Jogo de azar - DTRL 24
Jogo de azar.
Ele passeava intranquilo pelo parque. Estava desempregado e sem perspectivas, pois com a crise, seu ramo de trabalho havia encolhido e até que a recessão passasse, não havia onde buscar emprego. Se fosse filho de alguém importante no ramo, não teria problema em se recolocar, mas sendo sozinho e nativo de outro estado, ficaria chupando dedo até o mercado melhorar.
Após zanzar muito, decidiu sentar em um banco e estudar a fauna do parque. Viu as putas de meia idade fazendo ponto e negociando preços com velhos broxas sob as sombras das estátuas da época do Império, os viciados curtindo seu sono narcótico esperando o Sol tombar para ameaçarem as pessoas com facas e dar sustento ao vício, os evangélicos amarrotados gritando sobre riquezas, glórias, danações eternas e os gatos vagabundos engordando com a caridade de matronas solitárias que para escaparem do vazio da sua existência, gastavam a parca aposentadoria com ração barata.
Observou também os bandos de cutias que malandramente roubavam os grãos de comida sob os bigodes dos felinos obesos e pensou que se tivesse poder pra destruir todo aquele lugar e seus animais decadentes, só pouparia os roedores super crescidos, pois eles seriam os únicos a fazerem falta ao mundo.
Maquinando as mais elaboradas formas de chacina em sua mente, não se deu conta de que um homem por volta dos sessenta anos se sentou ao seu lado. Quando notou a presença do idoso vestido com um terno bem cortado e limpo, de cabelos bem cuidados e perfumado mais que filho de barbeiro em quermesse, tomou um susto e por instinto, levou a mão até o bolso onde guardava o celular.
Ficou ali, preocupado com a figura tão diversa ao ambiente, imaginando se era algum turista louco pedindo para ser roubado ou um gay que se apeteceu por sua figura, que longe de ser bela, também não causava asco. Após uns bons minutos, já quando estava prestes a ir embora, o homem lhe cumprimentou:
–Bom dia, amizade. Tudo joia?
A voz do homem era a típica de um locutor de mercado, com seus caquetes pseudo radialísticos de AM de bairro pobre. Ele sorria um sorriso perfeito de comercial da Colgate, como se estivesse prestes a fazer uma proposta irrecusável. Nesse instante, na mente do rapaz, um pensamento se formou: É viado. Oh sorte do caralho a minha.
Por educação e medo de que a maricona velha criasse um espetáculo para satisfazer os justiceiros sociais de plantão, respondeu a saudação do coroa:
–Bom dia, parceiro. Tudo de boa. – Tão logo terminou a frase, se amaldiçoou por ter usado o termo “parceiro”.
Ainda sorrindo, o homem estendeu a mão e se apresentou:
–Jorge Abbadie LaRue, seu criado.
Novamente levado pela educação e medo, o rapaz respondeu ao gesto com um aperto de mão desnecessariamente forte:
–Caio Alcântara, satisfação.
Ainda com a mão de Jorge presa a sua, pensou consigo: Até o nome é de viado.
Assim que soltou a mão do homem, este se aproximou um pouco no banco e ainda ostentando o sorriso, começou a tagarelar:
–O camarada parece preocupado. Foi pego pela crise? Com certeza foi, pois um garotão novo como você não estaria aqui de bobeira se tivesse algo para fazer. Eu também já passei por essa maré, camarada. E quer saber? É uma judiaria esse tipo de coisa, mas eu sei de um jeito para mudar essa fase.
Desconfortável com a conversa, Caio se afastou um pouco, pensando: Puta merda, o coroa acha que sou miché ou que estou tão na merda que vou topar entubar ele por uns trocados. Oh sorte do caralho.
Impulsionado pelo medo de como a situação iria se desenrolar, Caio se ergueu do banco, mas antes que pudesse se afastar de Jorge, este o segurou pelo braço e disse:
–Calma amizade. Escuta o que tenho para te falar, vai mudar essa maré ruim e ajeitar tua vida. Não se preocupe que não vai te custar nada. É coisa de pai para filho, entende?
Chocado com a situação e percebendo que alguns dos animais do parque estavam observando a cena, se deu por vencido e novamente sentou. Nervoso, encarou o velho com uma expressão dura que se dividia entre a mão em seu braço e a face sorridente.
Satisfeito, Jorge largou o braço do rapaz e perguntou:
–Você acredita em magia, amizade? Acredita em sorte e fantasmas?
Intrigado, Caio apenas sacudiu a cabeça de forma negativa, vendo isso, o idoso continuou:
–Não? Mas devia. Se eu te dissesse que foi por causa de magia que eu fiquei rico, acreditarias?
Uma nova negativa do rapaz foi gesticulada e o monólogo de Jorge então seguiu:
–Eu tenho um apartamento na Atlântica, uma casa em Búzios e uma em Teresópolis. Sete carros, todos importados, e um milhão e meio na conta sobrando. Tudo isso graças à magia.
Então o idoso colocou uma das mãos em um bolso do paletó e de lá retirou uma moeda, era um círculo prateado, boleado nos cantos e polido por anos de manuseio. Ela brilhava no Sol da manhã, parecia ter luz própria. Atraiu as vistas de Caio como se fossem moscas famintas perante uma carcaça recente.
Vendo a expressão na face do rapaz, o sorriso de Jorge adquiriu contornos sinistros, quase cruéis. Ele estendeu a moeda até Caio e disse:
–Pegue, veja como o que digo é verdade.
O jovem tomou em suas mãos o objeto, em uma das faces, a moeda ostentava a figura de uma mulher sorridente, já a outra estava degastada demais para se reconhecer a imagem que um dia houvera ali. Enquanto admirava o círculo prateado, a ideia de que parecia a moeda do Duas Caras da DC passou pela mente de Caio, tal pensamento o fez sorrir.
Notando o sorriso na cara do rapaz, Jorge o encorajou:
–Vamos, use-a. Veja como o que eu disse é verdade.
Caio olhou para o idoso, confuso, pois não sabia como a tal “magia” funcionava e cheio de uma desconfiança ainda maior, perguntou:
–E como isso funciona? O senhor não explicou.
Transbordando alegria, o velho deu início à explicação:
–É fácil amizade. O que ocorre é o seguinte: Toda vez que estiver com a grana curta, basta apostar em algo e jogar a moeda para o ar, tipo Cara ou Coroa. Tá entendendo? Se der cara, você pode ter certeza que vai ganhar. Não importa o quanto as chances sejam contrárias, você ganhará a parada. Pode crer, é batata! Mas entenda que você precisa apostar em coisas em que haja um rival, alguém que queira te vencer, jogar na Sena não dará resultado, pois é uma coisa muito impessoal. Quer ver como é verdade? Aposto essa moeda contra um fio do teu cabelo como o céu é azul. Topa?
Completamente envolvido pela conversa, como se a moeda tivesse o hipnotizado, Caio aceitou a aposta e lançou o círculo de prata ao ar. Depois de três rápidas evoluções no espaço, caiu na palma da mão do rapaz que por reflexo a fechou em punho:
–Com certeza perdi, abra a mão e veja! É batata! – Disse o idoso, feliz demais.
Lentamente Caio abriu o punho e lá, rebrilhando sob a luz do dia, estava a face de mulher sorrindo para ele. Apesar de feliz por ter ganhado, o rapaz não deixou de fazer uma observação:
–Isso não prova nada. Era uma chance em duas de vitória, uma margem bem aceitável de sucesso. Além do mais, não posso aceitar a aposta, a moeda parece ser muito valiosa.
Com um pouco de esforço, fazendo as articulações dos joelhos rangerem, Jorge se levantou do banco e deixando de lado o sorriso, disse:
–Aposta é aposta, amizade. Perdi e agora a moeda é sua, faça bom uso.
E dando as costas para o rapaz, se pôs a caminhar em direção da Uruguaiana. Vendo o idoso partir, Caio o seguiu rapidamente e quando o alcançou, perguntou:
–Beleza, se quer me dar a moeda, tá tranquilo. Mas diz aí: O que acontece quando dá coroa?
Sem se dar o trabalho de parar e responder, Jorge atravessou a rua e já do outro lado, gritou:
–Se der coroa, o morto se aproxima um metro! Boa sorte nas apostas!
Antes mesmo de terminar a frase, já havia se embrenhado no meio da multidão que fervilhava no Saara e sumiu. Mesmo sem entender o que significava a história do tal morto andar um metro, Caio sorriu, pois havia vencido a aposta e talvez isso fosse o prenuncio de alguma mudança em sua sorte.
Feliz, caminhou em direção da Central, pensando no que faria para o almoço.
***
Caio embarcou no trem do ramal de Japeri feliz por ter ganhado a moeda, mas após quarenta minutos dentro da composição, seu humor se deteriorou drasticamente. A fome somada ao calor e o desconforto criado pela fauna que habitava o ramal, só fizeram a sua pequena felicidade ruir, algo já esperado por ele, pois como diz o ditado: Felicidade de pobre acaba rápido.
Suando como um porco sendo depilado por um maçarico, ficou sentado no banco de plástico alaranjado, observando as malditas criaturas quase caricaturais que transitavam pelo vagão. Viu os camelôs que gritavam com suas vozes roucas e cheias de sotaques variados, vendendo uma gama sem fim de pacotes de diabetes coloridas, coletâneas de música descartável, utilidades cuja garantia acabava logo após serem desembaladas, capas para celular, produtos de armarinho da China, enfim, tudo o que se possa imaginar de vagabundo, barato e inútil.
Além dos vendedores ambulantes, que mesmo fora da lei e perturbando o sossego alheio, se pavoneavam como donos dos trens, havia os pedintes, que se dividiam em três categorias: os religiosos, os deficientes e as crianças com bilhetinhos.
Dos três tipos, o mais profissional era o religioso. Impressionava como o discurso de um sem número de denominações coincidia em tudo, desde a história do abuso de drogas, homossexualismo, violência, macumba e cura, até a forma de pedir dinheiro para resgatar drogados do vício. Caio às vezes se perguntava se as igrejas faziam algum tipo de curso padrão para tentar extorquir, através da fé e da culpa, os poucos cobres da gente pobre que usava os trens, pois só mudavam os obreiros, o papo era sempre o mesmo.
Toda balburdia criada por essa fauna ferroviária sempre destruía o humor do rapaz e como de costume, ele acabava divagando em ideias de genocídio de um requinte que faria a maioria dos ditadores se sentirem envergonhados.
Para tentar se acalmar, retirou do bolso a moeda e ficou a examinando, tentando descobrir algum vestígio da forma que havia sido apagada de uma das faces. A girou entre os dedos, se divertindo com os reflexos prateados que dançavam ante seus olhos até que a maquinista vomitou o nome da próxima parada pelo alto falante gasto, indicando que a parada seguinte seria a de Caio. Satisfeito por poder se livrar daquele pequeno cenário miserável, praticamente se lançou para fora quando as portas ruidosamente se abriram e quando já raspava o concreto carcomido com seus tênis, falou despreocupado:
–Aposto meu cu que seria lindo ver esses filhos da puta se foderem todos. Bando de animais.
Em um movimento mecânico, lançou a moeda, que ainda carregava entre os dedos, para o ar. O círculo prateado deu quatro voltas no vazio e com peso, caiu para ser apanhado pelo rapaz. Ele examinou o objeto na palma de sua mão e viu o rosto feminino sorrindo. Cruelmente feliz, olhou para o trem que já ia distante algumas dezenas de metros e gritou:
–Viram bando de filhos da puta?! Ganhei!
Mal a frase se perdeu de seus lábios, ouviu um estrondo vindo da direção da linha férrea e espantado notou que o trem adernava para o lado. Dezenas de pessoas que aguardavam na estação, no sentido Central, gritavam de assombro, vendo a composição cair do elevado por onde corria e se espatifar na avenida logo abaixo, esmagando carros e pedestres. Como uma serpente gigante, a máquina mergulhou no asfalto, se contorcendo em uma caricatura de papel barato, liberando faíscas e uma grande nuvem de vapores. Os veículos apanhados pela queda, após alguns instantes, explodiram elevando pequenos cogumelos de fogo aos céus, piorando o caos e mortandade.
Rapidamente a estação se tornou um manicômio, com pessoas correndo em busca das roletas, gritando apavoradas ou simplesmente por estarem dominadas pela estranha vontade de serem as primeiras a filmar a tragédia e assim ganharem “likes” e quem sabe, alguns segundos de notoriedade para suas vidas sem sentido.
Boquiaberto, Caio estancou onde estava e sem acreditar no que via, novamente observou a moeda na palma de sua mão e tremendo, sussurrou:
–Caralho... Eu fiz isso?
Então ficou ali, quieto, destoando de todos os demais, observando o fogo correr por entre o metal retorcido, ouvindo os urros desesperados dos sobreviventes que lentamente eram cozidos.
***
A televisão exibia as imagens do local do acidente. O fogo se alastrava por entre as ferragens enquanto os bombeiros combatiam as chamas e uma multidão se acotovelava para presenciar a desgraça alheia. As cenas do local eram cortadas, vez por outra, para o estúdio, onde o antigo jurado de auditório, e atual hipócrita de plantão, macaqueava feito um saci enquanto regurgitava palavras demagogas sobre a culpa da empresa de trens, que fatalmente perderia a concessão e quebraria para bancar todos os prejuízos.
Caio trocou de canal, mas todas as emissoras exibiam a mesma coisa, apenas os possíveis culpados mudavam dependendo do canal, indo desde os ambulantes e drogados que vivam percorrendo a linha até o governador do estado. Apesar do jornalismo não decidir quem era o responsável, mesmo que para isso precisasse de laudos, provas e testemunhas, coisa irrisória e sem sentido para as emissoras, o rapaz sentado no sofá velho e comido de traças, sabia: Ele era o culpado.
Cheio de medo, certo de que seria questão de tempo para que a culpa caísse em suas costas, sentia enjoos. Não havia levado à sério a história de que a moeda fosse mágica, mas após a destruição causada, não sabia muito bem o que fazer. Se por um lado seus problemas financeiros pareciam resolvidos, por outro, tinha pavor do que poderia acontecer se a moeda lhe mostrasse uma sorte infeliz. O tal morto citado por Jorge era uma ideia vaga que, no entanto, passara a dividir sua mente com o medo e a culpa.
Ficou durante todo o dia em frente da TV, aguardando o momento em que seu nome seria proclamado e o BOPE chegasse voando com toda a sua educação em forma de disparos fulminantes não intencionais, coisa que estranhamente sempre ocorria. A madrugada chegou e foi precedida pela manha e nada, nem uma vez seu nome foi dito, mas ainda assim seu sossego não voltava. A calma só retornou quando durante o programa daquela loira que fala com um papagaio de borracha, um flash de reportagem anunciou que a queda do trem havia ocorrido graças a um defeito nos trilhos.
O medo serenou, no entanto, a culpa ainda lhe perseguia. Sentia-se mal por ter sido de alguma forma o responsável por duas centenas e meia de mortes, ficou pendurado entre a autopreservação e a vontade de se entregar durante todo o dia, algumas vezes até pegou o celular para ligar para a polícia, mas assim que a noite caiu, a culpa também começou a serenar. Tudo graças aos vizinhos que começaram uma festa na rua, abrindo as traseiras de seus carros velhos onde uma verdadeira cornucópia de altos falantes mal equalizados vomitavam cacofonias sobre como se fazer sexo em posições pouco ortodoxas e até impossíveis. Os gritos de alegria ébria somados aos sons sem qualquer senso de ridículo acabaram por fazer Caio novamente se perder em um sonho lúcido e encarar a pequena multidão que se formava em frente de sua casa, como um bando de macacos que em um estranho ritual de cunho sexual, causavam vergonha alheia.
Ficou pensando em quantas das pessoas que haviam morrido no desastre seriam iguais as que agora lhe tiravam o sossego e acabou por resolver que a maioria era igual ou pior. Indagou-se se algum dos mortos teria algo para acrescentar ao mundo, tornando-o melhor, e a única resposta que conseguiu, após muito meditar, foi um retumbante não. Era impossível parar de pensar que o mundo estava melhor sem aqueles seres, que eram apenas um peso e que só serviam para, assim como um câncer, macular tudo o que tocavam.
Irritado e quase sem medo ou culpa, pegou a moeda e a lançou no ar. Enquanto ela fazia suas evoluções no vazio, disse:
–Aposto dez centavos como se acontecesse outro acidente como o do trem aqui na rua seria ser lindo e em poucos dias ninguém iria falar um aí.
Apanhou a moeda no ar e cruelmente feliz, esperou por alguma explosão ou tiroteio, mas apenas a música sem valor se fez ouvir. Intrigado, abriu a mão e para seu desgosto, o lado sem figura da moeda se mostrava. Havia perdido a aposta. Zangado, Caio novamente lançou a moeda, mas antes de poder dizer algo, viu uma silhueta estranha nas sombras do outro lado da rua. Sem entender o motivo, ficou parado, deixando a moeda ir tilintar sobre o piso de sua casa, observando a figura, envolta pelas sombras de uma lâmpada queimada, que parecia o olhar nos olhos.
Ele se afastou da janela e em um movimento brusco, cerrou as cortinas. Suando frio, recolheu a moeda do chão e a apertou entre os dedos. Havia perdido a aposta e sentia medo novamente, pois tinha a estranha certeza de que a silhueta no outro lado da rua era o tal morto ao qual Jorge previra se aproximar dele um metro por vez. Não entendia o motivo de tanto medo, mas o sentia. Foi até a cozinha procurar por um pouco de água e durante o trajeto calculou de forma inconsciente a distância onde a silhueta estava.
Apenas dez metros a mantinham distante.
***
Caio caminhava em frente da Feira dos Nordestinos em São Cristóvão. Estava nervoso e ficava olhando por sobre os ombros a cada instante. O morto estava em todo lugar por aonde o rapaz ia, sempre distante dez metros. Era uma figura alta, de pele macilenta, onde profundas rugas talhavam suas feições, escondendo os olhos sob as dobras das pálpebras, mas não evitando que eles emitissem um brilho fanático e cruel. Completamente nu, desvanecia da visão quando a luz lhe acertava em cheio, tal qual um holograma barato vindo da China. Permanecia sempre com uma das mãos esticadas em um gesto inquisidor, exigindo que o jovem se aproximasse mais. Vez por outra, imitava o gesto de lançar uma moeda e sorria, deixando cacos de marfim laranja se exibir.
Assim que Caio passou pelo portão três da feira, entrou em uma pequena loja ao lado de um templo evangélico, era uma casa de apostas, basicamente um tipo de igreja atual, onde as pessoas esperavam ganhar dinheiro fácil, mas sem todo o discurso sobre culpa e a lavagem cerebral. Era um lugar um pouco mais decente, enganavam as pessoas, no entanto, não faziam segredo ou terrorismo psicológico sobre isso.
Em televisores, cavalos corriam fazendo um pequeno grupo de idosos que estavam no local vibrarem até a linha de chegada, quando as esperanças morriam e os prejuízos nas parcas aposentadorias aumentavam. Caio foi até um guiché e retirou do bolso cem reais, estudou bem a nota de dinheiro, incerto se devia fazer o que planejava. Não havia garantia que as coisas iriam ocorrer como esperado, poderia perder a aposta e o morto caminharia mais um metro ou alguma tragédia como a do trem se repetiria e ele poderia ser apanhado pela circunstancia.
Também não poderia deixar de fazer algo, pois após ter jogado a moeda pela privada e ela ter reaparecido em seu bolso, tinha certeza de que não se livraria do problema de maneira fácil, sentia ser apenas questão de tempo até algo muito ruim acontecer. Havia ainda o seu problema de desemprego, que apesar de ter se tornado menor para o rapaz, ainda o acertava com seus efeitos práticos. Ficou durante um bom tempo com a nota nas mãos sem saber muito bem o que fazer, quando o atendente perguntou:
–O senhor deseja apostar no próximo páreo?
Caio olhou para o homem de meia idade que estava do outro lado do balcão e esticando a nota, respondeu:
–Cem no azarão... Aposto cem no azarão.
Com um sorriso de raposa, o atendente digitou no computador a aposta e a máquina lentamente emitiu a ficha. Com o olhar mais debochado que Caio havia visto na vida, o homem entregou o pedaço de papel e disse:
–Dinheiro perdido, nem se Jesus fosse jóquei esse cavalo ganharia. O Sweet Joy é um pangaré de luxo. Pode ir embora rapaz, levou prejuízo.
Puto, com a expressão do homem, apanhou o comprovante e dando o seu sorriso mais insincero, provocou:
–Vou quebrar a banca hoje. Esse pangaré de luxo vai me dar uma bolada. Aposto nisso.
Então sacou a moeda do bolso e a lançou.
***
Ele estava eufórico. Ganhara o páreo com a ajuda da moeda e o morto já não estava à vista desde que encheu os bolsos com os quinze mil reais do prêmio. Com a bolada poderia se sustentar por cerca de oito meses com tranquilidade, mas já havia gasto mais da metade com supérfluos e mulheres. Contratou as putas mais caras da Barra da Tijuca, todas atuais capas de revistas e futuras remidas hipócritas, jantou no Fasano e ficou por uma noite no Palace. Gastos idiotas de alguém que se julgava sensato, mas que agiu como uma espécie de cantor de música pop com sotaque dos centros do agronegócio nacional, um novo rico com comportamento humilde, mas sem a humildade.
Muito satisfeito consigo, buscou a ultima garrafa de cerveja importada que estava na geladeira, um suco de milho, que por ter a logo de uma banda de metal famosa custava o preço de um engradado inteiro de uma marca nacional de qualidade semelhante, e ficou planejando como iria conseguir mais dinheiro usando a moeda, bebericando o líquido sentado no sofá. Pensou em apostar no bicho, mas a ideia lhe parecia insegura, pois os bicheiros não suportam perder dinheiro e geralmente dão férias para quem quebra a banca. Férias longas em valas comuns.
Ficou imaginando um sem número de possibilidades, até que lhe veio, em um estalo, a resposta: rinha de galos. Havia uma em Santa Cruz, na zona oeste, onde apostas eram aceitas. Apostas altas que eram cobradas e pagas na hora. Apesar de achar uma sacanagem fazer os bichos lutarem até a morte, deu de ombros, pois já tinha uma centena de mortes de outros animais nas costas. Era assim que encarava a queda do trem, a morte de alguns animais inúteis para o mundo.
Decidido, se arrumou e saiu de casa. Por costume seguiu em direção da estação de trens, mas assim que pisou na entrada do local, percebeu onde estava, sorriu e disse:
–Nunca mais entro em um maldito trem. Nunca mais serei carregado com um boi para o abate.
Então se aproximou do meio fio e estendeu uma das mãos. Não demorou muito para um taxi parar e ele entrou no veículo. Após se acomodar no banco traseiro, sorriu para o taxista e disse:
–Toca para Santa Cruz, parceiro.
O taxista o olhou meio surpreso e desconfiado, observou:
–Vai ficar cara essa corrida. Tem certeza?
Com um sorriso largo no rosto, Caio sacou uma nota de cem reais do bolso e a estendeu para o homem. Sentindo-se vitorioso, afirmou positivamente com a cabeça e disse:
–Tenho certeza, parceiro. Toca pra lá. Esse trocado aqui é a caixinha.
O taxista apanhou a nota e sorrindo, saiu com o carro. Enquanto manobrava para retornar ao fluxo de veículos, viu uma figura de relance no retrovisor, um homem nu que sorria para ele. Quando olhou novamente, apenas carros e motos se mostravam.
Culpando a dose de vermute que havia bebido, continuou a viagem.
***
Depois de duas horas dentro do taxi, enfrentado o congestionamento na Avenida Brasil, Caio chegou a Santa Cruz. Bairro violento, onde as milícias e os traficantes lutavam para dominar todos os ramos de contrabando, venda de drogas e revenda de cargas roubadas. Lugar cheio de favelas e gente miserável, recanto ideal para uma rinha de galos.
Havia pegado o endereço do lugar com um amigo do antigo trabalho e apesar de nunca ter ido ao local, o encontrou facilmente. Era uma chácara grande cercada com arame farpado e entulhada de mangueiras centenárias caducas onde os morcegos e barbas de velho reinavam. Caio se aproximou do portão de tábuas de virola roída e bateu palmas, do interior de uma casa antiga e mal cuidada, veio se arrastando uma senhora muito idosa que carregava nas mãos um gato sarnento. Quando se aproximou da entrada do terreno, mediu o rapaz de cima em baixo e perguntou:
–O que foi meu filho? É cobrança?
Sorrindo Caio respondeu:
–Não minha tia. Vim ver o jogo do Paulo Antônio.
Após ouvir a resposta do rapaz, a velha se esticou por sobre o portão baixo e olhou para os dois lados da rua, desconfiada. Assim que decidiu ser seguro, abriu o portão e apontou para o quintal:
–Segue pelo lado da casa e quando der com um canavial, entra na trilha que você chega lá. Agora vou entrar para ver a novela. Fecha o portão.
Obedecendo a idosa, Caio fechou o portão e seguiu o caminho indicado e rapidamente se embrenhou na trilha do canavial. Após caminhar por dez minutos cercado pelas plantas se deparou com uma clareira grande onde alguns homens estavam. Ao verem Caio, se ergueram e nervosos com sua presença se aproximaram, um homem baixo e de olhar inquisidor perguntou:
–Quem é tu cumpádi? Quem te mandou?
Receoso Caio respondeu da forma mais educada que pôde:
–Sou o Caio. O Izaías Beirola me falou que tinha uma rinha boa aqui. Ele falou que tinha ligado pra avisar que eu vinha.
O baixinho ao ouvir a resposta sorriu deixando com que os dentes faltando em sua boca ficassem à mostra. Ele estendeu a mão para o rapaz e disse:
–Tranquilo então. O Beirola é parceiro, se te recomendou tá certo. Continua andando que tu já tá perto da rinha. – O homem apontou para outra trilha no canavial.
Caio apenas fez um gesto de positivo e seguiu o caminho indicado pelo homem. Após algumas dezenas de metros chegou ao local desejado. Era um galpão de teto baixo, feito com madeira de demolição e telas de galinheiro. Em seu centro havia várias caixotes de feira criando um circulo onde os galos se matavam para o prazer dos animais ali presentes. Era um bando de homens brutos, que recendiam a bebida barata e suor. Seu fedor se misturava com o do estrume e sangue dos galos, criando um fedor azedo que parecia se colar em tudo que entrava no pequeno arremedo de circo gladiatorial.
Enojado com tudo que o cercava, o rapaz não demorou a ir até o velho barrigudo que anotava as apostas, sentado em uma carteira escolar enferrujada. Era um sujeito calvo de pele curtida pelo Sol e que pela postura se julgava mais importante do que realmente era. Caio o odiou logo de cara e desejando diminuir ao máximo sua estadia naquele local, puxou três mil reais do bolso e disse:
–Aposto tudo no pior galo que você tiver.
O velho o encarou desconfiado, parecia não entender o que havia sido dito, mas após alguns segundos pegou as trinta notas e perguntou:
–Tá cheirado moleque? Apostando essa baba em galo ruim?
Agarrando a moeda em seu bolso, Caio respondeu:
–Não coroa. Tô doido não. Vai anotar a aposta ou não vai?
Balançando a cabeça de maneira negativa, o idoso começou a escrever em um boleto colorido e respondeu:
–O dinheiro é teu chefia. Quer jogar fora? O problema não é meu.
Assim que teve o boleto de aposta em mãos, o rapaz se dirigiu para o círculo de caixotes e esperou que a briga em que apostou começasse. Demorou meia hora para que seu galo, um animal raquítico de tanto sofrer maus tratos, ferido e cego de um olho fosse posto para brigar com outro cujas penas brilhavam em tons metálicos e de um porte altivo e saudável. Era certo que levaria prejuízo na aposta caso não usasse a moeda.
Assim que os galos foram soltos na rinha, sacou da moeda e disse:
–Aposto que o galo cego vai matar o outro.
Enquanto a moeda girava no ar, seu galo saltou sobre o adversário e bicou um dos olhos. Vendo isso teve a certeza que ganharia a aposta.
***
Caio andava com passos pesados, sentia ódio e medo naquele momento.
A moeda havia tombado com a face sem rosto na palma de sua mão e seu galo apesar de ter cegado uma das vistas de seu rival, foi massacrado completamente. Assim que o bicho deu seus últimos espasmos no chão de terra batida, o jovem se dirigiu até o velho para fazer uma nova aposta e tentar não ficar no prejuízo, mas ao dar uns poucos passos, viu o morto.
Ele sorria entre as plantas, mais próximo e mais odioso. Parecia que sua pele estava em um avançado estado de decomposição. Fungos brotavam de feridas purulentas como um jardim bizarro. Eram orelhas de sapo de uma forte coloração laranja que serviam de plataforma para milhares de moscas e larvas que chiavam como um riso mau. O espectro acenava imitando o gesto de lançar uma moeda, como se pedindo que Caio apostasse mais uma vez.
Com medo, correu pela trilha e quando chegou na clareira, foi barrado pelos homens. O baixinho desdentado perguntou:
–Que é isso cumpádi? Tá devendo pra tar correno assim? Que tu fez?
Suando demais, Caio respondeu bufando:
–Nada chefe. Só preciso ir.
Com um olhar mau, o homem cruzou os braços sobre o peito e o estudou. Após uns minutos, falou:
–Tranquilo. Mas tu só vaza depois que deixá a caixinha. Passa os teus borós aê!
Espantado, o rapaz perguntou:
–Sério isso? Vai me dar o bote?
O encarrando nos olhos o baixinho retrucou:
–Tô com cara de comédia?! Passa o que tu tem e vaza. Sem caô, mané!
Caio entregou o dinheiro que tinha no bolso para o homem, que quando viu o montante, sorriu satisfeito e ordenou:
–Agora vaza daqui vacilão e não volta, senão vai pra vala!
Sem perder tempo Caio correu pela trilha, vendo entre as canas, o morto a sorrir e gesticular. Correu até o portão da chácara e lá parou até que seus pulmões parassem de arder. Cheio de raiva sacou a moeda e gritou:
–Aposto que essa merda de canavial pega fogo fácil!
Já do outro lado do portão, lançou a moeda e sem esperar que ela desse mais de um giro no ar, a agarrou. Ao abrir os dedos embranquecidos pela força do apertão, viu a mulher sorrindo.
No mesmo momento uma explosão se fez no interior da casa velha, jogando o telhado embolorado no ar em uma nuvem de fogo. Do interior da casa, subiu um botijão de gás envolto em chamas que em uma parábola veloz, tombou no canavial e arrebentou em outra bola de fogo. Como se estivesse vivo, o fogo correu por entre as folhas secas das canas rapidamente se alastrando. A fumaça podia ser vista de longe. O canavial era um inferno de fogo onde galos e homens recebiam um bronzeado de padaria. Os que estavam em seu interior gritavam de medo, correndo tentando fugir, mas as chamas pareciam ter um espírito que as guiava e impediram a fuga da esmagadora maioria. Os sortudos saiam do meio das canas com as roupas e cabelos pegando fogo.
Caio observou a cena sorrindo e enquanto caminhava pesadamente, vasculhou em seus bolsos o quanto ainda tinha de dinheiro. Encontrou cinco reais, o que o deixou com ainda mais ódio. Puto nos panos caminhou até o centro do bairro e quando chegou ao guiché da estação, estendeu a nota para a caixa e pediu:
–Uma.
Assim que recebeu o bilhete, entrou na estação e apanhou o trem. A todo instante a ideia de apostar em uma nova tragédia de trem lhe acenava, imitando o morto, que sentado em um canto sujo do vagão, sorria satisfeito.
***
Após chegar em casa, tentou novamente usar a “sorte” para ganhar dinheiro. Foi até um bar de esquina onde todos os dias um bando de aposentados jogava carteado sob a influência de cerveja barata e pagodes antigos, mas ao usar a moeda, por mais uma vez a face desgastada se mostrou e por não ter como pagar a aposta, entregou seu relógio de pulso e o par de tênis que usava.
Para seu horror, o morto se aproximou mais um metro, se apresentando ainda mais medonho com suas pústulas e fungos maiores do que da ultima vez. Apesar do medo, naquele mesmo dia ainda tentou se beneficiar da magia do objeto maldito, apostando as roupas caras que havia comprado em vários jogos populares, comuns nos bares e feiras da periferia carioca, mas todas às vezes a efigie da mulher se ocultou da luz e o maldito morto caminhou em sua direção, ficando a apenas dois metros de distância.
A coisa sorria satisfeita, deixando com que sua baba negra escorresse pelo rosto, servindo de piscina para os vermes e toda uma miríade de insetos. Ele não falava, apenas gesticulava e movimentava os lábios retraídos sobre os ossos da cara, mas a cacofonia de zumbidos e estalos das pequenas criaturas que pastavam sua carne parecia dizer: Falta pouco.
Dominado pelo desespero, Caio se trancou em casa, no entanto, mesmo lá, o morto se fazia presente, aparecendo nos cantos das salas e corredores. Apenas seu quarto, um pequeno aposento, o menor da casa, parecia ser proibido para a criatura de pesadelo. Era seu ultimo bastião e também cela.
Não conseguia dormir, comer ou sair de casa, o medo do morto o maninha cativo fazendo com que agisse feito um animal imundo, defecando em uma caixa de sapatos e urinando sobre um monte de roupas sujas. O quarto fedia como um banheiro público, mas ele já não sentia asco ou ânsias de vomito, apenas o medo permanecia, acenando e sorrindo, tal qual o morto.
Lentamente o rapaz enlouquecia enquanto espreitava a moeda jogada no centro do cômodo, uma promessa de fortuna que agora pesava como o destino de um condenado. Cada vez que o objeto refletia as luzes, ele amaldiçoava Jorge, o velho que havia lhe metido nesse estranho jogo de azar onde, tinha certeza, sua vida seria o prêmio final.
Ficou nessa situação deplorável por mais de duas semanas e quando conseguiu perceber que estava falando sozinho e rindo de maneira histérica, decidiu tentar a sorte por mais uma vez. Ele pegou a moeda do piso e tremendo de medo e excitação, disse:
–Aposto essa moeda que esse fantasma viado vai queimar no inferno e me deixar em paz!
Então lançou o círculo no ar e afoito o prendeu em seu punho antes mesmo dele girar mais de uma vez. Sua cabeça latejava e o suor corria livre em sua fronte enquanto abria os dedos embranquecidos pelo esforço ao apertar a prata fria em sua palma. Assim que os dedos se afastaram, sentiu o sangue gelar, pois novamente havia perdido. Respirando pesadamente, viu o morto se materializar através da parede do quarto, o fantasma ostentava um sorriso largo e com a cabeça cheia de tumores pustulentos acenava negativamente enquanto a cacofonia dos vermes parecia dizer: Não.
Caio gritou em pânico e dominado pelo horror, desembestou pela casa e fugiu pela rua. Sem se dar conta, foi dar na estação de trens e como não tinha nada além da moeda, que ainda prendia entre os dedos da mão, pulou o muro e se enfiou na primeira composição que viu. Assim que as portas do vagão se fecharam, o rapaz se jogou em um assento vago e ficou tremendo e balbuciando coisas sem nexo que fizeram os passageiros ali presentes se afastar. Ele chorava enquanto o morto sorria, sentado em sua frente a apenas um metro de distancia.
Percorreu quase todo o trajeto nessa situação, mas assim que as sombras da cobertura da estação de Engenho de Dentro caíram sobre o trem, teve um estalo perverso e rindo, gritou:
–Aposto como vai ser lindo ver você se foder, morto filho da puta! Aposto como vai ficar puto se esse trem explodir e você não me pegar!
Jogou a moeda maldita com força para o alto, fazendo com que ela batesse no teto e ricocheteasse nas barras de apoio para então tombar sobre o piso. Assim que viu o objeto começar a se aninhar no chão, procurou avidamente pela mulher sorridente, mas antes que conseguisse discernir qualquer figura, sua atenção foi roubada por algo que apertava sua coxa. Uma mão carcomida, enegrecida pela podridão lentamente apertava suas carnes e Caio, como um coelho acuado, ficou paralisado, apenas seus olhos se moviam e em um impulso final, eles correram pelo braço esquelético. Só pararam ao encararem os dentes podres do morto.
***
Cleideson havia acordado às duas da manhã daquele dia. Estava exausto, as balas que tinha comprado com o dinheiro emprestado por seu sogro pesavam demais e como as vendas não estavam boas, não tinha almoçado. O pouco que arrecadou já estava comprometido com o pagamento do empréstimo e a comida de seus três pequenos. O baleiro olhou para o pulso e viu no relógio falsificado que já passava das três, decidiu então que seria sua ultima viagem do dia e que quando o trem chegasse à Central, tomaria o ônibus até o morro onde vivia.
Quando o trem parou na estação onde estava, entrou lentamente no vagão e antes mesmo que começasse a apregoar os preços dos doces, teve suas narinas invadidas pelo fedor de merda e mijo que um rapaz exalava. Não que fosse algo inédito para Cleideson, viciados e loucos costumavam tomar o trem para viajarem entre as bocas de fumo que existiam nas estações mais afastadas do centro da cidade, mas aquele tinha alguma coisa de diferente, apesar de imundo, estava bem vestido para ser um dos tipos que habitavam na via férrea.
Após o choque inicial, começou a exercer seu ofício, modesto e mal visto, mas honesto, e assim que ficou a uns poucos metros do rapaz, o viu gritar e lançar uma moeda para o ar. Ela bateu no teto, nos metais onde o gancho de balas e alguns passageiros se penduravam e tombou no chão. Todos olhavam para o louco, cheios de receios. Ele parecia estar sofrendo dos efeitos da abstinência e tal coisa era sempre motivo de problemas.
O baleiro vendo a situação pensou em conversar com o rapaz, seguir o que para ele era correto e sugerir que procurasse ajuda em alguma igreja ou na Prefeitura, mas antes que pudesse falar, viu algo grotesco.
O louco foi erguido no ar pela perna direta e então sua barriga se abriu em um enorme talho, lançando sangue por sobre vários passageiros. Em pânico as pessoas corriam do jovem, que urrando tinha suas tripas puxadas por uma mão invisível que as atava nas barras do trem. Como uma espécie macabra de mamulengo de cordas, o jovem foi pendurado e enquanto seu sangue empapava o piso do vagão, talhos surgiam em sua face, abrindo profundos sulcos nas bochechas. Paralisado ante o horror da cena, o camelô viu a boca do homem se abrir de forma antinatural soltando estalos quando os ossos e cartilagens se rompiam. Assim que a boca se escancarou, a força invisível torceu a língua da vítima e a lançou contra a parede, deixando ela lentamente deslizar como uma lesma carmesim.
Os gritos das pessoas encolhidas nas extremidades do vagão eclipsaram os gorgolejos finais do rapaz e ocultaram o estampido emitido por seus olhos quando explodiram nas órbitas.
Tão logo o trem parou na próxima estação, as pessoas se atropelaram para escapar daquele vagão demoníaco, fazendo com que todos os presentes fossem ver o que estava acontecendo. Cleideson teve dificuldades para sair, pois uma multidão cercava as portas, mas após muito lutar, se viu sobre a plataforma recém-construída da estação do Maracanã. Horrorizado, correu dali e só quando estava na rua, parou para olhar o objeto que tinha na mão. Uma moeda de prata que parecia muito antiga e valiosa. Com certeza poderia a vender e conseguir uns bons trocados para sanar suas dívidas e comprar roupas para as crianças. Apesar de sentir medo por ter a pego do louco que havia sido morto no trem, pois pensava que a policia poderia ir atrás dele, estava estranhamente feliz. Sorrindo, contou para seus botões:
–Parece que a maré ruim acabou.
Na distância, misturado nas sombras fracas da tarde, o morto sorria enquanto observava o homem se afastar.