci. — Com eles não foi diferente.
O idiota mexeu em casa de marimbondo e acabou morto com três tiros no rosto e, enquanto eu o levava até o barqueiro, com aquela cara cheia de sangue e toda a merda que saía de lá, sua garotinha era estuprada por dois outros. Deu tempo de eu ir e voltar para assistir àquele espetáculo. Eles foderam ela direitinho até o cano da arma foi usado para arrebentar todas as entranhas da bela loirinha. Achei estranho ela sobreviver mesmo depois de ter as pernas quase arrepeladas com um pequeno machado. Os cortes eram tão fundos que dava para ver a cartilagem do osso da coxa se movimentando a medida em que eles se divertiam com o corpinho dela. Seu rosto, que um dia havia sido tão lindo, agora estava completamente roxo e inchado por tantas coronhadas e murros levados. — Não entendo: As pessoas sabem que perderam e que não tem jeito, mas cismam em apegar-se ao último objeto preso na caixa de pandora. A tal esperança é igual para pessoas boas e ruins. Mas vamos voltar para a Carolina. — Não haviam mais dentes na frente, foram engolidos pela jovem após a terceira coronhada com o cabo de madeira do revólver. Da língua também não sobrou muita coisa, estava mutilada demais para sentir algum gosto. Depois que os dois estavam satisfeitos ainda olharam a pequena nua, completamente ensanguentada no chão e, logo depois, deram o tiro de misericórdia no meio de sua testa. Este caso foi intrigante, pois foi a primeira vez que testemunhei uma pessoa que conseguia me ver mesmo antes de morrer. Quando sua alma desligou-se do que sobrou do corpo eu pude paquerar em seus olhos um tácito “obrigado”. Pobre Carolina, os pais tinham uma boa condição financeira e ela poderia estar agora desfrutando o que poucos podem.
Agora estou aqui, contando esta história e aguardando o velho partir. A família do pobre coitado não retornou suas ligações e somos apenas ele e eu nessa charneca mal arrumada. O miserável teve câncer de próstata e viu seu cú apodrecer aos poucos sem nenhum tipo de dignidade ou tratamento. Na verdade, o filho deste infeliz tem boa vida e poderia pelo menos aliviar o sofrimento de um pobre ancião completamente estragado. Vou esperar que a doença tome seus intestinos até chegar ao estômago e coma-o completamente. Deve acontecer ainda esta noite e depois eu volto para ser novamente a última testemunha, aquele que ninguém deseja cruzar um dia. Mas cruzarão. E neste dia estarei pronto para te pegar pela mão e conduzir-te até o barqueiro para o outro lado do rio. Quando chegar lá, o levarei ao seu tribunal para que seja julgado por tudo que fez e deixou de fazer.
Eu sou a morte. O ceifador. Onde houver sofrimento, dor, agonia e desespero eu estarei ali, à espreita, esperando tudo acabar para acompanhar-te. Sou a última testemunha e encontrarei você um dia. Esteja preparado.