Uma Noite Distante
- Trouxe um presente para você – disse-me Fábio, meu namorado.
Ele tinha acabado de voltar a uma visita a Belo Horizonte, em Minas Gerais, e esperava dele algum típico artigo regional mineiro, talvez uma peça de moda, mas não foi nada disso o que ele ofereceu.
- Olha – ele falou ao mesmo tempo em que abria a mão revelando um pingente, um tipo de medalhão ou talismã.
- O que isso amor? – perguntei.
A peça era bem rústica, um simples cordão, na verdade uma cordinha bem fina, com uma espécie de pedra negra na extremidade.
- Advinha!
- Parece uma joia mal acabada – eu ria enquanto examinava o objeto.
Ele também riu, pegou o objeto de minhas mãos e, delicadamente, o colocou sobre minha cabeça até aloja-lo em volta de meu pescoço.
- Nada mal! – elogiou.
- Muito pesado – retorqui – Mas me diga logo que troço é esse afinal.
- Você não tem mesmo paciência Ju? Mas vou te dizer. Comprei isso numa cidade perto de Belo Horizonte, Lagoa Santa, já ouviu falar?
- Nunca – e nunca tinha ouvido mesmo – mas você não pode me culpar por não conhecer todas as cidades de Minas.
- Ah, que isso, são só umas 800 cidadezinhas e uns dois mil distritos. Mas vamos ao que interessa, tá vendo essa pedra? Acredita que isso é uma ponta de lança ou de flecha?
- Hmmm, eu acredito que você foi é enganado – e ri mais uma vez.
- Enganado nada, sou muito esperto Ju. Comprei de um senhor numa feirinha na cidade, eles tem um sítio arqueológico ou algo assim por lá, dizem que o homem primitivo viveu por aquelas bandas e deixou alguns apetrechos para trás, aí o povo acha e vende.
- Isso tá com cara de ser ilegal amor, isso se for verdade, continuo achando que você foi enganado e te venderam uma pedrinha qualquer de enganar turista.
- Se é ilegal eu não sei, mas até que ficou bonito.
- Bonito não é, mas devo confessar que é bem original, e bem rústico. – respondi.
Fiquei examinando aquele pequeno talismã, acho que não havia mal em chama-lo assim. Olhei-me em frente ao espelho e enfim disse:
- É, você venceu, ponta de flecha ou não vou ficar com ele.
- Essa é minha garota!
Conversamos mais algum tempo até que ele foi embora. Admirei o talismã mais um pouco.
- Homem primitivo... cada uma que se conta pra vender mercadoria!
Já estava ficando tarde, decidi tomar um banho e preparar algo para comer, depois de tudo fui para o computador e decidi pesquisar um pouco sobre Lagoa Santa e, para minha surpresa, existia um fundo de verdade no que meu namorado tinha me contado, aquela região realmente havia sido morada do homem primitivo.
- Num é que ele tava certo! – pensei alto lembrando de Fábio.
Por fim desliguei o computador e as luzes, me joguei na cama e me preparei para mais uma noite de sono.
Só que não conseguia retirar a história dos homens primitivos da cabeça. E se aquela peça realmente tivesse sido forjada por eles? Quantos anos teria? Quanto tempo permaneceu perdida até ser redescoberta? Gostaria de pensar em outra coisa mais não conseguia e, naquele limiar entre o estar acordado e dormindo, os pensamentos fluíam...
... estava frio, muito mais frio do que quando fui pra cama, procurei meu cobertor e não o encontrei, abri os olhos, onde estava o cobertor? Não estava por perto, a própria cama, juntamente com todo o quarto, havia desaparecido, em seu lugar paredes de rocha nua refletiam um brilho dançante e alaranjado, olhei em volta e descobri a fonte daquele reflexo, uma fogueira. Quase instintivamente me levantei e me aproximei dela, senti o calor irradiado me aquecer e gostei daquilo, percebi um movimento a meu lado e vi uma mulher, pequena e negra, ela sorriu para mim, um sorriso amistoso ao qual retribui, depois reconheci outros rostos sorrindo em volta da fogueira, todos amistosos e, sem saber por que, me senti bem...
... levantei num salto. O sol entrava pela janela, já não sentia tanto frio, estava sob meu cobertor e sobre minha cama.
- Um sonho – disse para mim mesma levando a mão ao peito.
E quando fiz isso senti um objeto em volta do pescoço, era o pingente com o talismã.
- Eu dormi com isso? – perguntei-me e fiquei pensando como pude esquecer de retira-lo.
Aquele dia não correu bem, tive dores de cabeça o dia todo. Quando meu namorado me viu, logo notou:
- O que houve Ju?
- Nada, só não dormi bem, uns sonhos estranhos. Ontem antes de dormir fiz uma pesquisa sobre o lugar em que você esteve, cê tava certo, o homem primitivo realmente viveu por lá, acho que fiquei impressionada, foi apenas isso.
- Ahá! Duvidou de mim né! Bem, de qualquer forma se isso te agrada posso passar a noite aqui com você, seria um prazer. – disse ele me abraçando e me beijando.
- Sei bem que prazer seria esse – falei sentindo suas verdadeiras intenções – pode deixar, eu quero descansar e faço isso melhor sozinha.
- Já que insiste.
Quando nos despedimos rumei tirado para o quarto, sentia-me exausta, precisava descansar. Joguei-me na cama e adormeci de imediato. Então...
... era a mesma caverna, a reconhecia como se sempre tivesse vivido ali. Procurei pelas pessoas da noite anterior, não as encontrei. A fogueira continuava acessa como se alguém estivesse constantemente alimentado as chamas, senti novamente na face um vento frio, bem frio, e segui na direção de onde vinha, meus passos eram cuidadosos, o chão era arenoso e só quando fiz essa observação percebi que estava descalça, e outra: meus pés eram negros!
Estranhamente aquilo não me surpreendeu, continuei andando e encontrei a entrada da caverna, lá fora era tudo negro, a não ser pelo céu mais estrelado que já havia visto, o frio era cortante e havia mais, uma mulher, a reconheci como a mulher da noite anterior, ela estava com um tipo de lança na mão e parecia montar guarda, ao me ver sorriu novamente e eu sorri de volta. Mas algo logo chamou nossa atenção, ouvimos um ruído vindo da escuridão, passos sendo dados, mato seco sendo amassado, a mulher colocou a lança em riste, gritou algo que fez meu coração gelar e logo vi dois brilhante olhos saindo da escuridão enquanto presas de marfim rasgavam a noite...
... acordei aos prantos. Chorava sem saber ao certo porque, como se algo muito caro a mim houvesse sido arrancado de meus braços, olhei em volta e percebi ser dia, que já ia alto, levei as mãos ao peito e senti o talismã, como na outra noite mais uma vez não o havia retirado e, apesar da vontade de fazê-lo, não consegui tira-lo do pescoço. Imediatamente peguei o telefone e liguei para meu namorado:
- Fábio... – não conseguia dizer nada, só chorar.
Ele veio imediatamente.
- Juliana, conta logo o que foi, não me deixa preocupado!
- Foi você! – gritei.
- Eu, o que eu fiz?
- Me deu isso! – apontei para o talismã ainda em meu pescoço.
- Ué amor, é só uma pedrinha, tu mesma disse. E se não gostou é só tira-lo, me deixa tirar pra você e dar um fim nisso.
- Não! – gritei com tanta força que o assustei – É meu, você me deu, eu só, eu só... – e comecei a chorar novamente.
Ele me abraçou.
- Ele é meu Fabio, sempre foi ... – murmurei.
- Eu não entendo.
- E eu não sei explicar. Só gostaria de saber mais sobre o povo que morava lá, nessa cidade, Lagoa Santa.
- Olha Ju, eu tenho um amigo na universidade, o Marcus, talvez ele possa te falar alguma coisa a respeito, ele quem inventou de ir nessa cidade aí. Podemos falar com ele amanhã.
- Podemos ir hoje! – não sugeri, ordenei, e ele sem jeito acabou aceitando, pegamos o carro e seguimos para a universidade.
Encontramos o tal amigo do Fábio, era apenas um acadêmico bolsista, mas parecia saber das coisas.
- Parece autêntico, deve ser obsidiana ou outra pedra usada na pré-história – disse ele olhando para meu talismã, eu não me incomodava mais em chama-lo assim – posso ver?
- Não – respondi tão secamente que o assustei um pouco – gostaria só que nos contasse um pouco sobre o povo que fez.
- Ah, estamos falando do Homem de Lagoa Santa. Um tema bem polêmico – respondeu Marcus com ar de intelectual.
Meu namorado ficou um pouco curioso:
- Por que polêmico? – questionou.
- Vocês conhecem a teoria de como o homem chegou as Américas?
Eu e meu namorado nos olhamos e respondemos juntos:
- Não.
- Bem, a teoria mais aceita diz que eles atravessaram uma ponte de gelo no Alasca, no estreito de Bering, colonizaram primeiro a América do Norte e depois chegaram aqui, na América do Sul, mas supostamente as ossadas encontradas na região de Lagoa Santa e outros lugares do Brasil são mais antigas que isso.
- Mas porque você diz “supostamente” – também fiquei curiosa.
- É que essa teoria não encontra muito respaldo em publicações estrangeiras, por enquanto é só uma tese.
- Entendi – falou Fabio, meu namorado – se essa descoberta fosse feita por um americano todo mundo tava falando nisso né.
- Pode até ser, mas a verdade é que ainda sabemos muito pouco sobre esse povo.
Eu levei mais uma vez as mãos ao talismã, aquilo estava se tornando um hábito, e formulei uma pergunta que me angustiava:
- Marcus, há algo que eu gostaria de saber. Existem índios negros?
Foi Fábio quem respondeu:
- Os índios são bem morenos Juliana...
Eu o cutuquei com o ombro para calar a boca e o verdadeiro “especialista” respondeu.
- Hmm, como seu namorado disse, há índios de pele bem escura e bronzeada, mas não negros como os africanos se é isso que você quer disser. Mas porque pergunta?
- É que vi uma gravura desses Homens de Lagoa Santa – menti – e achei que tivessem a pele negra, mas pode ser engano meu...
- Na verdade não, o Homem de Lagoa Santa era realmente negro, e isso é parte do mistério. Veja bem, todos os habitantes nativos da América são indígenas, possuem traços asiáticos, como os japoneses, e isso reforça ainda mais a teoria da migração pelo Alasca. Mas o Homem de Lagoa Santa não, eles não eram índios, eles eram negroides, como os africanos e australianos, e ninguém sabe como chegaram aqui, o que sabemos de certo e que foram totalmente extintos, quando os índios chegaram ao Brasil talvez eles já tivessem deixado de existir há séculos.
Aquela informação deixou-me um pouco desconfortável, mas agradeci a ajuda e nos despedimos de Marcus. Pedi para Fábio me levar de volta pra casa.
- Fábio – disse eu – fica comigo essa noite?
- Você nem precisava pedir, está muito estranha, se eu soubesse tinha deixado essa pedra onde achei.
- Não, você fez certo em trazê-la.
No caminho pra casa pouco falei, e quando chegamos permaneci calada a maior parte do tempo também. Fábio bem que tentou me animar, mas desistiu. Por fim dormiu ao meu lado na cama, roncando como um porco e eu mais uma vez fiquei no computador pesquisando sobre a Pré-História brasileira. Mas como nosso amigo tinha dito havia poucas publicações sobre esse tema, o Homem de Lagoa Santa, bem como sua origem e seu desaparecimento, eram um mistério enterrado no tempo.
- De onde você veio? – falei segurando a pequena pedra negra em meu pescoço.
Então apaguei as luzes, ajeitei o travesseiro e...
... o frio voltou, agora muito mais intenso, a fogueira estava quase apagada. No chão identifico algumas manchas difusas e as reconheço sem sobressalto, era sangue. De repente sinto uma mão sobre meu ombro e me viro assustada, era a pequena mulher negra, mas não sorria como das outras vezes, estava com uma olhar tenso, de medo, ela aponta a lança para a entrada da caverna e murmura qualquer coisa, eu olho e vejo um vulto grande camuflado na escuridão, um ser apoiado sobre quatro patas ocupado demais para nos dar atenção. Com medo me aproximo, a pequena mulher tenta em vão me segurar, mas algo dentro de mim pede para continuar, dou meus passos bem devagar e a criatura mal parece notar minha presença tão ocupada estava. Então estaco ao reconhecer no que ela se ocupava: um corpo!
Tendo abafar um grito, mas mesmo assim ele sai. A criatura se vira imediatamente e vejo mais uma vez seus olhos brilhantes e suas duas enormes presas de marfim, tão grandes como dois sabres brancos manchados de sangue, ela era imensa, uma espécie de tigre gigantesco com longas presas, e o sangue escorria de seus grandes caninos. Não conseguia me mexer, apenas esperei por aquele monstro que avançava sobre mim...
... Aaaahhhh! – despertei com meu próprio grito – Fabiooo! – chamei por ele.
- Fabio! – gritava histérica, mas ele não respondeu.
Apalpei a cama a sua procura e nada encontrei.
- Fabio? – sabia ser irracional, mas comecei a sentir medo.
Trêmula procurei pelo interruptor na escuridão e o encontrei. O clique no botão revelou uma cena indescritível.
Sangue. Havia sangue por toda a cama, por todo o quarto.
- Fábio, não, não Fábio – solucei.
Procurei o talismã no pescoço e não o encontrei. Aquilo me deixou ainda mais nervosa, não conseguia deixar de fitar o sangue que tomava conta da cama e, olhando para ele, percebi que uma grande mancha ia em direção a porta, como se algo houvesse sido arrastado.
E de lá, do outro lado da porta, era possível ouvir um farfalhar ao mesmo tempo felino e canino, como se o monstro dos meus sonhos tivesse encontrado uma forma de penetrar a realidade.
Ainda temerosa e sabendo o que encontraria eu me levantei. E ao fazê-lo senti meus pés tocarem algo, olhei para o chão e vi um longo objeto de madeira, era uma lança e em sua ponta uma pedra negra brilhante e afiada. Apesar de ser muito maior que meu talismã eu não tive dúvidas:
- Meu talismã – disse pra mim mesma – então e daí que você veio.
Segurei a lança e a coloquei em riste na minha frente. Com passos cautelosos segui a mancha de sangue até a porta, a minha volta as paredes do quarto se apagavam, substituídas por rocha nua iluminada pelo fogo, a porta aos poucos ia ganhando contornos irregulares até se transformar numa abertura para escuridão da noite fria, muito fria.
Lá fora o farfalhar do monstro continuava, mastigando sua presa. E senti ao meu lado outra caminhante, a pequena mulher negra me acompanhava, lança em punho. Nós seguíamos sem medo, a fera nos aguardava, e estranhamente, pela primeira vez na vida, eu me sentia em casa.
Conto participante do DTRL 28 com o tema Pré-História.