Imersão Cibernética

A porta pressurizada abriu e Sonne entrou correndo. As escadas de suspensão sacudiam conforme ele pisava, forte, pulando os degraus. Jogou a mochila em cima da cama e ouviu a voz da mãe soando pelo alto-falante acoplado a parede.

– Garoto, vai comer agora?

– Manda em pílula. Não tenho tempo para mastigar nada.

Trocou as roupas que usava por um macacão prateado, fabricado com um nanomaterial especialmente desenvolvido para imersões cibernéticas, e ligou o retrotransmissor de projeção. O canal de notícias se materializou no telão. Sonne continuou seus afazeres enquanto os repórteres do noticiário conversavam.

“– Há uma grande possibilidade de que isso seja uma nova forma de ataque terrorista. As práticas dos biohackers estão cada vez mais aperfeiçoadas no que diz respeito a infecção cyberneural.

– Mas estamos falando de uma infecção sem precedentes – o segundo repórter falou, pegando um capacete em cima de uma pequena mesa que flutuava ao seu lado. – Esse é um capacete de realidade aumentada, o standard do mercado. A capacidade de projeção é pouco menor do que os modelos Deluxe, mas nem mesmo esse escapa do cruzader.

– E pelo visto já tem até nome – riu o primeiro repórter.

– Sim, esse é o nome que circula pelas redes de interação mundial...”

O rapaz, aficionado em uma placa de controle do lado oposto da tela, não prestava a mínima atenção no que saia dos alto-falantes. Ao seu lado, uma abertura na parede criou uma bandeja, derrubando uma pílula em seguida. Ele pegou e engoliu a seco.

“– Então, como você pode ver na tela, o usuário consegue se conectar perfeitamente. A renderização não é afetada em nada, permitindo uma exploração de mundo normal.

– Realmente, não consigo notar qualquer diferença no ambiente. No entanto, não vejo nenhum outro usuário no campo de visão.

– Exatamente. O vírus trabalha isolando a sua rede em uma hospedagem particular, que pula de servidor a cada segundo, parasitando em networks espalhadas pela confederação. Ele cria um ambiente exatamente igual a sua configuração de projeção, e transforma a sua realidade em...”

No fundo do quarto, uma câmara de suspensão preenchia-se com um líquido verde. Movimentava-se a cada instante, criando pequenas ondas que grudavam nas laterais do metal, e se soltavam no instante seguinte. Sonne aproximou-se e passou a mão, sentindo a viscosidade. Parou por alguns segundos, conferindo mentalmente se a textura era a ideal, e por fim concluiu que não. Em cima de uma prateleira, um pequeno orbe repousava. Ele o pegou e jogou dentro da gosma. Em segundos, a esfera de metal se dissolveu, engrossando o conteúdo da câmara. Logo em seguida, uma mensagem soou pelo alto falante do quarto.

“Você tem uma atualização disponível”

Ignorou.

Naquele instante, a pílula de nutrição começava a fazer efeito. O gosto de ovelha assada em molho de nozes tomou conta da língua, aprazando a sensação de queimação estomacal, que se dissipava aos poucos. Aprovou o gosto, e pegou o copo de água que se encontrava em cima de uma escrivaninha. Parado, ele estava vazio, mas ao toque da mão, uma pequena borracha surgiu do suporte da lâmpada, despejando o conteúdo no recipiente. Sonne tomou de uma só vez. Seu capacete o esperava em cima da cama.

“– É exatamente isso mesmo que você está vendo. O vírus se materializa através das pontes neurais, e transforma os dados em uma substância sólida, com a própria matéria cerebral, causando alucinações e perda de função motora.

– Como diz a literatura do século 21: Você se torna um zumbi.

– Isso mesmo. No entanto...”

Sentado na câmara, o líquido que aderia ao traje se ligava a pele, causando um arrepio agradável. Ele colocou o capacete, deitou-se, até a gosma cobrir seu corpo por completo, e fechou os olhos. Em sua frente, os seguintes dizeres surgiram, à deriva em uma rede inexistente.

“Aperte o play para iniciar a imersão”

Seus dedos percorreram o nada e clicaram o vazio, e a partir dali o mundo se fez a sua frente.

Do lado de fora, o noticiário ainda se fazia ouvir.

“– Entendeu como é genial e assustador?

– Mas também não é para menos. Alucinações em realidade virtual podem ser uma experiência muito desconfortável. Tratando-se de um ataque de ativistas não duvido que seja, no mínimo, duas vezes mais assustador...”

Pixels se aglomeravam e criavam prédios gigantescos. Estendiam-se até o horizonte e mapeavam as construções em linhas, para em seguida concretizarem o ambiente virtual. Uma cúpula renderizada encimou a cabeça de Sonne e se transformou em noite. No céu noturno, a lua brilhava gigantesca, com nuvens esparsas navegando à deriva. As ruas escuras e desertas preenchiam-se com a fumaça que serpenteava pelos bueiros, misturando-se com a garoa fina que caia. Chover em noite de lua cheia era uma das vantagens daquela versão do software.

A princípio, nada parecia diferente para ele. O cabelo em Highspikes estava alinhado, colorido de azul para combinar com os óculos de aperfeiçoamento sensorial. A calça e a jaqueta de couro reluziam no brilho da luz. Tudo estava nos conformes.

Ele vadiou por alguns metros, com a marra montada em seu andar de PunKSelvagem (um grupo seleto do qual fazia parte), mas não encontrou ninguém. Os bares abertos, as luzes dos prédios ligadas e os sons de carros ao longe, não compatibilizavam com a situação que via. Ativou a visão infravermelha dos óculos e vasculhou o perímetro. Dentro dos prédios, não encontrou nenhum sinal de calor. Perscrutou de um lado ao outro, até parar o olhar em uma silhueta vermelha no beco próximo.

Caminhou até a rua, e com a proximidade, percebeu se tratar de uma mulher. Retirou os óculos e ameaçou uma pergunta, quando deu de cara com latas de lixo empilhadas e abarrotadas. Meteu as mãos nas sacolas e as espalhou, buscando encontrar alguma coisa, mas em vão. Escutou o som de uma lata caindo, e olhou para trás. A sombra de um gato cruzava pela parede, saltando da mureta para trás do prédio.

“– Deixe-me ver se entendi direito. As coisas que acontecem na realidade virtual tornam-se reais quando o usuário é afetado pelo vírus?

– Um pouco mais complicado do que isso. A propriedade ativa do parasita desabilita as funções responsáveis pelo corpo, transformando-o em um zumbi, como você mesmo disse...”

As nuvens esparsas que preenchiam o céu, agora começavam a se avolumar, cobrindo a cidade com uma névoa fria, quase onírica.

Sonne parou e relaxou. A adrenalina do dia ainda corria em suas veias. Provavelmente algum arquivo corrompido no sistema causou o isolamento de rede, e mesmo materializando as configurações de cenário, o servidor não pode se conectar com a masterNet., criando uma convergência na deslocação. Só precisava se desconectar e encontrar o arquivo, para então restaurá-lo e voltar online. O tempo perdido ali era precioso, pois ainda precisava correr para o embate que aconteceria naquela noite. Estava esperando por sua vez há semanas. Perder a oportunidade de subir de patente não era uma opção.

Voltou para rua principal, olhando para baixo e desenterrando o disjuntor do pescoço, quando ouviu pessoas conversando a alguns metros. Um farol de carro brilhou em sua direção, e assustado, ele se jogou para o lado. Caiu na calçada bruscamente, batendo com o joelho em um meio-fio. Sentou-se, esperando que alguém viesse ajudá-lo, mas quando olhou para cima, a rua estava vazia novamente.

– Oi.

Uma voz infantil soou vindo do beco do qual ele acabara de sair. Uma menina, com feições suaves e um cabelo loiro caindo em franja sobre seus olhos, sorria para ele.

- Oi – ele respondeu, ainda sentindo o incômodo no joelho. Diferentemente das outras vezes, agora pôde sentir a dor. Certamente havia algo de errado com seu imersor. – Quem é você?

– Eu sou Nina – respondeu a garotinha, abrindo ainda mais o sorriso. Trazia um pequeno ursinho nas mãos. – Quem é você?

– Eu sou Sonne – levantou-se e se dirigiu em direção à pequena – o que você está fazendo sozinha aqui? – Chegou perto dela e agachou, tomando o ursinho em mãos. – há tempo que não vejo um desses.

– É, eu ganhei da minha mãe. Ela me disse que isso é muito bom para esconder coisas.

– É mesmo? – Sorriu, e apesar de estar perdendo tempo, a pequenina havia lhe chamado a atenção – Que tipo de coisas?

– Todo tipo de coisas – ela tomou a pelúcia dele, abriu o zíper e enfiou as mãos dentro da abertura. Algodão vazou pelas laterais, caindo no chão. – Você gosta de gatos?

– Claro. Eu tenho um em casa.

– E como ele é? – Ela ainda mantinha a mão dentro do urso, mexendo-a de um lado para outro.

– Ele é rajado de laranja e preto. Parece um daqueles antigos animais.

– Um tigre? Eu sei como é. Já vi em um informativo. Sabia que posso guardar coisas de gato aqui dentro do meu urso?

– É mesmo? Tipo novelos de lã?

– Isso também – falava enquanto retirava a mão de dentro da abertura, puxando uma massa alaranjada banhada em líquido vermelho. – Mas gosto mais de guardar os próprios gatinhos.

Jogou o gato morto em cima de Sonne, e ele se espantou, dando um pulo para trás. Olhou para a garota, e viu os olhos dela esticarem, acompanhando a boca que esgarçava em um sorriso anormal, repleto de dentes tortos e músculos repuxados. A menina ficou de quatro, e seus membros se esticaram enquanto ela subia no prédio, cantarolando com uma voz grossa e sombria.

– Um gatinho, um gatinho. Acho que vi um gatinho. Ele é preto e fofinho. Não é lindo o meu gatinho?

Adentrou em uma janela escancarada e sumiu. Os olhos de Sonne estavam tão arregalados quanto os do monstro que se materializou a sua frente. Fitou o chão, procurando o corpo que havia sido lançado em cima de si, e só encontrou os panfletos pisoteados decorando a calçada.

– Isso deve ser alguma brincadeira de mal gosto do Splinter – balbuciou enquanto voltava a procurar o botão de interrupção. Seu coração palpitava como o de um cavalo, bombeando o sangue para a cabeça e liberando aquela sensação amedrontadora. A mão tremendo não conseguia abrir a carne que cobria o pequeno disjuntor. Tentou com a outra e obteve o mesmo resultado. Um arrepio que viajou através da espinha como uma faca gélida, o fez olha para cima. A visão que teve fez seu corpo paralisar.

Na janela do prédio, olhos de predador o miravam, acompanhados do esgarçar de dentes. A menina brincava, fazendo sinais com a mão e falando baixinho.

– Vou te pegar, gatinho.

“– Pois bem, então o próprio infectado se autoflagela, imaginando que o ataque na imersão é real.

– Exato. Os cientistas da G-COrps vêm trabalhado em uma solução para detecção deste tipo de Malware, mas ainda não obtiveram qualquer tipo de avanço nessa área. No entanto, após excessivos testes com inteligência artificial, conseguiram criar um bloqueio...”

O terror instalado dissipou-se após alguns segundos, permitindo que Sonne corresse. Disparou pela principal e virou na Avenida da Música. Uma multidão de pessoas se aglomeravam na rua, ouvindo sons psicodélicos e riffs de guitarra. A cacofonia de gêneros, que só era possível ali, mostrou-se acalentadora. O alívio foi imediato.

Um casal de punks vinha em sua direção, e ele os abordou.

– Ei, por favor, vocês poderiam... – colocou a mão no ombro do estranho com uma calça apertada e um colete aberto, e o atravessou.

Em seguida, ouviu o homem falar.

– Senti um puta arrepio agora – mostrava o braço para a garota que o acompanhava.

– Deve ser algum fantasma cibernético ou coisa do tipo – ela respondeu, descontraída.

O medo, que antes já se acumulava em grandes quantidades, recebeu uma carga extra quando ele se viu atravessando outro corpo. Olhou para as próprias mãos, ainda sem reação, e quando voltou a procurar o casal, toda a movimentação havia sumido. Os prédios agora estavam apagados e entregues a escuridão que se aglomerava, invadindo cada metro quadrado que tocava.

A tênue iluminação lunar mal demarcava o brilho do asfalto.

Da outra rua, a canção de ninar macabra parecia cada vez mais próxima, e Sonne, ainda estupefato com a situação, continuo a correr. Os dedos, ainda mais irregulares, tentavam alcançar o botão, mas nunca com sucesso. Suas pernas já começavam a doer com a corrida.

“– Essa atualização responsável pela modificação do firewall, já está disponível?

– Sim, desde o Standard, até o Deluxe, todos os aparelhos receberam notificações de atualização.

– Nesse caso, é bom que o retroespectador ligado no programa esteja ciente de que o reforço das defesas de software é imprescindível...”

A fadiga tomou conta de seu corpo, e ele despencou, deitando no asfalto gelado. A lua havia sumido, encoberta pelas nuvens, e um vento assolador soprava. Assoviava pelo nada e produzia uma melodia bela, como uma flauta de bambu em sintonia com sons da floresta.

Ao longe, a canção se avolumava, invadindo o espaço e se aproximando. Os passos secos da menina ecoavam pelo ar, raspando o chão a cada pisada. Sonne fechou os olhos e esperou. As mãos agora já não obedeciam aos seus comandos, e seu corpo paralisado estava indefeso. Nem mesmo seus olhos o respondiam.

– Gatinho, gatinho! Aonde se escondeu? Não fujas de mim, porque sabes que és... – O rosto demoníaco cobriu sua visão, ainda esgarçado. Os fios de cabelo loiro ensebado se dependuravam da cabeça escrota, repleta de marcas estranhas e deformações. E a fera concluiu – ... meau.

Abocanhou o rosto da vítima, dilacerando as maçãs do rosto e fazendo saltar um dos olhos.

Na câmara, as mãos de Sonne rasgavam a própria face, enquanto seu corpo se debatia em um silêncio mortal. Pancadas ocasionais eram ouvidas pelo lado de fora, mas nada que pudesse chamar atenção. Após segundos agonizantes de autopunição, o (agora) cadáver que se debatia parou de se mexer. Rasgos aleatórios enfeitavam a carne aqui e acolá, acompanhando os buracos negros no lugar dos olhos.

Do lado de fora, a gosma verde começava a vazar pelas bordas, tingida por um líquido bordô.

No retrotransmissor, os repórteres encerravam a matéria.

“– Por hoje é só, retroespectadores. E lembrem-se: Para viver, atualizem-se! Tenham uma boa noite.”

Tema: Cyberpunk, Fantasmas, Realidade Virtual

Jefferson Lemos
Enviado por Jefferson Lemos em 21/05/2015
Reeditado em 04/07/2015
Código do texto: T5249185
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