ASCENSÃO - DTRL25

O sol estava quente sob a margem do rio enquanto Lionel vigiava as cabras que ele criava junto com seu pai. Ao recostar-se no tronco de um coqueiro para descansar após o almoço, observou no horizonte vários pontos roxos vindo em sua direção. Somente quando estavam bem próximos foi possível para o rapaz identificar o que eram aqueles pontos. No entanto, já era tarde demais...

*

O Cerco do Olho é uma região seca, no extremo note do reino de Gindera. Rodeado por altas montanhas, a região é banhada por um lago que é alimentado pelo rio Ven, antes de desaguar no mar. A estreita faixa fértil da região é concedida por essas águas, nascidas no topo do Pico do Adeus.

O povo que habita ali vive da agricultura e da criação de poucos animais e, por causa do isolamento, vive alheio aos acontecimentos do reino. Numa casinha na beira do Lago do Olho, Ulfer e sua esposa Miranda construíram sua família. Os gêmeos nasceram saudáveis e foram chamados Lionel e Gida.

As crianças cresciam fortes, porém, em seu sexto aniversário, foram acometidos pela peste que chegou junto com um grupo de mercadores. As montanhas que um dia cercaram a região do Lago do Olho, protegendo-o das invasões dos maléficos Qmãs não foram suficientes para conter o avanço da doença. Várias vidas foram perdidas, inclusive as de Miranda e Gida. Por um milagre, Lionel sobreviveu, o que deu forças a seu pai diante da morte da filha e da esposa.

Os anos se passaram e o menino cresceu forte. Aos treze anos, Lionel era responsável criação das cabras, enquanto Ulfer vendia, diariamente, queijo e leite no vilarejo.

- As ruas estão vazias. O que aconteceu com o povo desse lugar? – perguntou Ulfer ao único homem que havia comprado um de seus queijos.

- As pessoas estão com medo. Ontem à noite os Vigilantes passaram por aqui. A maioria acha que a vila está amaldiçoada.

- Vigilantes? Aqueles vigilantes das histórias que meu pai contava para me obrigar a trabalhar? Isso não passa de lenda para assustar crianças!

- Você que pensa, Ulfer. Ontem, depois que todos se recolheram, um bando de pessoas passou por aqui gritando em uma língua que ninguém conhecia. Você conhece essas bandas tão bem quanto eu e sabe ninguém fala diferente. Hoje de manhã encontramos aquilo...

No fim da rua, encostado no poço que abastecia de água aquelas pessoas, um corpo fora encontrado. Ao se aproximar, Ulfer notou os pulsos e os tornozelos cortados, além da cabeça que fora virada, permitindo que a face ficasse voltada para trás. A nuca raspada mostrava uma escarificação, ainda sangrenta, com o desenho de um homem de braços levantados sobre um círculo.

- Por que esse corpo ainda está aqui? Já está fedendo.

- Eu que não ponho a mão nele! – disse o homem que comprou o queijo. – Não quero ser amaldiçoado.

- Vocês estão paranoicos. Com certeza isso é coisa de algum bandido para assustar vocês. Não existe essa coisa de Vigilantes. – Ulfer estava desanimado diante da cidade deserta. – Não vou vender nada aqui hoje e com o calor que está fazendo o leite irá estragar antes que chegue ao próximo vilarejo. Melhor ir para casa.

- Só tome cuidado na estrada. E mande um abraço pro pequeno Lionel.

“Pequeno Lionel. Faz tempo que ele não é pequeno”, Ulfer falava consigo mesmo enquanto seguia em direção a sua casa. Desde que perdera a esposa e a filha, dedicou todo o tempo na criação de Lionel. Ele desejava que o filho crescesse e fosse embora do Cerco, pois ali não havia futuro. No entanto, o filho sempre gostou das cabras e era dedicado em ajudar o pai, mesmo Ulfer nunca tendo obrigado o rapaz a trabalhar. Antes da doença Lionel era agitado, gostava de bagunçar a casa e correr pelas margens do rio. Subia alto nas árvores para mexer nos ninhos de passarinhos e voltava chorando quando encostava-se em alguma colmeia. Após a cura inesperada, Lionel ficou mais quieto. Às vezes passava horas pensando na vida e nunca mais aprontou como antes. O garoto tinha muitos pesadelos, onde gritava sem parar, mas negava contar para o pai o que tinha sonhado. Ulfer achava que podia ser tristeza por perder a mãe e por isso sempre estava presente quando filho precisava. Os dois trabalhavam numa sincronia perfeita e ambos se conheciam muito bem. O pai apostava sua vida ao dizer que encontraria Lionel encostado em alguma árvore quando chegasse à margem do Ven.

Ao se aproximar das margens, ouviu o balir das cabras. Achou estranho elas estarem tão espalhadas. Aproximou-se do coqueiro onde esperava assustar o filho, mas quem se assustou foi Ulfer. Uma faca de cabo negro prendia um tecido roxo a árvore. Pintado de branco estava a figura de um homem sobre um círculo.

*

Os habitantes do reino de Gindera sempre contaram a lenda dos Vigilantes, os homens de roxo que perambulam pelo mundo. Na maioria das cidades do reino, essa história é contada para assustar crianças e obrigá-las a fazer o que os pais mandam. Porém, os habitantes das regiões mais isoladas sempre consideraram que as histórias fossem verdadeiras, causando pavor em qualquer um que ouvisse o nome “Vigilante”.

As lendas contam que esses homens caminham pelo mundo espalhando os ensinamentos de seu mestre. As cidades que recebem sua visita ficam marcadas para sempre e os poucos habitantes que insistem em viver ali convivem com o medo e o terror. Os mais antigos contam que, nessas cidades, vários corpos foram encontrados com cortes nas mãos e pés, de onde fluía todo o sangue da vítima. Nas fachadas das casas, a figura de um homem com os braços levantados, pisando num círculo, assombrava as famílias dos jovens que deixavam suas cidades e adotavam as vestes roxas.

Ninguém conhecia seu reduto, mas as lendas contam que os Vigilantes planejavam algo com a intenção de mudar o mundo, aguardando o momento certo para entregá-lo a seu mestre sombrio, que iria acabar com os reinos para unir o mundo em seu governo de ferro.

*

Ulfer gritou por todos os lados em busca do filho obtendo o balir das cabras como resposta. Observou atentamente o tecido pregado no coqueiro; sem dúvida aquele desenho era o mesmo da escarificação. Na margem do rio, notou pegadas que chegavam até a árvore, vindas do oeste, e que continuavam em direção as montanhas, a leste. Não havia sinais de luta para indicar um sequestro. “Talvez bateram em sua cabeça e Lionel desmaiou. Com certeza foram ladrões de cabras”, essa frase dava esperanças ao pai, mesmo observando todas as cabras pastando em sua frente.

Voltou correndo para casa, apanhou seu machado e colocou alguns pães e o odre com água em sua bolsa. Selou e montou em Zanyr, o velho cavalo do filho. Lionel ganhara-o de um cavaleiro ferido encontrado pelo menino no caminho para a vila. O filho de Ulfer prontamente levou o guerreiro para casa, cuidando de seus ferimentos e esperando sua recuperação. Como gratidão, o cavaleiro presenteou Lionel com o cavalo machucado que trazia. Preferiu ir a pé à vila mais próxima em busca de outro animal.

Ulfer voltou à margem do Ven, em frente ao coqueiro onde o filho deveria estar. Seguiu as pegadas no solo, até que elas entraram na estrada rumo às montanhas. “Estranho bandidos pegarem a estrada principal”, era o pensamento de Ulfer, que galopava a toda velocidade. Até onde sua visão alcançava não havia sinal de pessoas. Ou os sequestradores eram rápidos demais ou saíram do caminho.

A Estrada das Montanhas começa na cidade de Endish, na foz do rio Ven, seguindo o rio até o Olho D’água, o lago daquela região. Ao contornar a grande massa de água, a estrada atravessa um coqueiral e segue até a pedregosa base das montanhas. Enquanto saía do coqueiral, Ulfer avistou mais pegadas num trilha que saía da estrada.

Apressou-se em seguir por ali, gritando o nome do filho. Cavalgou muitos metros até que se viu na borda de um morro e aproveitou para gritar mais alto por Lionel, observando se existia alguma movimentação naquela região deserta. Por todos os lados só se via pedras e solo seco, de onde brotavam uns poucos arbustos espinhosos. Distraído, Ulfer não viu uma serpente sair de sua toca e, assustada com o movimento de Zanyr, morder na pata do animal.

No momento seguinte, Ulfer percebeu-se caindo morro abaixo e por pouco o pobre cavalo não caiu sobre seu corpo. Dolorido, teve de sacrificar Zanyr, que agonizava lentamente enquanto o veneno da serpente agia em seu corpo.

- Adeus, meu amigo. Seguirei sozinho até meu filho... – disse Ulfer enquanto cortava a garganta do cavalo.

À sua frente estava uma planície pedregosa, repleta de arbustos e arvoretas. Uma trilha apagada cruzava a paisagem e as marcas indicavam a passagem recente de pessoas. Ulfer caminhou por muito tempo naquela estrada enquanto sol se punha. Estava com pressa e por isso continuou caminhando, iluminando a estrada com a ajuda de um ramo seco em que acendera um fogo.

No meio da noite, uma forte ventania extinguiu a tocha que Ulfer levava. A estrada, que antes era deserta, começou a mostrar seus ruídos e presenças. Por todos os lados o pai de Lionel sentia-se observado, ouvindo sussurros e pontos luminosos em meio à vegetação. “São apenas insetos. Não há nada de anormal. Não existem Vigilantes”, pensava.

Sentiu alguém passando próximo às suas costas e correndo em meio à vegetação. A escuridão da noite se adensava, parecendo que engoliria Ulfer. Tremendo, espetou sua mão enquanto tentava arrancar mais um galho para atear fogo. A luz emanada estava fraca, mas foi suficiente para perceber que não havia ninguém ali. Andou mais um pouco até encontrar uma concavidade de uma grande rocha, na beira da estrada, onde se abrigou diante da fogueira feita pelos galhos.

Manteve-se alerta até que dois seres escuros surgiram atrás da fogueira. Antes que pudesse identificar o que eram, o camponês sentiu uma forte dor na cabeça, perdendo os sentidos logo em seguida.

*

As dores na cabeça voltavam a aparecer quando Ulfer recobrou os sentidos. Estava sem sua bolsa e machado e percebeu que dois homens o seguravam por debaixo de seus braços, enquanto suas pernas arrastavam-se no solo pedregoso. Os primeiros raios de sol despontavam no horizonte e possibilitaram ao pai de Lionel identificar para onde o estavam levando.

Acima de suas cabeças erguiam-se imponentes as Montanhas do Cerco, uma formação de grandes altitudes que delimitava a região onde morava com o filho. Era possível ouvir as águias de pandora gritando alto, enquanto chegavam a seus ninhos com alimento para os filhotes já sedentos por carne fresca.

- Me soltem! – Ulfer tentava se livrar dos dois homens. – Foram vocês que me atacaram ontem? Soltem-me, preciso encontrar meu filho.

Nenhuma resposta vinha daqueles homens, que seguravam mais forte a cada tentativa de fuga. Quando o lugar ficou mais iluminado, um grande temor apoderou-se de Ulfer, temor que ele sentira apenas quando era criança e ouvia as histórias de seu pai. Os homens que o carregavam trajavam vestes roxas e seus rostos eram cobertos com capuzes da mesma cor. Mesmo com todos os sinais, somente nesse momento ele percebeu o que acontecia e sentiu-se dentro das histórias que considerava lendas. Se todas elas fossem verdadeiras, temia por seu Lionel e também por ele mesmo.

A trilha que seguiam acabava no sopé de uma das montanhas, onde uma abertura na rocha levava para uma caverna no interior da terra. Presos no teto por correntes, crânios de vários animais soltavam de suas órbitas feixes de luz emitidos por velas colocadas no interior dos ossos. Percorreram um curto caminho até que chegaram a um amplo salão de pedra.

Ulfer foi colocado num canto, preso às paredes por correntes, de onde observava todo aquele espaço. Piras iluminavam o centro do recinto, onde um buraco circular no chão estava envolto por velas. Da outra extremidade do salão, vários homens vestidos de roxo saíam de uma abertura na rocha. Um deles, que segurava uma tocha, aproximou-se de Ulfer.

- Sabemos que nos segue desde o fim da mata de coqueiros. Não imaginávamos que iria tão longe. Sabe quem somos nós?

- Só quero saber o que fizeram com meu filho!

- A Criança é seu filho? – o homem demonstrou grande surpresa. – Sinto-me honrado em conhecer aquele que cuidou de nosso futuro. Iremos trazê-lo em breve.

- Senhor? Podemos deixá-lo aqui? – indagou outro homem de roxo.

- Claro! Ele é pai da Criança. E ela precisará de diversão depois que tudo estiver terminado... – os dois homens deixaram Ulfer sozinho onde estava, ignorando os gritos e perguntas que fazia.

*

- No início dos tempos, o grande Maliki governava nosso mundo. – o homem de roxo que havia falado com Ulfer estava no meio do salão de pedra, de frente para o círculo de velas. – As Trevas reinavam por Eturnion até que seres de prata vieram e acabaram com o reinado de nosso mestre. No entanto, novos tempos começam irmãos, nosso tempo de vigília terminou. Preparam-se para a volta de Maliki!

Enquanto gritavam algo que não compreendia, Ulfer viu um cortejo sair da fenda na parede. Vários homens com vestes igualmente roxas traziam velas, bandejas e uma pequena liteira. Eles posicionaram-se no meio do salão, próximos ao homem que falava, e começaram a repetir a fala dos demais. A porta da liteira se abriu, de onde saiu um rapaz seminu que se posicionou em frente ao círculo de velas. O coração de Ulfer desesperou-se, pois finalmente estava diante de Lionel, seu filho. Seus olhos estavam imóveis, alheios a tudo o que acontecia; Lionel estava perdido em algum transe provocado pelos Vigilantes.

O som que saía das bocas dos homens de roxo ficou mais alto, impedindo que os gritos de Ulfer fossem ouvidos. Aquele que havia falado com o pai de Lionel e presidia a reunião fez um sinal com as mãos, silenciando todos os presentes. Ulfer continuava gritando e foi golpeado diversas vezes para que se calasse.

- Os vapores pútridos nos indicaram onde estava, meu senhor. Aquele que foi curado, hoje se tornará mais forte ainda. – o chefe dos Vigilantes pegou em uma das bandejas um longo punhal de cabo escuro adornado com linhas prateadas. – A mão do destino age mais uma vez e aquele que foi tirado do mundo retorna para retomar a glória de outrora.

No mesmo instante em que terminou de falar, o homem passou o punhal rapidamente pelo pescoço de Lionel, de onde o sangue fluía fartamente. Outros Vigilantes seguraram o corpo de Lionel, deitando-o delicadamente com os braços levantados, cercando-o de luzes, e encostando seus pés no círculo de velas. Ao ver a cena, Ulfer rendeu-se ao desespero, tentando se soltar a todo custo. Irritado, um homem de roxo golpeou novamente o pobre homem, deixando-o inconsciente.

O sangue que saía do corpo de Lionel escorria pela pedra até cair em pequenas fissuras, que conduziam o sangue para dentro do círculo de velas. O buraco dentro desse círculo era, na verdade, um recipiente raso destinado a receber o líquido que mantinha Lionel vivo.

- A vida na morte e a morte na vida. – o Vigilante retomou os ritos. – Das profundezas do tempo, banido por toda a eternidade, erga-se mais uma vez, grande senhor de Eturnion. Volte para retomar o que é seu, grande Maliki!

Enquanto essas palavras eram proferidas, o sangue no círculo começou a borbulhar, erguendo-se em sincronia com o tom de voz do Vigilante. No ápice da invocação, como se fosse uma entidade consciente, o sangue avançou sobre o corpo morto de Lionel, penetrando pelo corte no pescoço.

*

Quando acordou, Ulfer estava caído no chão da caverna, liberto das correntes. Rezava para que a morte de Lionel fosse apenas um sonho ruim, mas a figura sentada numa grande cadeira, bem à sua frente, mostrava o contrário. O ferimento ainda vermelho lembrava ao pai que chegara tarde demais para salvar o filho, mas que por algum motivo estava vivo novamente.

- Lionel, meu filho. É você mesmo? Vi você morrer. Como pode?

- Afaste-se, mortal. – embora fosse a voz de Lionel, Ulfer notou que ela estava autoritária e poderosa, completamente diferente do modo doce de falar que o filho possuía. – Seu filho não vive mais nesse corpo, foi-lhe dada a honra de ser o receptáculo do senhor deste mundo.

- Não diga isso. Você deve estar aí em algum lugar, Lionel. – Ulfer aproximou-se do corpo do filho, sendo arremessado na parede logo em seguida por um simples movimento da mão do rapaz sentado na cadeira.

- Deram-me sua vida para pudesse ser minha primeira diversão após o renascimento. No entanto, em agradecimento por ter gerado e cuidado tão bem de meu receptáculo, você terá uma morte rápida e indolor.

Ulfer começou a sentir as piores dores de sua vida a partir de um único movimento daquele que um dia fora Lionel. Enquanto a mão que o pai segurou um dia para ensinar o filho a andar foi se fechando, aquele homem desolado foi sentindo sua vida se esvair. Um grande poder habitava agora no corpo de seu filho e Ulfer torcia para encontrar Lionel depois que sua vida tivesse fim.

*

TEMA: Magia negra