O Véu de Isis
Por: Lee Rodrigues
Por: Lee Rodrigues
“Como o amor, como a morte,
a verdade precisa dos véus da mentira.”
Claude Aveline.
a verdade precisa dos véus da mentira.”
Claude Aveline.
Quando temos a certeza de quem somos, não afligimos nosso semelhante com segregações, nem preenchemos o vazio de uma ideologia distorcida com a seiva da vida alheia, e nós tínhamos convicção de quem éramos. A fé sempre foi o adorno mais precioso da nossa existência, e por pensarmos diferente, nos isolamos, não afrontávamos outras crenças, nem disseminávamos a nossa, porque a única forma de ser um Yazidi é nascendo Yazidi.
Éramos uma grande família, gratos por ter o suficiente para viver, compartilhávamos o pão com a singeleza do coração, até que numa noite, o vilarejo fora acordado por roncos de motor de carros e tiros, não nos arrumamos, nem levamos nada nos braços além dos nossos filhos que assustados choravam em coro, saímos rápido, mas não o suficiente para não sermos alcançados por militantes Jihadistas.
Sob suas miras, observamos impotentes nossos pertences sendo repartido como despojo entre os soldados, enquanto pás cavavam um extenso buraco, tremia imaginando como usariam aquela vala, alguns, levados pelo desespero ensaiaram uma fuga engatinhando na penumbra, não creio que tenham conseguido, pois ouvimos gritos e novos disparos.
Nos deram dois dias para negarmos a tudo o que acreditávamos, e nos convertêssemos a versão deles do islamismo, estávamos encurralados, sentados no chão, tensos, afligidos pelo calor, com armas apontadas para nossas cabeças, não nos atrevíamos sequer a levantar o olhar, nossa visão se resumia aos movimentos de canos de aço e coturnos pretos.
Meu povo já tinha aberto mão de tudo o que a cidade podia oferecer, nos resguardamos na vida limitada dos campos, depois nos refugiamos nas montanhas áridas para vivermos em comunhão com a nossa fé, a nossa identidade, se a negássemos, negaríamos a nós mesmos.
O sol despontou pesado anunciando o fim do prazo, antes se tardasse, a sombra seria menos hedionda que a sentença que já havia sido deliberada muito antes de subirem as montanhas do Sinjar.
Segurava firme a mão do meu esposo, e aquela foi a última vez que meus olhos cruzaram os dele. Todos os homens da nossa aldeia foram arrancados dos nossos braços, do recém-nascido ao ancião, foram todos arrastados para o interior da cova rasa, nossos gritos eram levados pelo vento em quilômetros de terras desertas, metralhadoras cuspiam em corpos que se debatiam na vala, alguns ainda estavam vivos quando a terra terminava de cobri-los. Se soubesse o que viria, teria me lançado naquele buraco antes de todos. Teria desejado cada pá de terra.
Como ovelhas levadas ao matadouro, seguimos algumas horas de estrada empoeirada, até chegarmos a uma das casas saqueadas ao norte de Mossul, lá fomos examinadas e constrangidas, nossa vergonha foi desnudada num rito humilhante, as virgens foram negociadas ali mesmo, na nossa frente, víamos dinheiro passar de mão, não muito, poucas cédulas pagavam nossa dignidade.
Escapei dessa negociação sexual por não ser virgem, a Sharia, lei deles, orienta que devem esperar o tempo suficiente para ter a certeza de não estarmos grávidas, o que não diminuiu meu temor. Passado algumas semanas, saímos daquela casa, nos levaram para um lugar maior, uma prisão em Tal Afar, essa tinha energia e água encanada, mais isso não amenizava a hostilidade do lugar. Ainda acorrentadas uma na outra, nos fotografaram segurando placas de papel com os preços que seriam cobrados por nosso serviços, me senti um tapete a ser leiloado, uma mercadoria.
Conheci outras mulheres em situação semelhante a minha, com pesados desabafos de seguidos estupros, vivíamos sem expectativas para o dia seguinte, na verdade, sempre esperávamos o pior, pouca diferença fazia se era dia ou noite, naquele lugar abafado, onde a claridade lutava para invadir, qualquer hora era o turno das trevas, o tempo passava arrastado, e já não sabíamos em que mês estávamos, mudaram o colorido das nossas vestes para burcas negras, como se fizesse alguma diferença, não tínhamos mais forças para lutar, a nossa força era para tentar nos manter vivas, silenciosamente vegetávamos. Muitas foram escolhidas e não voltaram mais, outras retornavam tão machucadas que não resistiam, morriam ao nosso lado, sem nenhum tipo de cuidado, apenas eram descartadas, mas o lugar nunca esvaziava, sempre chegava mais. Nessa guerra somos um nada, o mundo não nos conhece, não tem quem nos procure, lute por nós, simplesmente não existimos.
Fui dada algumas vezes como recompensa para soldados do ISIS em relações extremamente dolorosas e fétidas, na primeira vez, eu ainda achava que era alguém, ofereci resistência, e o cabo de uma arma me levou a visão do olho esquerdo, com o tempo, aprendi a bloquear aqueles momentos, apenas minha carne estava ali, como ração para animais, minha mente se perdia nos desenhos que as rachaduras faziam nas paredes.
As dores não me abandonavam, nem as físicas, nem as da alma, e não houve um único dia que a saudade da minha gente não me maltratasse, naquela estadia, só tive a sensação de alivio uma vez, e ainda sim, enganosa, foi no dia em que uma senhora de corpo farto, livre de algemas, entrou no corredor de celas, aquela presença reacendeu uma fagulha de esperança me fazendo acreditar que alguém estava ali em nosso socorro, me levantei rapidamente estendendo a mão entre as grades para chamar a sua atenção, ela apontava para algumas de nós e os cadeados eram de pronto abertos, nos conduziram a uma sala ampla no andar superior, bem iluminada, com um forte cheiro de álcool e muitas macas enfileiradas, sem colchão, sem lençol cobrindo, apenas o metal frio, como balcão de açougue; ficamos sem entender o porquê daquilo, mas no fundo já tínhamos abandonado a ilusão da liberdade.
A minha mente se perturbava na construção de obscenidades que pretenderiam fazer, fui a primeira a ser empurrada para cima da maca, enquanto minhas vestes eram arrancadas e as pernas forçadas a ficarem abertas; o suor escorria frio quando aquela senhora abriu uma maleta preta, tirando dela uma embalagem com varias navalhas.
Implorava para não ser machucada, ela não falava, não se dirigia a mim, se comunicava com os soldados apenas por gestos, fez sinal para que me silenciassem, e rapidamente recebi um retalho de pano na boca, enquanto já acomodada entre minhas pernas, agressivamente depilava minha genitália.
O xador negro deixava a mostra parte de um rosto desprovido de compaixão, possuidor de um par de mãos que hostilmente não apenas mutilava meu corpo, mas golpeava meu espírito. Sem anestesia, meu prepúcio clitoriano fora extirpado, a minha garganta se abriu num grito abafado por uma boca tampada, minhas carnes tremiam numa dor esfuziante, o sangue escorria abundante empapando minhas costas, apertava minhas mãos travando os pulsos na tentativa de me desvencilhas, lutei ferozmente, mas um dos soldados sentou-se em meu peito, me imobilizando com seu peso, era impossível escapar da força dos preceitos religiosos do califado de Maomé.
O corte firme seguia o contorno dos grandes e pequenos lábios, quando algoz, a lamina afundava na carne, eu pedia a morte, meu coração batia como casco de cavalo arredio, uma dor aguda me esmagava, o ar não enchia meus pulmões, meus dentes travaram quando a agulha começou a coser o flagelo do que restava. Estava exausta quando me deixaram e seguiram para mutilar a próxima, tateei a mão entre minhas pernas molhadas e além dos pontos grosseiros, tudo o que encontrei foi um orifício pequeno perto do ânus.
Meu corpo se encolheu numa agonia tão profunda que parecia que meu estomago havia sido socado, minha boca batia em preces a Melek, mas minha voz não chegava aos céus, acredito que não tenha passado nem do teto daquela construção inacabada.
O sono foi me cobrindo de mansinho, acompanhando o sangue que fluía de meu corpo e deslizava suavemente na lateral da maca antes de tocar o chão. O som das gotas foi me acalmando pouco a pouco, era o som de chaves girando, abrindo as grades do meu corpo, me permitindo ir além dos muros de ISIS.
Depois daquele dia nunca mais voltei para mim, me escondi nas asas do Pavão, porque o mal não está no anjo caído e sim dentro do homem.
Éramos uma grande família, gratos por ter o suficiente para viver, compartilhávamos o pão com a singeleza do coração, até que numa noite, o vilarejo fora acordado por roncos de motor de carros e tiros, não nos arrumamos, nem levamos nada nos braços além dos nossos filhos que assustados choravam em coro, saímos rápido, mas não o suficiente para não sermos alcançados por militantes Jihadistas.
Sob suas miras, observamos impotentes nossos pertences sendo repartido como despojo entre os soldados, enquanto pás cavavam um extenso buraco, tremia imaginando como usariam aquela vala, alguns, levados pelo desespero ensaiaram uma fuga engatinhando na penumbra, não creio que tenham conseguido, pois ouvimos gritos e novos disparos.
Nos deram dois dias para negarmos a tudo o que acreditávamos, e nos convertêssemos a versão deles do islamismo, estávamos encurralados, sentados no chão, tensos, afligidos pelo calor, com armas apontadas para nossas cabeças, não nos atrevíamos sequer a levantar o olhar, nossa visão se resumia aos movimentos de canos de aço e coturnos pretos.
Meu povo já tinha aberto mão de tudo o que a cidade podia oferecer, nos resguardamos na vida limitada dos campos, depois nos refugiamos nas montanhas áridas para vivermos em comunhão com a nossa fé, a nossa identidade, se a negássemos, negaríamos a nós mesmos.
O sol despontou pesado anunciando o fim do prazo, antes se tardasse, a sombra seria menos hedionda que a sentença que já havia sido deliberada muito antes de subirem as montanhas do Sinjar.
Segurava firme a mão do meu esposo, e aquela foi a última vez que meus olhos cruzaram os dele. Todos os homens da nossa aldeia foram arrancados dos nossos braços, do recém-nascido ao ancião, foram todos arrastados para o interior da cova rasa, nossos gritos eram levados pelo vento em quilômetros de terras desertas, metralhadoras cuspiam em corpos que se debatiam na vala, alguns ainda estavam vivos quando a terra terminava de cobri-los. Se soubesse o que viria, teria me lançado naquele buraco antes de todos. Teria desejado cada pá de terra.
Como ovelhas levadas ao matadouro, seguimos algumas horas de estrada empoeirada, até chegarmos a uma das casas saqueadas ao norte de Mossul, lá fomos examinadas e constrangidas, nossa vergonha foi desnudada num rito humilhante, as virgens foram negociadas ali mesmo, na nossa frente, víamos dinheiro passar de mão, não muito, poucas cédulas pagavam nossa dignidade.
Escapei dessa negociação sexual por não ser virgem, a Sharia, lei deles, orienta que devem esperar o tempo suficiente para ter a certeza de não estarmos grávidas, o que não diminuiu meu temor. Passado algumas semanas, saímos daquela casa, nos levaram para um lugar maior, uma prisão em Tal Afar, essa tinha energia e água encanada, mais isso não amenizava a hostilidade do lugar. Ainda acorrentadas uma na outra, nos fotografaram segurando placas de papel com os preços que seriam cobrados por nosso serviços, me senti um tapete a ser leiloado, uma mercadoria.
Conheci outras mulheres em situação semelhante a minha, com pesados desabafos de seguidos estupros, vivíamos sem expectativas para o dia seguinte, na verdade, sempre esperávamos o pior, pouca diferença fazia se era dia ou noite, naquele lugar abafado, onde a claridade lutava para invadir, qualquer hora era o turno das trevas, o tempo passava arrastado, e já não sabíamos em que mês estávamos, mudaram o colorido das nossas vestes para burcas negras, como se fizesse alguma diferença, não tínhamos mais forças para lutar, a nossa força era para tentar nos manter vivas, silenciosamente vegetávamos. Muitas foram escolhidas e não voltaram mais, outras retornavam tão machucadas que não resistiam, morriam ao nosso lado, sem nenhum tipo de cuidado, apenas eram descartadas, mas o lugar nunca esvaziava, sempre chegava mais. Nessa guerra somos um nada, o mundo não nos conhece, não tem quem nos procure, lute por nós, simplesmente não existimos.
Fui dada algumas vezes como recompensa para soldados do ISIS em relações extremamente dolorosas e fétidas, na primeira vez, eu ainda achava que era alguém, ofereci resistência, e o cabo de uma arma me levou a visão do olho esquerdo, com o tempo, aprendi a bloquear aqueles momentos, apenas minha carne estava ali, como ração para animais, minha mente se perdia nos desenhos que as rachaduras faziam nas paredes.
As dores não me abandonavam, nem as físicas, nem as da alma, e não houve um único dia que a saudade da minha gente não me maltratasse, naquela estadia, só tive a sensação de alivio uma vez, e ainda sim, enganosa, foi no dia em que uma senhora de corpo farto, livre de algemas, entrou no corredor de celas, aquela presença reacendeu uma fagulha de esperança me fazendo acreditar que alguém estava ali em nosso socorro, me levantei rapidamente estendendo a mão entre as grades para chamar a sua atenção, ela apontava para algumas de nós e os cadeados eram de pronto abertos, nos conduziram a uma sala ampla no andar superior, bem iluminada, com um forte cheiro de álcool e muitas macas enfileiradas, sem colchão, sem lençol cobrindo, apenas o metal frio, como balcão de açougue; ficamos sem entender o porquê daquilo, mas no fundo já tínhamos abandonado a ilusão da liberdade.
A minha mente se perturbava na construção de obscenidades que pretenderiam fazer, fui a primeira a ser empurrada para cima da maca, enquanto minhas vestes eram arrancadas e as pernas forçadas a ficarem abertas; o suor escorria frio quando aquela senhora abriu uma maleta preta, tirando dela uma embalagem com varias navalhas.
Implorava para não ser machucada, ela não falava, não se dirigia a mim, se comunicava com os soldados apenas por gestos, fez sinal para que me silenciassem, e rapidamente recebi um retalho de pano na boca, enquanto já acomodada entre minhas pernas, agressivamente depilava minha genitália.
O xador negro deixava a mostra parte de um rosto desprovido de compaixão, possuidor de um par de mãos que hostilmente não apenas mutilava meu corpo, mas golpeava meu espírito. Sem anestesia, meu prepúcio clitoriano fora extirpado, a minha garganta se abriu num grito abafado por uma boca tampada, minhas carnes tremiam numa dor esfuziante, o sangue escorria abundante empapando minhas costas, apertava minhas mãos travando os pulsos na tentativa de me desvencilhas, lutei ferozmente, mas um dos soldados sentou-se em meu peito, me imobilizando com seu peso, era impossível escapar da força dos preceitos religiosos do califado de Maomé.
O corte firme seguia o contorno dos grandes e pequenos lábios, quando algoz, a lamina afundava na carne, eu pedia a morte, meu coração batia como casco de cavalo arredio, uma dor aguda me esmagava, o ar não enchia meus pulmões, meus dentes travaram quando a agulha começou a coser o flagelo do que restava. Estava exausta quando me deixaram e seguiram para mutilar a próxima, tateei a mão entre minhas pernas molhadas e além dos pontos grosseiros, tudo o que encontrei foi um orifício pequeno perto do ânus.
Meu corpo se encolheu numa agonia tão profunda que parecia que meu estomago havia sido socado, minha boca batia em preces a Melek, mas minha voz não chegava aos céus, acredito que não tenha passado nem do teto daquela construção inacabada.
O sono foi me cobrindo de mansinho, acompanhando o sangue que fluía de meu corpo e deslizava suavemente na lateral da maca antes de tocar o chão. O som das gotas foi me acalmando pouco a pouco, era o som de chaves girando, abrindo as grades do meu corpo, me permitindo ir além dos muros de ISIS.
Depois daquele dia nunca mais voltei para mim, me escondi nas asas do Pavão, porque o mal não está no anjo caído e sim dentro do homem.
Chico Xavier
Pelo espírito de Hanad Abdul.