UM BEIJO NA NÉVOA - DTRL26 DUPLAS

Era fim da tarde e Geraldo entrava no banheiro curioso. O estudante sabia o que iria acontecer em poucos minutos, entrou com a intenção de impedir o que estava anunciado.

Seus passos ecoavam no corredor do banheiro, enevoado por uma fina fumaça e provocaram uma voz que o ouvia chegar:

- Vamos rápido com isso!

Geraldo viu uma estranha cena no banheiro: Um círculo de velas com uma estrela riscada no seu interior brilhavam na penumbra. Um cheiro de incenso permeava todo o ar, e duas figuras cobertas por um capuz faziam gestos simbólicos. Ao ver Geraldo, a primeira pessoa abriu duas torneiras e a segunda deu descargas na privada.

- Pare com isso! – gritou Geraldo.

Deu uma terceira descarga.

- Já chega, é demais!

Deu a quarta.

- Pare, Juliana!

A figura parou, abaixou o braço, mas deu uma quinta descarga. Silêncio dramático. Geraldo colocava a mão no rosto, e após uns 10 segundos, ouviu as duas figuras dando gargalhadas. Eles tiraram seus capuzes:

- Você acreditou! Você acreditou! – riu o rapaz loiro e alto que abriu as torneiras.

- Ficou com medinho, ficou?! – quase chorava a moça ruiva que deu as descargas.

- Não é nada disso, Gabriel! – respondeu Geraldo irado - É que ouvi o inspetor chegando. É suspensão na certa pra vocês!

Rapidamente, os dois às gargalhadas pegavam as velas e apagavam os riscos no chão. O inspetor chegava furioso, e a moça não estava mais lá.

- O que é que está acontecendo, Silva e Simões?!

- Nada, Sr. Marcos! – apressava Gabriel - Só estávamos batendo um papinho...

- Este cheiro no banheiro não é maconha, não?

- Claro que não, é que tô vendendo incenso e vela aromática, - prosseguiu Gabriel abrindo a bolsa, com uma cara-de-pau que deixou Geraldo abobado – o senhor se interessa?

- Circulando daqui! – disse o homem já sem paciência.

Os dois rapazes saíram. Logo após, Juliana saiu do banheiro, escondida. Num pequeno círculo sentado no pátio do colégio, Marina e Bianca, colegas dos três garotos observavam e cochichavam sobre os três. Juliana abriu um sorriso:

- Viu? Desafio cumprido, evocamos a loira do banheiro, com testemunhas! Ficou com medinho, confessa! – cutucou Juliana – Vamos, você me prometeu ajudar na lição de casa!

Geraldo foi com Juliana para sua casa, hesitante, pois a recomendação depois do acidente da empresa era que os moradores de Santos não ficassem fora de casa.

Um acidente no início de ano 2016 marcou a cidade do litoral paulista. Um vazamento em conjunto com um incêndio em uma empresa de Guarujá, associada ao Porto de Santos, havia deixado em alerta as duas cidades. O gás liberado podia trazer enjoos e crises, daí a insistência de sua mãe em sair da escola direto pra casa.

Gabriel se afastava dos amigos, com certo ar de invejinha porque não tinha motivo pra acompanhar. Pois ao lado de seus amigos, o loiro sempre se sentia o centro das atenções. Geraldo não se negava a fazer um charme:

- Sim, olha que minha mãe pediu pra chegar cedo, hein?

- Eu te recompenso outra hora.

Aquela frase não dizia nada, mas dizia tudo. Geraldo era o amigo-enamorado, que até onde lembrava (meio nevoento em sua memória, é verdade) nutria uma atração por sua amiga. Até houve momentos que lembrava que teve uma queda por Bianca, mas Juliana era cada vez mais onipresente em seus pensamentos.

Depois de muito estudo em Química, e olhares furtivos da parte de Geraldo, ela lhe ofereceu uma água esverdeada com umas raízes boiando, provavelmente gengibre, e aceitou. Coisas de garota sempre querendo emagrecer. A coisa estranha era gostosa. Juliana não via nunca aqueles olhares, mas a mãe da ruiva esboçava um sorriso de cumplicidade para o rapaz, que em sua casa mostrava-se educado e simpático, parecia ser um verdadeiro amigo de sua filha. Despediram-se e foi pra casa no Canal 6. Sua mãe brigou com o rapaz sobre a hora e por ter esquecido a nuvem de gás na cidade. A mãe completou:

- Já ouviu que não sabem o paradeiro da Melissa? A mãe dela me ligou preocupada ainda não a acharam.

- Ah, mãe. Deve estar dando uns beijos no Douglas. Até mais tarde, tchau.

Geraldo dormiu leve, mas sentiu-se agitar um momento na cama. Acordou e no caminho para a escola encontrou com Gabriel que esboçava um riso bobo. Na entrada do prédio, a tradicional Escola Marina Soares do Embaré, uma multidão de estudantes estava ao redor do portão.

Gabriel e Geraldo viram uma ambulância se aproximando. Correram para ver o que estava havendo e viram Melissa, uma bela ruiva sardenta, ser colocada na maca, desacordada, e levada ao hospital.

- O que ela fazia aqui depois da aula? – os rapazes chegaram perto para ouvir a conversa de três garotas. Eram Bianca, Jaqueline e Marina suas amigas, que assistiram de fora a encenação no banheiro do dia anterior.

- O que você acha, Jaqueline? – iniciou Bianca - É claro que ela estava ficando com o Douglas.

- Melissa é muito tonta, faz tudo o que ele pede. – completou Marina - Agora está indo para o hospital, tomara que fique bem.

- Sério? – Gabriel entrou na conversa. – Também levaram o Douglas?

Bianca prontificou-se em responder para o rapaz moreno de olhos verdes a que eram dedicadas várias páginas de seu diário desde seus catorze anos. Bianca sempre fora apaixonada por Geraldo, encantou-se com sua gentileza na escola e a amizade durante os trabalhos escolares cresceu até tornar-se uma paixão avassaladora. Ela sonhava ao lembrar seu jeito meio encabulado e gentil, mesmo tendo alguns momentos de estranha tristeza. No início, Geraldo parecia corresponder aos sentimentos da garota. No entanto, nos últimos meses ele parecia se distanciar. Na verdade, ele não mudou seu jeito de agir, mas Bianca sabia que alguma coisa no rapaz havia mudado e o que ele sentiu um dia não existia mais.

- Ninguém sabe dele. – respondeu a moça. - O inspetor achou a Melissa deitada num dos bancos do jardim. Nem sinal dele. O safado deve ter abandonado ela.

Gabriel poderia defender o amigo, mas sabia que Douglas era bem capaz de ter abandonado a moça para não se prejudicar.

- O susto já passou, moçada! A menina já está medicada e vocês tem aula agora. – gritava o inspetor chamando os alunos para suas classes. – Esse gás no ar e não suspendem as aulas. Eu mereço! – suspirava.

- Ei, vocês dois! – completou ao ver Geraldo, Gabriel e as meninas – Nada de gracinha no banheiro, entenderam? Na próxima, vão ter que se explicar para o diretor. Agora pra sala!

Os professores tentavam, mas não conseguiam controlar suas turmas. O único assunto era a garota que estava trancada na escola. No fundo da sala do segundo ano do Ensino Médio, as especulações rolavam soltas:

- Os dois deviam estar dando uns pegas dos bons, hein? Pra não notarem que trancaram a escola... – Gabriel fazia um sorriso safado.

- Cala a boca, moleque! – gritou Bianca, dando um tapa no braço de Gabriel. – Só pensa nisso. Melissa está mal e ninguém sabe do Douglas. Isso é muito sério!

- Vai ver, foi a loira do banheiro que vocês invocaram ontem! – comentou Marina querendo alfinetar.

Todo o grupo olhou para ela. Por alguns segundos eles se seguraram, mas a explosão de risadas chamou a atenção de todos os alunos. Marina corava, de maneira que sua pele, já avermelhada pelo Sol, por ser muito branca, enrubesceu lembrando um tomate.

- Você realmente acreditou naquilo? – Gabriel gargalhava. – Eu achava que a inocente da turma era a Juliana. Por falar em Juliana, cadê ela?

- Vocês riem de mim, mas de inocente ela não tem nada! – Marina se defendeu eufórica - Ontem à noite eu voltava do shopping com minha mãe e vi o Gabriel ...

- Me viu fazendo o quê? – perguntou Gabriel.

- Er... Te vi dando esmola pra um senhor lá na orla. – a garota tentava disfarçar – Falávamos que a loira não te pegaria porque é uma boa pessoa.

- Mas que papo é esse, gente? – perguntou Juliana, que havia chegado sem ser notada.

Os amigos abriram a roda de mesas e carteiras para que Juliana estivesse propícia a ouvir os comentários e teorias dos amigos, ficando extremamente fácil qualquer um na sala ouvir a conversa de um grupo tão grande:

- Marina está morrendo de medo de ser a próxima vítima da loira. – Geraldo falou pela primeira vez - Já que ela diz que o fantasma que sumiu com o Douglas e pegou a Melissa ontem a noite...

- Cara, nós sabemos que não foi fantasma algum que pegou a Melissa.

– Gabriel fez o mesmo riso cínico, que foi retribuído por expressões sérias das garotas.

- Fiquei sabendo disso mesmo. Estão dizendo que foi o gás, mas não duvidaria do que fizemos. – disse Juliana.

- Ah tah. Agora um fantasma de olhos brancos e algodão no nariz vai aparecer flutuando por aí! – ironizou Bianca - O que você fumou, menina? Tá com essas ideias e os olhos vermelhos. Eu, hein?

- Eu? Ah deve ser esse gás, sou meio alérgica sabe...

- Devia procurar um médico. – disse Geraldo, preocupado.

Aos poucos os alunos se acalmaram e as aulas do turno da manhã transcorreram bem. Após o almoço, os amigos se reuniram no pátio do colégio enquanto esperavam as aulas da tarde. Novamente, Juliana chegou depois de todos. Marina também estava atrasada, ela que sempre foi muito pontual.

- Ju, você está bem? – preocupava-se Gabriel.

- Estou ótima, por quê?

- Seus olhos estão mais vermelhos. Tem certeza de que não precisa ir ao médico?

*

Entre um turno e outro, os banheiros da escola deviam ser limpos. Dona Cândida, faxineira, passava calmamente o pano molhado no chão enquanto ouvia Roberto Carlos no celular que ganhara do filho no último Natal. Distraída, não notou que o pano de chão manchara-se de vermelho. Só percebeu quando abriu a porta do último sanitário. Seu grito chamou a atenção do inspetor, que correu ao banheiro masculino e encontrou a senhora desmaiada. Ao se aproximar, disse apenas:

- Caral**!!

Jogados naquele local, estavam os corpos de Douglas e Marina. As órbitas sem vida encaravam o inspetor, que via os pescoços e pulsos dos estudantes jorrarem o resto de sangue que seus corpos ainda possuíam. Nas narinas, chumaços de algodão completavam a cena.

Imediatamente, o inspetor trancou o banheiro, enquanto ligava pra polícia. Correu para a Diretoria notificar o assunto. O Diretor quase o xingou, por ter ligado pro 190 antes de informa-lo, mas no final concordou.

Na aula de Literatura, Geraldo, Juliana e Jaqueline não pararam de se incomodar com Gabriel, que parecia coçar-se na sua mesa de inquietação. Pouco depois, ouviu-se a voz do Diretor no fone com as instruções. Os alunos estavam proibidos de sair de sala. Esperaram chegar a Polícia, e foram por ela compreensivelmente revistados.

Jaqueline suava, Geraldo parecia assustado, Juliana sentia-se triste e Gabriel não parava de se mexer, tenso. Mochilas e bolsas eram abertas. E assim, mundos pessoais revelados: Ninguém deixou de ver o Modess de Jaqueline, que já imaginava risos dos colegas homens. Das meninas, somente Débora deu uma risadinha e uma piada. Geraldo teve sua mochila revirada e nada foi achado. O excesso de livros de literatura brasileira e gibis o faziam pensar que sua reputação de “nerd” aumentaria muito no dia seguinte. Já com Juliana, foram achados pôsteres de revista com celebridades bonitas, e o policial não se conteve:

- Por que uma moça tão encantadora carrega tanta foto de moça aí? Você é mais bonita do que elas... – disse quase parecendo uma cantada, pouco profissional.

- A gente nunca se acha... – riu envergonhada.

- Você é a Juliana, né?

- Sim, como o senhor sabe? – disse surpresa.

- Parece que você era amiga da vítima...

- Sim, era sim...

- Se souber de algo, vou deixar meu telefone. – anotou num papel que lhe entregou.

Geraldo e Gabriel olharam a cena com um pouco de ciúme, mas chegou a vez do amigo de Geraldo. Acharam um livro preto com um pentagrama na mochila do loiro.

- E o que é isto aqui, rapaz?

- É um livro, seu policial! – quase gaguejava.

- Gosta de magia, né? Sabia que um em cada oito casos de crime entre estudantes de classe média está associado à magia negra, RPG’s e outras sandices que vocês trouxeram pra moda?

- Mas, seu policial, eu apenas leio. O máximo que faço é vender vela e incenso. O seu inspetor tá de prova!

O inspetor parecia constrangido com a afirmação, mas Geraldo confirmou:

- É verdade, seu policial. O Gabriel já me vendeu umas e até trouxe pra minha mãe. Ele procura o aroma de cada uma nesse livro aí.

Geraldo afirmou sem certeza. Após segundos dramáticos, o policial torceu a boca quase num sorriso.

O dia passou e aulas foram suspensas. A autópsia deu inconclusa a morte. Apesar do sangue vazar em pontos específicos, nem cortes, nem concussões. E nem notícias de Melissa. As mães de Geraldo e Juliana, tomadas de uma atitude própria, fizeram os filhos e amigos se reunirem pra estudar até voltarem as aulas. Os colegas se reuniam contrariados, mas logo transformaram este grupo de estudo em reuniões divertidas. Dos quais, pareciam anestesiados para a dor dos amigos falecidos.

- Este gás está fazendo horrores na escola... – sussurrou Jaqueline enquanto escolhia uma carta de baralho.

- Gente, a raiz de 50 com expoente 9 é igual a?!... – gritava Juliana bem alto para sua mãe ouvir, enquanto baixava seu naipe.

- Mas vou te contar, hein amiga? – tomou a palavra de novo, Jaqueline - Aquele policial, só porque era novinho, tava te secando, né?

- Nem o guardinha te perdoa, hein? – riu Gabriel, com um certo ar de ciúmes.

- Gente, vocês me deixam sem graça... – riu vermelha a ruiva - Nem sou tão bonita assim...

Aquela frase soava estranho pra Geraldo vindo de Juliana. Cobiçada, mas modesta. Mas sentia aquela frase estranha. Não lembrava o porquê.

- Coitada de mim, Juliana. – ria Bianca, também ruborizando - Melissa sempre foi de chamar mais a atenção que eu, Marina era a gatona da sala, só estragava por ser metida, e gostar de dar fora nos meninos... mas você quando olham, não tem pra ninguém! Desse jeito, vou ficar encalhada...

O papo estava deixando Gabriel e Geraldo “quentes”, e antes que ficassem excitados, Geraldo quebrou:

- Agora é sério, Gabriel. – advertiu Geraldo – precisamos mesmo fazer este negócio de velas e incensos, viu? Pra jogar fumaça mesmo nessa história. – apontou o livro - Literalmente.

- Dá pra mudar de assunto, Geraldo? – fechou o rosto.

- Ah, e por que não?! – riu irônica Juliana – Ficou famoso como o invocador da loira do banheiro... Peraí, gente. Vou tomar meu detox. – abriu a porta pra descer a escada.

- Galera, pensei que vocês eram meus amigos. – bufou o loiro - Esqueçam isto.

- Por isso mesmo, Gabriel. Amigos! Conta o lance deste livro.

- Chega! – levantou Gabriel – Quando vocês não encherem o saco, me chamem! – pegou seus cadernos, livros e papeis, e abandonando o jogo de cartas, desceu a escada esbaforido.

- Gente, o que rolou com o Gabriel?! – subia assustada Juliana, ainda o vendo descer.

- Falamos do livro de magia, ele ficou bravo... Tá doido! – reclamou Jaqueline.

- Mas tem algo estranho. – prosseguiu Geraldo.

- Concordo. – completou Juliana pegando um papel caído da mochila do rapaz na escada – Olha a notinha dele da livraria. Lembram o que ele comprou aquele dia?

- Sim, o livro de Inglês que o professor pediu, o “Senhor dos Ossos” que ele já tava chato querendo e aquele maldito livro “Guia de Magia e Ocultismo”.

- Sim, mas na notinha, só consta o Livro de Inglês do 2º Ano e o “Senhor dos Ossos”. – continuou Juliana – O que isso quer dizer?

*

Ninguém soube responder. Passou a semana e as aulas continuavam suspensas. O famoso colégio estava sendo alvo de investigações pelas mortes de dois alunos e a hospitalização de uma. Melissa continuava na UTI do Hospital Santa Casa de Santos com graves problemas respiratórios, possivelmente causados pelo gás da explosão. Os amigos ficavam cada vez mais entediados, pois não podiam sair de casa. Seus pais temiam que o gás, agora presente em quantidades mínimas no ar, ainda pudesse causar algum problema. Geraldo atendeu o telefone naquele dia:

- Alô? Geraldo? É Juliana, tudo bom?

- Ju? Tudo ótimo e você?! – Geraldo se entusiasmava cada vez que falava com a garota. Antigamente ele não se empolgava tanto, mas no último ano algo inesperado mexia com seu coração todas as vezes que a ruivinha falava com ele.

- Muito bem! Então, estive pensando, o que você acha de sairmos esse fim de semana? Podíamos reunir a turma para fazer algo. Não aguento mais ficar em casa.

- Claro, vamos sim! Ótima ideia. – embora Geraldo preferisse que saíssem apenas Juliana e ele. – Onde nos encontramos?

- Combinei com o pessoal de irmos àquela praça perto do Canal 6, lá pelas oito e meia.

- Ótimo, estarei lá! Chamou toda a turma?

- Não consegui falar com o Gabriel. Desde o dia que ele ficou bravo por causa do livro não falo com ele.

- Eu também não. – comentou Geraldo. – Soube que a Polícia está em cima dele por causa do livro de magia. Vou ligar para ele, sair de casa o fará bem.

- Fará mesmo. Então estamos combinados. Até mais!

Geraldo sentia o coração apertado. A mãe ao perguntar pra quem ligava, perguntou:

- Não é para Ju, não, né? - ria maliciosa a mãe.

- Com ela eu já falei, mãe. – desconversava o rapaz.

- Curioso! – riu a mãe pegando uma foto antiga – Antes você me parecia apaixonado por Bianca, e pelos olhares nesta foto, era a Juliana, esta menininha sem graça, que não tirava os olhos de você. Agora parece o contrário: você que parece correr atrás dela, e ela que se diverte em fazer você correr atrás! Bem, acho que já falei demais. – saiu de fininho.

A mãe o fez reparar a velha foto, quando tinham 14 anos. Ele olhava para Bianca, que lhe parecia sem graça. Juliana colocava a mão em seu ombro parecendo querer sua atenção, parecia ainda não ter desabrochado seu brilho. Mas percebeu que Gabriel o olhava de rabo de olho com algum olhar amargo. Isso o intrigou, mas o mais estranho era não se lembrar “do clima” da turma deste jeito, era como se todos eram do jeito atual desde sempre.

Geraldo ligou para Gabriel com um certo ar pesado. Gabriel com uma fala mal-humorada, terminou a ligação dizendo que ia pensar no assunto.

*

Sábado à noite é o momento de diversão. Aos poucos a cidade de Santos voltava ao normal após o acidente nas docas. Os postes iluminavam a orla e suas praças. O calor impele as pessoas para as ruas. Na praça próxima ao Canal 6 e ao Aquário, todos os amigos se encontraram, inclusive Gabriel.

A praça tinha um aspecto simplório, mas era bem conservada pelo apoio privado. Umas poucas estátuas, do Jesuíta abençoando o Índio e a Onça, além da estátua do Pescador lançando sua rede, traziam a memória do ponto zero da cidade.

- Tive que pular a janela para vir. – contou Jaqueline achando o máximo ter enganado os pais.

- Meus pais estavam na área de serviço do prédio. Aproveitei e saí de fininho. – disse Geraldo que trazia uma garrafa e copos descartáveis numa sacola.

- Eu falei que ia à sua casa. – Juliana falou para Geraldo. – Bom te ver, Gabriel. Você sumiu...

- É... Estava resolvendo umas coisas por aí. – disse, com a cara fechada.

Gabriel não parecia o mesmo. Antes alegre e brincalhão, o rapaz estava sério e não acompanhava as conversas do grupo. Os outros amigos estavam alegres, bebendo e conversando os mais diversos assuntos. Ele mantinha-se sério.

- Não vamos durar muito tempo... – disse o loiro.

- O quê? – perguntou Jaqueline. – Tá maluco?

- Tudo o que acontece nessa cidade é culpa nossa. O acidente, as mortes na escola, a internação da Melissa. É tudo culpa nossa. Logo seremos os próximos a sofrer pelas consequências de nossos atos.

- Gabriel, você tá bem, mano? – Geraldo estava preocupado, enquanto os outros desdenhavam do rapaz. – Vem conversar com a gente. Beber um pouco. Você anda tenso demais com tudo o que aconteceu. Sai dessa, cara.

- Vocês não entendem! – ele se levantou, gritando. – Aquele livro, ele é real! Usamos ele para invocar a loira e olhe o que aconteceu com a escola. Algo muito perigoso nos persegue e vai cobrar seu preço.

- Gabriel, querido, não existe loira. – Juliana comentou rindo para descontrair - Aquilo tudo foi para assustar a Marina, não lembra..

- Fiz algo muito grave antes daquilo no banheiro, Ju. Você sabe disso...

Enquanto Gabriel falava, a temperatura na praça começou a cair. Aos poucos uma fina névoa surgia diante daqueles amigos. Olharam ao redor. Quando perceberam, a névoa estava mais densa e não era possível enxergar nada próximo.

- Que neblina é essa? – gritou uma voz que parecia a de Bianca. – Que cheiro forte!

- É o gás? - Geraldo perguntou – Não consigo ver vocês!

- Calma, gente. – Juliana tentava acalmar seus amigos. – Onde vocês estão indo? Devemos ficar juntos! Vocês não estão entendendo nada, preciso de vocês todos juntos...

*

A neblina se adensava cada vez mais, impedindo que aqueles jovens se enxergassem. Um odor forte tomou conta da praça, talvez algum resquício do gás do acidente ainda presente na cidade. O desespero da visão reduzida e do odor penetrante levaram os amigos a se separarem, talvez em busca de ajuda ou de saírem daquele nevoeiro.

Geraldo gritava por Juliana, sem resposta. Seu coração palpitava como nunca. Ele conseguia ouvir passos próximos de onde estavam, mas ao tatear não conseguia tocar em ninguém, somente árvores, bancos e o Índio e o Jesuíta de pedra.

- Alguém aí? Socorro!! – Bianca gritava desesperada.

O som parecia vir do outro lado de onde Geraldo estava. No meio da névoa, a praça parecia maior de que era e o rapaz passava por inúmeros bancos, pedras e árvores.

- Bianca! Estou chegando! – correu.

- Rápido, ela vai me pegar! – ouvia o grito ofegante da moça.

“Ela?”, Geraldo não entendeu o que ela quis dizer e nem teve muito tempo para pensar. Seus pensamentos foram interrompidos pelo grito de pavor de Bianca. Um grito alto, cheio de dor, que logo se extinguiu em meio à névoa. Geraldo continuou a correr e ouvia outros gritos. Seja lá o que estivesse ali, estava ameaçando Gabriel e Jaqueline também.

- Por favor, não faça isso. – a voz feminina gritava.

- Você está passando dos limites. Não era para ser feito desse jeito. – Geraldo ouviu uma voz masculina dizer.

“Só posso estar andando em círculos. A praça não é tão grande assim. Onde está todo mundo?”. O coração de Geraldo estava disparado, sua respiração audível atraiu a atenção daquele que atacou seus amigos. Ele tinha certeza disso, pois um silêncio mortal pairava na praça, juntamente com a densa névoa. Ele encostou-se a uma árvore, tentando recuperar o fôlego. Ao tocar a mão no tronco, percebeu que ele estava úmido. Apenar da pouca visibilidade, notou que sua mão estava vermelha. Os batimentos cardíacos voltaram a se acelerar e disparou de vez quando seus pés tocaram algo pesado no chão. Com dificuldade, reconheceu Bianca deitada na grama do jardim. Sangue vertia de seu pescoço sem marcas. Ouviu um eco que parecia o sussurro da voz de Gabriel, pois conhecia de longe o tom de seu melhor amigo. Geraldo virou-se com um grito de medo:

- Gabriel, você já foi longe demais!

Ecoou pela praça sua voz. Mas, ao seu lado, Jaqueline e Gabriel olhavam para o alto com os olhos sem vida. Seus corpos jovens estavam tingidos de vermelho-sangue, que já havia terminado de sair de uma faixa pelo pescoço.

As pernas de Geraldo fraquejaram, fazendo-o cair de joelhos ao lado dos amigos mortos. Ele não compreendia o que era aquilo e quem poderia ser o responsável. A neblina começou a se dissipar e o rapaz percebeu que estava de volta ao banco em que estavam reunidos antes do nevoeiro. “Será que em algum momento saímos daqui?”. Seus pensamentos foram interrompidos pela voz que sempre mexia com seu coração.

- Finalmente te encontrei, querido...

Geraldo teve um tremor paralisante tomar conta de suas pernas e seu coração palpitava querendo sair pela boca. Num belo vestido branco com cintilante, deixando as pernas irresistíveis à mostra, estava uma Juliana de lábios e sombra azulada. Os cabelos oscilavam na névoa fria mesmo sem vento. Um sorriso encantador o atraía.

- Agora tenho energia suficiente... – pegava-o nos braços, colocando no banco da praça – Eu precisava de mais cinco vítimas para receber toda a força da mandrágora.

- Mandrágora? – escapou a voz como um sussurro.

- Já ouviu falar de uma raiz afrodisíaca com forma humana? Por trás dela, que está o segredo de Joana d’Arc e Cleopatra, mulheres “feias” que são lembradas por sua rara beleza e poder. – ela tinha o livro de Gabriel na mão e o mostrou.

Geraldo rapidamente viu a mochila do cadáver aberta.

- Não pense mal de mim. Esse livro aqui foi roubado por ele naquele dia. – dizia com uma voz sensual, abrindo um bolso numa das páginas e tirou um pacotinho com uma erva moída e um papel – Mas tinha um pedaço de pergaminho escondido neste fundo falso. Infelizmente, gente demais viu o roubo do Gabriel e, quem sabe, me viram folheando este livro? Era arriscado confiar.

Geraldo gaguejava e tentava perguntar algo, mas mal falava.

- Eu sei que está assustado. - acariciava seus cabelos – Lembra-se do meu “detox”? Nunca menti quando disse que era o meu segredo, que estava neste saquinho o original, e depois completei comprando a mandrágora comum. Percebeu como agora você está mais charmoso, também? Não precisa agradecer, era pra você ficar mais charmosinho pra mim!

- Agora entendo... – saiu a primeira palavra entrecortada.

- Sim! – os olhos de Juliana brilhavam refletindo o rosto de Geraldo neles – nos vingamos de todos que nos menosprezaram, nos chamaram de sem-graça, feios, horríveis! Eu posso estar com a cara de quem acordou, mal-vestida, que todos me acharão linda!

- Sim, você está muito linda! – sussurrou com a voz querendo morrer.

- E você sabe o que eu quero, né? – abriu um largo sorriso ofegante, com lábios parecendo derreter de tão molhados.

- Sim...

Puxaram-se um para os lábios do outro freneticamente. Geraldo parecia desesperado. Juliana sentiu-se realizar um desejo que tinha há anos, de beijar o garoto que sempre admirou, sempre estava ao seu lado e ofereceu o que tinha de melhor. Estava disposta a qualquer coisa que ele quisesse pois ninguém entraria naquele lugar até terminarem. Geraldo queria ter o prazer de beijar a garota mais atraente do mundo, pois sabia que só o faria uma única vez em toda sua vida. Pois antes que ela percebesse, ele a tendo nos braços, pegou a tesoura na mochila e cravou em suas costas.

*

Juliana caiu ao chão, esvaindo a vida e parecendo retomar a aparência comum. Assustada e sem entender, apenas ouviu as últimas palavras de Geraldo.

- Isso foi por Bianca e Gabriel. Eu ia gostar de você pelo que você é de verdade.

Aqueles olhos verdes antes apaixonados pareciam frios como um gelo pela primeira vez. Era como se Geraldo fosse outro. Foi a última coisa que Juliana viu quando perdeu a vitalidade.

Geraldo pegou sua mochila e colocou o pedaço do livro de Gabriel e o “detox” de Juliana. Sabia por instinto da mandrágora que ingeriu que a névoa do feitiço logo ia desaparecer. Procurou sair do lugar o quanto antes, limpar suas digitais como pôde e montar alguma cena convincente para a polícia, e se preparou para a nova vida que o aguardava.

*

Na internação do Hospital Santa Casa de Santos, Melissa era velada pela mãe dia e noite, quando abriu os olhos devagar:

- Filha, você acordou!

Os batimentos cardíacos e a respiração pareciam normais na máquina. A mãe abraçava copiosamente.

- Meu Deus! O que houve com você?

- Juliana, ela me fez isso... – abriu um leve sorriso, como que soubesse de algo – Obrigada, Geraldo...

TEMAS: Assassinos Seriais, Catástrofes, Lendas Urbanas.

Túlio Lima Botelho e Rodrigo Menezes
Enviado por Túlio Lima Botelho em 14/02/2016
Reeditado em 21/03/2016
Código do texto: T5542963
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