Lua Vermelha cap.3 - Speedwolf
Jane caminhava sozinha pela autoestrada no entardecer quente que anunciava a chegada revigorante do verão. Aos prantos, ela pensava arrependida em tudo o que fizera e que ocasionou o fim do seu relacionamento de cinco anos com Winston. Um namoro que gerou bons frutos, mas que terminou de forma muito decepcionante. Mas suas lágrimas corriam mais por um sentimento de remorso, afinal, ela fora o motivo pelo término. Não se conteve! A tentação a tomou de um todo na hora errada. Se ao menos pudesse voltar atrás e não ter feito o que fez, talvez agora pudesse estar jantando com seu ex em alguma lanchonete da cidade ou em algum cinema curtindo uns bons amassos entre o lusco-fusco da telona. Sim ela havia o traído. Não conseguira resistir as máximas investidas de Gary, seu colega de faculdade. Um bom partido, aliás, que para ela valia a pena uma “fugidinha” talvez, se ao menos não fosse descoberto. Mas Winston descobriu. Ele deu o seu jeito. Mestre em computação e área de programação, não foi nada difícil para que ele recuperasse todas as conversas de redes sociais frequentadas por Jane nos últimos tempos. Winston sempre dava seu jeito. Sempre a monitorava de uma forma intensa, mesmo que as vezes nem mesmo ela percebesse. Se tem uma coisa que Winston sabia ser era discreto. E mesmo quando estava tendo um ataque de ciúmes, o rapaz sabia se conter. Ela tinha certeza de que ele o amava, porém uma coisa sempre a incomodou em Winston – seu jeito “nerd” de ser. Sim. E nesse exato momento esse pensamento vinha em sua cabeça fazendo com que diminuissem seus soluços. Talves Winston tenha merecido ser traído! Gary era um outro tipo de homem. Era aberto, despojado e sabia fazer uma garota rir. Winston as vezes perdia horas conversando sobre filmes B e coisas dos anos oitenta enquanto Jane fingia prestar atenção nos seus assuntos. Ela respeitava pois via o brilho nos olhos do garoto ao ver algum objeto relacionado aos “bons tempos” e dali já saía uma grande história, envolvendo a época da qual o objeto vinha. Sim talvez Winston fosse imaturo demais para ela, mas sua dúvida ainda a incomodava. Será que a traição era justificável? Por ser uma pessoa “diferente”, Winston merecia ser enganado? Será que ela não tinha sido manipulada pela quantidade de comentários do tipo “muita areia para o caminhãozinho dele?” Será que o garoto não entraria numa crise maníaco-depressiva por causa dos acontecimentos e se suicidaría? “Bobagem!” pensou ela. Ele tem muita diversão eletrônica para fazer algo do tipo. E suas noites em frente ao video-game ao invés de levá-la para as festas confirmava a ideia. Sim! Winston mereceu! Era o seu sempre elevado orgulho de mulher falando mais uma vez. Não importa! Ela estava certa! E então, usando as mangas de sua fina blusa de seda para limpar as últimas lágrimas que insistiam em correr pelo rosto, escutou ao longe o ronco quase ensurdecedor de um motor potende de carro. Uma caranga envenenada vinha naquela direção e, tão logo olhou para trás, viu o par de luzes iluminando o asfalto quente e parte da relva que margeava a estrada. Voltou a olhar em frente. A luz já projetava sua extensa sombra no chão e ela diminuia a cada segundo enquanto o carro se aproximava. Fosse quem fosse, ela não pediria carona. Preferiria ir a pé até sua casa mesmo que isso custasse mais de quarenta minutos. Precisava relaxar. Porém, quando o carro enfim a alcançou, o pisca-alerta fora ligado enquanto ele estacionava lentamente logo a sua frente. Tão logo parou, o vidro do carona se abriu. De dentro, um rapaz jovem com estilo audaz a chamou:
Ei! O que uma garota como você faz a essa hora por aqui? Já vai anoitecer gata! Quer uma carona?
Eu não te conheço – Jane retrucou – obrigado!
Vamos lá garota! Eu spo quero ajudar. Fique tranquila. Será pior encontrar algum viciado aí querendo te assaltar.
Prefiro arriscar do que pegar carona com alguém que nunca vi na vida.
Jane já se afastava da porta do carro, segundo em frente. O rapaz então começou a andar lentamente ao seu lado com a marcha reduzida.
Olha, tudo bem, eu te entendo, mas fique sabendo que há viciados barra-pesada nessa região aqui e não vão hesitar em te assaltar. Ao menos olhe para mim.
Jane se permitiu olhar para ver quem era. De fato ela nunca o tinha visto, mas tão logo reparou em seus olhos, sentiu uma penetrante ansia de conhecer aquele cara. Algo em seu ser explodiu num anseio de liberdade. Talvez fosse interessante conhecer gente nova para desembaçar sua mente frente aos pensamentos contraditórios da qual ela se perdia. Aqueles olhos tinham algo de maravilhoso que a tocou.
Que garantia você me dá de que não é um tarado com sorte?
Isso aqui está bom pra você? - O rapaz puxou do porta-luvas uma carteira policial.
Jhonny Miers, policial rodoviário. Prazer!
Jane pensou mais um pouco na proposta, olhou para os lados como para se certificar de que algum lunático viciado pudesse estar a espreita. Mesmo assim, ainda largou uma última resposta.
Isso não me garante nada. Pode ser falsa.
Ainda assim é uma opção melhor do que ser assaltada por algum vagabundo viciado em crack. Caso encontre-o, não terá nem como dialogar.
O rapaz esboçou um sorriso irônico e abriu a porta do carona. Jane suspirou e então entrou no veículo, fechando a porta com pouca força.
Pode bater. Embora esteja em ótimas condições, é uma máquina velha.
Então ela abriu mais uma vez a porta e com bastante força, puxou.
Obrigado por lacrá-la! - o garoto largou uma risada debochada.
Muito engraçado! - Jane sorriu.
E então o carro arrancou com toda a sua potência, atirando terra por todos os lados em suas rodas dianteiras. O sol já estava praticamente invisível, porém seus últimos raios mostravam as silhuetas das árvores e dos morros no horizonte. Seria uma noite de muitos pensamentos para Jane, mas o estranho Jhonny trouxe uma nova onda de juventude para a sua pessoa. Talvez as coisas pudessem mudar a partir dali.
E então – indagou Johnny, enquanto olhava ora para a estrada a frente, ora para o rosto ainda inchado de Jane – o que você fazia caminhando nesse descampado?
Só estava voltando para casa.
Mas e não tem ônibus? Essas redondezas são bastante perigosas com esses vadios da pedra. Qual o seu problema? Estava chorando?
Sim. Tenho que adimitir, mas não estou a fim de falar sobre isso.
Eu imagino o que deve ser. Entendo. Sempre é horrível quando acontece, não é mesmo?
É. Sempre é. Mas nada que o tempo não cure. E tempo é algo que não me faltará.
Nesse momento Jhonny riu de forma mais intensa, olhando mais uma vez para Jane enquanto acelerava o carro. As demarcações da metade do asfalto passavam cada vez mais rápidas pelo vidro enquanto o ponteiro do velocímetro não parava de subir.
Você curte correr, hein? Não dá pra ir mais devagar?
Claro. Você quem manda! - Jhonny continuava a rir enquanto cedia ao pedido da moça. - Você não estã acostumada com esse tipo de máquina, não é?
Não. Meu ex nem carro tinha. Preferia dirigir em emuladores ao invés de um carro mesmo.
Johnny voltou a rir mais intensamente de forma bastante debochada.
Deixa eu advinhar. O carinha era um desses nerds que, além de ter uma dificuldade enorme de conquistar alguma garota, quando consegue bota tudo a perder tentando fazer com que ela goste das suas diversões excêntricas. Não era isso?
Jane olhou mais uma vez para os olhos intensos de Johnny.
Como você sabe?
Não é difícil adivinhar pelo jeito que você falou sobre ele, gata. Aliás, esse tipinho está virando mas comum hoje. Posso dizer que não se fazem mais homem como antigamente.
Você me parece ser um tanto machista pensando dessa forma.
Nem! Só penso diferente. Digamos que penso como antigamente.
Aí você já está me lembrando ele – retrucou Jane – Era exatamente isso que ele dizia. Mas chega! Não quero mais falar sobre isso!
Tá bem garota! - Johnny remendou enquanto gesticulava com as mãos sem as tirar do volante - Como eu disse, você é quem manda.
Então, observando a estrada correndo à frente, Jane observou um detalhe um tanto perturbante no espelho retrovisor do carro. Piscou várias vezes os olhos para se certificar de que não estava sendo enganada pela meia luz que o anoitecer emanava. Não adiantou. Pendurado por uma corrente metálica envolta ao espelho, estava ali balançando um crucifixo... invertido. Nesse exato momento, um sentimento estranho lhe percorreu a mente. Algo começava a se mostrar errado ali, pensava ela.
Tem algo errado com esse seu crucifíxo. Porque ele está de cabeça para baixo?
É mesmo? - respondeu Jhonny – eu nem tinha percebido. Foi minha mãe que me deu quando comprei essa caranga aqui. Ela sempre foi muito devota.
Mas ele está virado. Isso não é uma injúria?
Eu nunca reparei nisso gata – Johnny mais uma vez sorria – não ligo muito nessas coisas. Sou um tanto descrente.
Eu vi. Não reparar nisso é o cúmulo! - Jane ergueu as mãos para arrumar o objeto, mas foi impedida por Jhonny.
Calma gata! Deixe isso. Você vai fazer esse espelho cair.
Mais uma vez ele tirara os olhos da estrada e olhava na sua direção.
Trate de arrumar isso o mais rápido que puder! Não entenda isso como fanatismo religioso mas sim como uma intuição feminina.
Vou fingir que acredito nisso, gata – e a risada continuava.
O fato do crucifixo invertido fez com que Jane começasse a notar mais algumas peculiaridades dentro do carro de Jhonny. Toda a tapeçaria do carro, bem como os bancos e o painel eram forrados por uma espécie de papel contact esticado e perfeitamente cortado. Em algumas partes, ela percebera que haviam alguns pelos grudados no forro. Não eram cabelos humanos, mas pelos expessos, como os de um cão.
Parece que você tem um companheiro vira-latas – Jane indagou enquanto olhava aqueles pelos
Sim. O velho lobo, meu pastor alemão. Eu percebi que você reparou nos pelos. Lobo está muito velho e seus pelos caem com facilidade. Mesmo assim não deixo de carregar meu amigo aqui. Você tinha que conhecer ele. É extremamente dócil.
Eu amo cães. Tenho três em minha casa. Você tem uma foto dele?
Não. Pior que não tenho. O velho lobo é meio revoltado quando ve flashes.
Toma, aqui tenho algumas fotos dos meus.
Johnny olhou rapidamente enquanto cuidava a estrada. Jane notou uma peculiar alteração morfológia nele no momento em que ele viu as fotos. Seus pelos se arrepiaram, e seu rosto tomou uma expressão de nojo, sendo rapidamente mascarado por um sorriso.
São bonitos. Parecem bem cuidados. Você só dá ração pra eles, não é mesmo?
Sim. E das melhores. Quero concorrer aos prêmios de pet que fazem agora no verão.
Grandes chances.
Por que você se arrepiou a hora que viu a foto?
Jhonny a olhou visivelmente incomodado.
Eu? Que nada! Impressão sua.
Jane voltou a olhar para frente. O sol já não mais aparecia no horizonte. O bréu tinha tomado conta da relva. Uma claridade azulada começava a se pronunciar no lugar.
Bonita a lua, não é mesmo? - Jhonny mudou de assunto.
Ainda não consigo vê-la. Só o brilho.
Então o azulado noturno tornou-se mais intenso, clareando até mesmo dentro do carro. Nesse momento, Jane já com outra concepção a cerca de Jhonny, olhou prestadamente o rapaz enquanto esse dirigia já com uma expressão séria para o vidro dianteiro. Nenhum carro passava ou cruzava por eles durante todo o trajeto. Enquanto o prescrutava com um olhar já um tanto malicioso, Jane percebeu uma tatuagem estranha no braço direito do rapaz, parcialmente coberta pela manga da camisa verde-escura. Era um símbolo. Ela o reconheceu. Uma estrela envolta por um círculo. Um pentagrama. Quando Jane pensou em se pronunciar sobre a imagem, percebeu que, assim como o crucifixo, ela também estava de cabeça para baixo.
E essa tatuagem? Posso ver?
Ah sim. Claro! Por favor fique a vontade.
Hey! Esse pentagrama da tatuagem também está do avesso.
É mesmo? - despistou Jhonny – sempre gostei dele desse jeito. O rapaz voltara a sorrir. - me traz virilidade. Me traz vida. É o meu amuleto.
Jane constatou ser o que pensava. Mesmo que ainda estivesse um pouco consternada, tentou amenizar seus pensamentos. Colocando a mão dentro da blusa, puxou uma corrente que estava presa sobre o seu pescoço. Nela havia um pingente. Também tratava-se de um pentagrama, mas normal. Com a estrela virada para cima.
Veja – apontou o adorno para Jhonny – também tenho o meu amuleto. Mas o meu está certo.
Ao vê-lo, Jhonny afastou rápido a cabeça a ponto de quase bater no vidro da porta do motorista. Esse movimento repentino fez com que perdesse momentaneamente o controle do carro, vindo a recobrar logo em seguida. Sua expressão era de pavor.
- Guarde isso gata! Por favor.
Você estava me mentindo sobre o crucifixo, não é mesmo? Você sabia, assim como sabe que esse pentagrama invertido é um símbolo satânico.
É mesmo? - despistou Jhonny – sempre gostei dele desse jeito. O rapaz voltara a sorrir. - me traz virilidade. Me traz vida.
Está falando sério? Isso não é um símbolo satânico?
Jane voltou a sentir um certo desconforto com a situação. Olhava atentamente para o rapaz que mostrava os dentes amarelados com seu sorriso agora um tanto perturbador.
É. Sim é um símbolo satânico.
Ao ouvir tais palavras, Jane sentiu todo o seu ser estremecer. Queria sair dali. Tinha que sair o mais rápido possível daquele carro. Havia algo errado com aquele veículo e com o cara que o dirigia.
Ali está a minha rua. Paro por aqui. Obrigado pela carona!
Então Jhonny largou uma gargalhada insana ao pinto de fechar os olhos, enquanto acelerou ainda mais o carro. O motor agora produzia um som praticamente ensurdecedor.
Lamento garota! Mas acho que não vou parar aqui. Hoje você é minha!
Jane entrou em desespero. Não sabia o que fazer. Insistiu mais e mais vezes para que Jhonny a deixasse sair do carro e, como não era atendida, tentou numa medida louca abrir a porta a força para pular.
Trava elétrica baby! Pode ser um carro antigo mas dei um jeito de adaptá-lo.
Não obtendo êxito, Jane tentava abrir o vidro.
Sistema totalmente elétrico garota. Sem chances! - E o rapaz voltou a gargalhar. Arfando como se estivesse sem ar, foi cessando o riso insano para então recomeçar a falar
– Está vendo gata? Sabe porque o interior do carro é todo forrado com contact? É porque fica bem mais fácil de limpar!
Seu maníaco! Eu sabia! Desgraçado! Deixe-me sair. Eu vou ligar para a polícia! - Jane agarrou desesperadamente o celular. Tão loco tentou ligar, percebeu que ele não funcionava. Nem mesmo conseguia ligar para a emergência.
Te peguei de novo garota – Jhonny ainda rindo começava a suar abruptamente – Instalei um bloqueador de sinal no carro. Ele impede todo e qualquer sinal de telefone ou wi-fi. Nem pra emergência pode ligar daqui de dentro. Lembra dos pelos?
Jane atacada pelo pânico, começava a chorar. Sentia que não sairia dali com vida. Mesmo assim, como numa última esperança, olhou para os pelos do cão que Jhonny mencionara, grudados no papel contact.
Eu menti também sobre o meu pastor alemão, gata. Esses pelos não são de cachorro nenhum. São meus!
E nesse exato momento, para o pavor de Jane, a luz azul intensa aumentava, banhando toda a estofaria do carro. Nem mesmo as películas um tanto escura dos vidros podia impedir que tudo estivesse mais claro do que o normal. E Jhonny não era mais o mesmo, Seus dentes amarelados estavam maiores e ficavam ainda mais pontudos a cada segundo, ao passo que de seus braços começavam a nascer pelos enormes, idênticos aos encrustados no contact. Jhonny não era mais humano, mas um enorme lobo sedento com presas enormes, babando por sobre o peito.
Lembra da chapeuzinho vermelho gata? - O monstro falava com certa dificuldade, aquilo era o último resquício de humanidade que restava naquela forma apavorante de criatura. - pois então, sinta-se honrada! Hoje você vai vivenciar um conto de fadas! - E novamente a gargalhada tomava conta. Num desespero sobre humano, Jane tentou desesperadamente quebrar o vidro do carro, mas foi impedida pela paulada com que sua cabeça batera no vidro dianteiro, fruto da freiada brusca do monstro. Sem no entando perder os sentidos, Jane sentiu a dor lascinante em sua jugular, enquanto seus olhos iam, segundo a segundo, perdendo o brilho da juventude, a cada gole de seu sangue sugado pelo lobisomem. E última coisa que Jane via em vida era a enorme lua cheia que, entre núvens espessas, enfim apareceu no céu. Mas o azul noturno rapidamente tornou-se de um vermelho intenso. A lua torná-ra-se vermelha. E nela Jane viu sem sombra de dúvidas uma silhueta onstentando seus chifres enormes e seu olhos negros bizarros. Sua boca enorme ostentava um sorriso aterrador. E tudo escureceu.
Um viciado em crise de abstinência que passava ali por perto percebeu o sacolejar do carro parado à beira da estrada. Pensou consigo mesmo na sorte daqueles jovens que lá dentro provavelmente estariam no mais quente dos amassos, talvez nus no mais intenso prazer. Um prato cheio para um assalto, porém, tão logo se aproximou do veículo, um uivo ensurdecedor e demoníaco assolou seus ouvidos e, sem pensar duas vezes, saiu em disparada para o nada tamanho era o horror da situação. Naquele momento o viciado sabia que seus dias estavam contados.