O diário de um gourmet.
03 de janeiro de 18??
Caro senhor;
Espero que esta o encontre gozando de plena saúde. Longa foi minha viagem e cheia de adversidades a seara até o local ao qual a atual demanda me guiou.
Ao chegar a tão distante e insalubre vivenda, deparei-me com uma população em polvorosa. A violência, fanatismo e revolta dominavam as mentes de todos e devido à tão alarmante estado de humores, todos os baluartes e muros da antiga abadia, onde o sujeito de vossas preocupações e suspeitas residiu, foram arruinadas, restando nada mais do que o pó.
Tenho a infelicidade de informar, que as suspeitas são verdades horrendas.
Pouco tenho para oferecer como prova de minha afirmação, salvo um diário, ou melhor, parte dele.
Envio juntamente a esta missiva, algumas páginas do diário pessoal de seu rebento, que sobreviveram à revolta do populacho, onde o mesmo relata parte de suas vilanias.
Que o Bom Senhor o imbua de um espírito férreo, frente a tão funesto evento.
Que a alma de seu filho receba a justiça divina e a tão necessária paz.
Sinceramente,
D.
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12 de abril de 18??
Novamente, minha necessidade poderá ser observada. Mais uma criança acaba de estar sob meu poder. O mero pensamento acerca de suas formas e candura faz-me arder em gozo de forma antecipada.
Seu nome, segundo a mesma, é Camilla e apenas oito verões foram contemplados pelos seus lindos e inocentes olhos esmeralda.
A pele da menina é alva e rosada, possuidora de um doce aroma de juventude. Seus cabelos, loiros e encaracolados, emolduram um rosto de boneca e um sorriso de pleno marfim.
A beleza de Camilla me excita de maneira selvagem.
Eu a manterei em meu aposento secreto, com todas as regalias possíveis e no devido tempo, quando seu viço e beleza atingirem o zênite, me permitirei seguir para a próxima etapa.
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22 de julho de 18??
Hoje, pude ter a certeza que minha doce Camilla está preparada para servir-me. Sua saúde é plena e as formas roliças e tentadoras.
Assim que o manto da noite dominar o mundo, darei continuação ao meu intento e vazão à minha necessidade.
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23 de julho de 18??
A noite de ontem foi realmente maravilhosa.
Camilla recebeu-me de braços abertos quando a visitei. Que doce e amável criatura.
Sentirei um pouco de saudades.
A mimei com uma caixa de bombons recheados, que previamente preenchi com poderosos anestésicos. Ante a visão desse regalo, ficou a pular e bater palmas de alegria. Assim que os doces caíram em suas mãos, foram devorados com sofreguidão por Camilla e isso contribuiu em muito para que o brilho dos belos olhos esmeralda se apagasse ante o abraço da morte de forma veloz.
Tanto melhor assim.
Munido de um espelho de bolso, constatei a morte da criança e então a despi e agrilhoei suas pernas, para então erguer o corpo sem vida ao ar.
Usando de um lancete de prata, rompi a carne do pescoço na região da jugular e uma cascata carmesim se fez. Uma tênue neblina escarlate tomou o ambiente, assim como um aroma férreo e acre.
Tomei em minhas mãos uma taça e a preenchi com a seiva da criança, para então sorver todo o seu conteúdo. Um verdadeiro néctar divino, de doce e delicado buquê.
Eu deixei o recinto enquanto o sangue se esvaía. Em minha próxima visita darei o passo seguinte.
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24 de julho de 18??
Enfurnei-me em meu aposento especial assim que todos os deveres diários de minha posição foram observados. Dei continuação ao meu intento, cheio de excitação.
Munido de um excelente facão de açougue, rompi o ventre de Camilla e de lá, retirei seus órgãos internos. Reservei o coração e o fígado para um uso futuro, os guardando em jarras cheias de óleos vegetais. Já o restante, lancei nos esgotos. Os ratos e os demais horrores de tão abjeto ambiente terão um banquete imerecido.
Dando sequencia à meus labores, amputei os braços do cadáver infantil, na altura dos ombros, e em seguida, separei em três partes (braços, antebraços e mãos) e os guardei em barris cheios de sal e especiarias, para sua conservação e futuro uso.
Logo em seguida, desci o restante do corpo sobre um grande cepo e amputei as pernas, assim como havia feito com os braços, e guardei as seis partes em barris cheios de uma emulsão de conhaque e sal.
Antes de decapitar o corpo, raspei a cabeça de Camilla, para preservar suas lindas madeixas. Tenho certeza que usando os belos cachos cor de trigo, poderei fiar e criar algum tecido de beleza impar. Um tecido deliciosamente belo.
Ao fim desse pequeno desvio da tarefa principal, decapitei o tronco e depositei a pequenina cabeça em uma grande jarra de alabastro preenchida de uma mistura de rum envelhecido e ervas aromáticas do oriente.
O tronco por sua vez, deu certo trabalho, já que tive de usar uma machadinha para dividi-lo em partes menores. Essas partes foram guardadas em um barril cheio de óleo com especiarias, à exceção das costelas, que pendurei em ganchos para que secassem ao ar.
Terminei essa laboriosa tarefa, completamente exausto e satisfeito, já em horas adiantadas.
Agora tudo está pronto para o início propriamente dito.
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03 de novembro de 18??
Ontem, finalmente meus labores tiveram seus primeiros frutos.
Deliciosos frutos.
Peguei partes do tronco de Camilla no interior do barril que os guardava e em seguida, retirei o excesso de sal os lavando com vinho tinto português e então, usando novamente de minha fiel machadinha, os cortei em pedaços menores para mergulhá-los em molho previamente preparado em um caldeirão que, ainda agora enquanto escrevo, ferve seu conteúdo.
O molho é espesso, de um vermelho vivo, onde trufas cinza, aspargos, cebolas em conserva, pimentas aromáticas, salsa e outros temperos exóticos, impregnam seus sabores na doce carne da menina.
Tomei uma coxa de um dos barris e dela extraí seis grossos e suculentos bifes. Como tempero, usei pimenta do reino vermelha, cominho, azeite, canela em pó, açúcar mascavo, limões sicilianos e sal refinado. Usando uma pesada frigideira de cobre eu fritei a carne em sua própria gordura e o aroma que dominou o ambiente... Era divino.
Ao terminar o preparo de meu tão antecipado festim, sentei-me à mesa e com inenarrável prazer, degustei as carnes da doce Camilla. Devo confessar que o molho não havia alcançado seu real sabor no momento, mas ainda assim estava fabuloso. Já os bifes, eram verdadeiros manjares do Olimpo. Que carne doce e macia, derretia na boca e possuía um sabor inigualável. Nenhum dos meus projetos anteriores possuía carne tão estupendamente deliciosa.
Já completamente saciado, enchi uma taça com a emulsão onde a cabeça descansa. Um elixir delicioso e revigorante.
Só de pensar no prato de amanhã, deixa minha boca repleta de saliva e minha mente perturbada pela antecipação.
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04 de novembro de 18??
Meus planos para o festim da noite passada, quase foram arruinados graças à curiosidade e espantosa sorte de um serviçal que acabou por adentrar em minha câmara escondida.
Ao entrar no aposento, o flagrei remexendo em todo o lugar com uma expressão de asco e surpresa na face. Assim que o maldito percebeu minha presença, se pôs a gritar exigindo explicações para o que ele nomeou de: horror selvagem.
Exigiu?
Com qual direito?
Pois não sou um nobre? Um homem douto e de posses?
Posso tudo o que desejar ter ou fazer, pois sou superior ao populacho e seus tabus tolos.
Com o ódio sendo meu senhor, investi contra o decrépito ser que gritava petulantemente e afundei seu crânio com a machadinha que estava sobre o cepo.
O maldito ainda teve o descaramento de sujar todo o lugar com seu sangue odioso.
Lancei sua carcaça morna nos esgotos e tenho certeza, que mesmo os horrores famintos que lá vivem, não se permitirão degustar tal carne seca e fétida.
Após limpar o chão do sangue maldito, tomei as costelas da jovem e as temperei com alho, cebola, pimenta e azeite, para em seguida as assar em fogo brando. Quando ficaram prontas, servi-me por outra vez do molho e comecei meu festim.
As costelas, apesar da pouca carne, estavam uma delícia, assim como o molho, que finalmente revelou todo o seu sabor. Uma verdadeira delícia. Algo divino.
Fiquei por algumas horas sentado à mesa, bebericando o rum especial, pensando em como o velho havia conseguido encontrar meu santuário gastronômico.
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06 de novembro de 18??
O corpo do velho serviçal foi encontrado por pescadores.
O capitão da guarda local veio fazer-me perguntas.
Equipes de investigação entraram nos esgotos para procurar o possível assassino.
Perdi a fome completamente.
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15 de novembro de 18??
Tenho tido alucinações com Camilla.
Vejo-a por todos os cantos e quando estou a degustar de sua carne, ouço sua voz a rir.
Penso que a preocupação quanto às investigações tem me afetado mais do que posso admitir.
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A turba invadiu minha residência.
Jamais encontrarão o meu aposento secreto.
Ficarei aqui, escondido, enquanto degusto a carne de minha amada Camilla.
Posso vê-la nesse mesmo instante.
Ela segue em direção da porta secreta...