O JOGO DO DIABO

Júlio estava aborrecido, não tinha intenção nenhuma de passar o final de semana naquele fim de mundo, era para ser jogo rápido: chegar, dar uma rápida olhada se havia algo de valor dentro daquela casa sinistra, pegar o que pudesse carregar no próprio carro e se mandar no mesmo dia. Ledo engano!

O tormento de Júlio começara uma semana atrás, quando um advogado de nome esquisito, Dr. Adrinei, entrara em contato dizendo que seu avô havia falecido e conforme seu testamento havia deixado a casa, um automóvel Ford Galaxie 1976 e todos os seus pertences pessoais para o incauto neto. De imediato, Júlio tinha informado o advogado que não tinha interesse em nada que viesse do avô e disse que podiam fazer o que bem entendessem, mas com a habilidade comum à profissão, Dr. Adrinei o convenceu que ele tinha que ao menos vistoriar os bens e somente depois disso poderia encaminhá-los para doação. Apesar de relutante, Júlio concordou em vistoriar a casa naquele mesmo final de semana, aproveitando que sua família estava em viagem, pois não queria envolver a mulher e o filho nesta história.

O avô era um verdadeiro tabu, um nome proibido de ser proferido e há muito tempo relegado ao esquecimento. Sua trajetória tinha sido incomum, estranha demais, e as dores causadas nos entes queridos nunca foram cicatrizadas. O avô era pobre e sem explicação aparente, como num passe de mágica adquiriu um tino para negócios espetacular, amealhando uma fortuna considerável em pouco tempo. No começo tudo ia bem: dinheiro, festas e viagens. Depois de alguns anos, tudo foi ruindo com a mesma velocidade. Mortes estranhas começaram a ocorrer, um a um, os membros da família foram perecendo. O comportamento do avô de Júlio ficava cada vez mais sinistro, ninguém tinha conseguido provar, mas muitos desconfiavam que ele próprio era quem estava causando as mortes dos familiares. No final, quando só havia sobrado a velha casa de verão e o carro de estimação, a mãe de Júlio, mesmo sob os protestos do pai havia fugido com ele ainda pequeno para nunca mais voltar. O pai de Júlio morreu na mesma semana, sua mãe, mesmo longe também não resistiu mais do que poucos anos, vindo a falecer de uma doença que nenhum médico conseguiu diagnosticar.

O barulho de uma janela batendo com o vento resgatou Júlio dos seus pensamentos e devolveu sua mente para a realidade. Respirou fundo, tomou coragem e entrou na casa. Quando chegou, tinha certeza que não ficaria ali por mais que alguns minutos, mas sua convicção foi substituída por um sentimento de curiosidade intenso ao se deparar com os pertences do avô. Haviam esculturas, quadros e pentagramas espalhados por todo interior da casa. Todos os itens aludindo criaturas tenebrosas envoltas em riquezas e mulheres com curvas generosas, eram imagens macabras, mas que ao mesmo tempo exerciam um grande fascínio sobre Júlio.

Ele já havia fuçado em praticamente tudo, até que se deparou com uma fita de vídeo acondicionada sobre uma estante na sala, no selo, com uma caligrafia elegante havia uma frase: “para meu neto Júlio”. Tomado por grande ansiedade, inseriu a fita em um velho vídeo cassete e postou-se sentado no chão em frente à tv de 14 polegadas, hesitou por alguns segundos e apertou a tecla “play”. Surgiu na tela a imagem de um homem velho e desolado que após um longo suspiro começou a falar olhando para a câmera:

“Meu querido neto, não espero que me perdoe, mas talvez entenda os meus atos, pois tudo que fiz foi pensando no melhor para nossa família. Infelizmente não fui esperto o suficiente, mas você terá a chance de ao menos nos vingar se assim o desejar. Há muitos anos, assim que compramos esta casa eu encontrei um objeto incomum escondido no sótão, era uma pequena Mandala. Assim que o toquei, escutei uma voz na minha mente. Era o diabo, e me propôs um jogo. Os riscos eram grandes, mas achei que valia a pena. As regras eram simples: eu deveria escondê-la nesta casa, nunca retirá-la daqui e mantê-la em meu poder, enquanto fizesse isso teríamos uma fortuna incalculável. Mas caso outra pessoa à tocasse herdaria seu poder, enquanto nossa família cairia em desgraça e perderíamos tudo, sendo relegado a mim ser o último para sofrer a dor incalculável de ver todos morrerem. Como você deve imaginar, eu aceitei. Por muitos anos correu tudo bem, tivemos saúde, riqueza e fomos muito felizes até cairmos em desgraça. Eu já estava consumido pela dor quando descobri quem havia mudado a Mandala de lugar e a escondido. Foi o nosso advogado na época, Dr. Adrinei, foi ele quem causou todo nosso sofrimento. Me suicidei para que você fosse o último e tenha a chance de reverter a maldição enquanto é tempo. A Mandala ainda esta nesta casa, você deve achá-la para salvar sua vida, se conseguir, não cometa o mesmo erro que eu e nunca a perca de vista”.

Júlio passou vários minutos observando a tela azul da TV à sua frente, que até pouco tempo atrás transmitira a imagem do avô. Por um breve momento pensou em ir embora e deixar tudo aquilo para trás, mas a alma humana não é perfeita e a visão de que poderia proporcionar a sua família toda sorte de riquezas falou mais alto. Lançou-se numa busca desenfreada por toda a casa, passou horas vasculhando o lugar sem sucesso, pois nem sabia muito bem o que procurar. Atirou-se estafado no velho sofá da sala e quando estava a ponto de desistir ela lhe surgiu como num passe de mágica. Estava a sua frente o tempo todo, adornando a tela de um quadro pintado em alto relevo. Júlio não pode deixar de reconhecer a astúcia do Dr. Adrinei, pois as vezes a forma mais eficiente de escondermos algo é simplesmente deixando à vista de todos, como se fosse uma parte comum de uma obra maior. Assim que a tocou, Júlio escutou uma voz sussurrar dentro de sua mente:

- Sabe quem sou?

- Sim.

- Jogue comigo e tenha riquezas incalculáveis enquanto a mandala for sua.

- E se eu a perdê-la?

- Irá perder tudo, inclusive sua alma, a de sua mulher e até mesmo do seu filho. Mas isso só se você não for esperto o suficiente.

- E o que acontece se eu nunca a perder? O jogo acaba quando eu morrer?

- Não, neste caso você deve passar para o seu herdeiro e assim sucessivamente.

Todo instinto de Júlio dizia para ele desistir daquele jogo macabro, mas ele tinha convicção que tinha uma grande vantagem por ter ouvido o relato do avô, não iria cometer os mesmos erros que ele.

- Ok, eu aceito jogar.

- Esta fazendo isso de livre e espontânea vontade?

- Sim.

- Então o pacto esta selado e o jogo vai começar. Existe apenas duas regras: você não pode retirar a mandala desta propriedade e se outra pessoa tomar posse dela você perde tudo! Que o jogo comece...

Júlio passou o resto do dia na garagem, trabalhando em algumas adaptações no imenso porta malas do Galaxie. Com habilidade recolocou toda carenagem e estofamento que havia retirado após esconder a mandala em seu interior – ele disse que não posso retirar da propriedade, nada me impede de escondê-la no carro dentro da garagem – pensou ele. Ligou para o Dr. Adrinei no mesmo dia, e de forma rápida e seca lhe informou que não iria mais se desfazer dos bens do avô, notícia a qual o advogado não conseguiu esconder sua surpresa e desânimo. Após um breve diálogo em que o Dr. Adrinei tentou convencê-lo do contrário, a conversa acabou. Quando Júlio estava fechando a garagem, viu um papel trazido pelo vento acondicionar-se entre seus pés. Ao agachar-se para ver o que era não escondeu o sorriso quando se deparou com um bilhete de Mega Sena, ato contínuo guardou-o no bolso da calça.

Duas semanas depois, Júlio Barcellos, o felizardo único ganhador da Mega Sena acumulada de final de ano tomava café em sua nova casa enquanto lia o jornal, no caderno de polícia uma notícia de página inteira chamou sua atenção: era o relato que o rico e renomado advogado, Dr. Adrinei, estava sendo procurado, pois segundo testemunhas havia assassinado a tiros a própria família e fugido em seguida do local do crime.

O toque da campainha retirou Júlio de sua leitura, ao abrir à porta da frente deu de cara com um homem visivelmente transtornado:

- Maldito, você achou a Mandala do Diabo! – gritou o Dr. Adrinei enquanto apontava um revolver para Júlio.

- Calma, eu não sei do que você esta falando.

- Não minta, ou lhe matarei agora mesmo – vociferou ele.

Vendo que não havia outra alternativa Júlio respondeu: - Só peguei de volta o que você tinha roubado de minha família.

- É impossível. Como você a encontrou? – questionou o homem com uma voz esganiçada.

- Meu avô deixou uma fita de vídeo na casa contando-me tudo – falou Júlio fazendo um breve resumo do que havia ocorrido.

- Seu avô? Seu avô lhe deixou um vídeo na casa? – gritou o homem em meio a uma sonora e histérica gargalhada – Você não sabe mesmo no que se meteu garoto – completou ele.

- Como assim? – questionou Júlio apreensivo.

- Fazia cinco anos que seu avô não pisava naquela casa, ele se suicidou em um sanatório. Eu era o único que ia até aquela casa, e posso garantir que não havia fita alguma, nem ao menos uma televisão.

- Então quem me deixou a fita?

- Você tem alguma dúvida garoto? Eu achei que havia pensado em tudo, mas devia imaginar que ele iria trapacear. Afinal, o jogo só tem duas regras.

Júlio ainda estava paralisado, pela primeira vez realmente com medo em que havia se metido quando o homem ficou subitamente violento outra vez:

- Diga-me onde ela esta ou eu mato você agora mesmo – disse Adrinei apontando o revólver.

- Não, você sabe tanto quanto eu que se fizer isso eu condeno minha família.

- Maldito! – gritou Dr. Adrinei enquanto dava cinco tiros à queima roupa na direção de Júlio.

Apesar de estar a menos de dois metros de distância do atirador, milagrosamente Júlio escapou ileso.

- Hoje foi minha vez, aproveite enquanto é tempo, mas um dia você também irá aprender – balbuciou o advogado enquanto engatilhava o revolver com a última bala e apontava para a própria cabeça.

Aflito e sem saber como agir, Júlio perguntou:

- Vou aprender o quê?

- Que não se pode vencer o diabo em seu próprio jogo – respondeu ele enquanto apertava o gatilho.