Tlacatlaolli - DTRL 27.

O aroma invade a sala de jantar, escapando pelas frestas da antiga porta de carvalho que separa os aposentos, forçando-me a salivar satisfeito. Inspiro profundamente, tentando captar todas as nuances da mistura de condimentos e óleos. Percebo o azeite português com seu aroma suave, bem característico, misturado a uma gama de especiarias.

Cada erva e semente que douram no calor dos óleos, traz-me uma recordação, na maioria feliz. Sinto o perfume do cominho misturado ao alho e rapidamente vislumbro os montes de minha infância, onde sempre havia esse odor nos cabelos encaracolados de mamãe. Aroma que também parecia incrustrado em todo corpo, em toda carne.

Ainda tomado pela visão de outrora, um novo perfume assaltou minhas narinas enquanto o azeite chiava: sumo de limão siciliano e cebola chalota. A mistura do ácido cítrico e do doce da raiz, aos demais temperos, faz com que eu sorria de contentamento, algo quase libidinoso.

Preso entre ansiedade e satisfação, permito-me mais um gole de Amaro. O licor de ervas tem um sabor marcante, especial, como o jantar deve ser. Enquanto brinco com a bebida a girando na taça, percebo o som da farinha sendo lançada no caldo de especiarias. Novo sorriso se emoldura em minha face, pois tal som será precedido pelo odor de mozzarella de búfala e do Chenin Blanc.

O vinho sul africano tomba sobre a farinha aquecida, a fazendo chiar ainda mais, um chiar queixoso que quase eclipsa o som do queijo caindo no tacho de pedra. O aroma que me alcança é melhor do que o esperado, quase tão fantástico quanto ao de alguma mulher pelo qual meu coração, agora murcho e frio, um dia já convulsionou.

Após algumas poucas passadas dos ponteiros do antigo carrilhão vitoriano, a jovem chef invade a sala, equilibrado em suas mãos um Costwold onde o primeiro prato da noite sedutoramente repousa. Joliet em um gesto veloz escorrega a porcelana sobre a mesa e após um doce sorriso retorna para onde as alquimias de sua arte ainda borbulham e grelham. Ávido pelo bacanal sensorial que a soupe à l'oignon me trará, salto da poltrona e arrasto minha carcaça roída até a távola.

Apesar de a receita ter sido mutada por Joliet em alguns pontos, o prato é nada menos do que a materialização do sublime. O prato lança-me em uma era passada de minha história pessoal, um período onde estive suspenso na neblina onírica criada por meu deslumbramento pela cidade luz, época em que conheci Alicia, linda meretriz adolescente de olhos umbrosos e polpa tenra.

Nem mal o carrilhão percorreu dois algarismos seguidos e me vi arando o fundo da faiança com uma talisca de baguete. Ah, como é injusto o mundo! Rapidamente as alegrias e prazeres se esmaecem na moenda das horas. Insatisfeito e ainda mais ávido pelos prazeres da glutonia farejo o ar, tal qual um sabujo com rabia, tentando sorver os aromas do prato principal. O ar com suas mãos secretas lança os cheiros e sons em minha face sem cerimonia.

Escuto o milho choclo sendo cozido junto à carne, enquanto a pimenta guajillo, o cominho e o alho são triturados na moenda manual para formar uma pasta carmim. O aroma acre da carne se mistura ao leve adocicado da canjica, criando um perfume agridoce, que estranhamente me faz ter uma ereção, coisa que para mim era perdida. Sorrio de modo néscio, antecipando os deleites que até hoje eram apenas dos ameríndios mortos por Cortez.

Nada tarda até a chef por mais uma vez invadir o salão trazendo novo passadio. Exata em seus gestos a moça apresenta ao tampo da mesa a faiança Kirkee onde o tlacatlaolli fumega convidativamente. A montagem do prato é uma verdadeira peça artística onde o branco do milho contrasta com o rubro da carne e o verde do abacate em fatias, formando um tributo ao pavilhão dos descendentes mexicas. Inebrio-me com o eflúvio da iguaria e sob o olhar ansioso de Joliet, que me serve uma taça de El Pison, dou a primeira garfada.

Verdadeiro êxtase domina meus sentidos. A carne é tenra, sumosa, com um distante tom picante que percorre levemente minha língua, que deixa para trás todas as demais que tive chance de provar. Nem a de mamãe, Alicia ou outra mulher que já degustei tinham tais qualidades, apesar de serem verdadeiros tesouros para minha memória gastronômica, a carne que deliciosamente prenso entre meus dentes é a suprema.

Essa invulgar carne com toda certeza só alcançou esse nível de inauditude, por ter sido apurada com produto semelhante e por saber disso, olho para o coto que antes era minha perna esquerda. Sorrio satisfeito por saber o quão delicioso sou. Sorrio por saber que não será o lúgubre verme o primeiro a se nutrir de meus tecidos tão bem maturados. Sorrio por poder ter a oportunidade de arremedar o ouroboros antes do ominoso tumor em meu encéfalo me privar da luz da vida.

Rapidamente consumo o prato de tlacatlaolli e satisfeito como nunca dantes, retiro do bolso de meu paletó um envelope com títulos ao portador para Joliet, minha querida bastarda. Ela recebe o objeto e lagrimando oscula minha face antes de deixar o cômodo. Assim que a porta se cerra, sorvo o cálice servido por minha tão talentosa filha ilegítima. O vinho, apesar de sua doçura reforçada pelas notas de frutas silvestres, não esconde o amargo da ricina e cada gole se mostra um martírio e um desrespeito aos pratos por mim degustados até hoje.

Em poucos fôlegos sinto as dores causadas pelo veneno em meu corpo, que em um espasmo vergonhoso, faz com que os fluídos mais espúrios irrompam dos lábios e subilatório. Tombo sentindo os estertores da morte e enquanto meu corpo se debate ridiculamente, as luzes começam a escapar de meus olhos, mas antes da escuridão abraçar o mundo, vejo Mictlantecuhtli estendendo suas mãos ossuosas em minha direção. Em um derradeiro gesto, tento as tocar, no entanto, antes que eu consiga, a escuridão me cerca completamente, mas não me preocupo, pois sei que passarei as eras sendo o repasto de um deus canibal.

Temas: Cultura-latino americana e Sobrenatural.

TTAlbuquerque
Enviado por TTAlbuquerque em 07/05/2016
Reeditado em 18/05/2016
Código do texto: T5628253
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