Uma faca e um pedaço de corda
Quando ela abriu os olhos, soube que estava morta.
Viu seu próprio corpo esticado no chão, o sangue escorrendo da boca, as roupas resgadas deixando os seios a mostra. Haviam lhe violado, tirado sua dignidade e sua alma.
E eles ainda estavam lá, carniceiros atrás dos restos de uma caçada da qual ela era a presa. Riam como as hienas que eram, comemorando seu feito sortido. E mesmo morta, fria e branca como mármore, eles ainda a abusavam. Seria a maldade humana tão sem limites que não respeitavam nem a morte?
Sem ter para onde ir ficou ali mais um tempo, até que seus malfeitores se fartaram e foram embora. O silêncio daquela noite fria e enluarada tomava conta de tudo, até um grito rouco cortar a escuridão, sob a luz da Lua ela viu outra mulher, tão jovem quanto ela foi, tão inocente e segura de si mesma quanto ela ao andar sozinha por aquela cidade nefasta. A moça havia encontrado o corpo, logo a polícia e um bando de curiosos chegaram, tiravam fotos, cochichavam entre si, alguns mais curiosos chegavam mais perto, curvavam o pescoço para ver sua nudez escancarada. Como aquilo a enojava!
- Raquel! – alguém gritou abrindo espaço na multidão, e ela conhecia bem aquela voz – Filha, filha...
Já era demais, ela aguentava sofrer, mas não podia ver seu pai sofrer, não, não ele a quem amava tanto. Ah, se pudesse mais uma vez poder abraça-lo, beija-lo, dizer que sentia muito... não sabia do que sentia, mas sentia.
Como nunca, desejou não estar ali, desejou ir descansar, esquecer tudo aquilo, e orou em silêncio para que seu pai encontrasse a paz. Seu primeiro desejo foi atendido, o último, não tão cedo.
- Sinto muito senhor Jorge – foi o que disse o oficial da polícia no dia o enterro de Raquel – estamos trabalhando duro neste caso.
- Acredito no senhor oficial – disse o cansado Jorge – não duvido da sua competência, mas minha filha já é a quinta, a quinta moça estuprada e assassinada em dois meses! O senhor mesmo disse isso, até quando esses miseráveis continuarão a fazer essas barbaridades?
- Nós os pegaremos senhor Jorge.
- Espero que peguem oficial, mesmo que não o façam o destino desses homens não será bom.
- Como assim?
- Justiça oficial, justiça, só isso.
E se retirou dali, encurvado pelos anos, envelhecido por tantas perdas, primeiro a esposa, pouco depois de ganharem a filha Raquel, e agora ela, a própria filha, tirada do mundo de forma tão trágica.
O velho Jorge queria descansar, mas só faria isso depois de acertar algumas contas.
- Tem certeza que é o suficiente Jorge, apenas uma faca? – perguntou o dono da loja de ferragens detrás do balcão.
- Mas que o suficiente velho amigo – respondeu Jorge – as facas fazem um trabalho limpo e devagar, boas para o tipo de serviço que tenho para elas. Agora só me dê a corda.
O homem detrás do balcão passou a Jorge um rolo de corda de cânhamo.
- Quanto lhe devo?
- Não me deve nada Jorge, o que vai fazer já vai pagar a nós todos. E não se preocupe, meia cidade está de olho. Se acontecer de novo você saberá antes da polícia.
Mesmo depois de mais de três meses passando cada noite dentro de seu apertado fusca Jorge não demonstrava desânimo, naquele período mais três moças haviam morrido, o pânico já se espalhava pela cidade, os criminosos continuavam soltos, a justiça ainda não havia sido feita. Mas ele persistia, nem o frio da noite, que fazia doer seus velhos ossos, o desencorajava.
Acendeu mais um cigarro, tossiu forte, sinal do enfisema que já tomava conta de seu pulmão, prelúdio de uma morte lenta e anunciada. E foi naquela noite que ele os viu.
Primeiro viu a menina, talvez tivesse uns 18 a 20 anos, quase a idade de sua Raquel, andava depressa, mesmo a distância via-se o medo em seu rosto. Poucas moças se aventuravam sozinhas pelas ruas da cidade depois daquela onda de ataques. Minutos depois eles surgiram, eram três, bem vestidos, bonitos, cara de bons moços. Mas havia algo estranho aí, eles claramente seguiam a moça de longe.
Depois de várias pistas falsas Jorge achou por bem não desperdiçar aquela.
Saiu do carro, a faca em uma mão, o rolo de corda em outra, e seguiu atrás do trio e da menina.
Não demorou muito ouviu um grito abafado e risos. Dessa vez os achara!
Acelerando o passo Jorge chegou a tempo de ver os homens rasgarem a roupa da moça e a deixarem nua em pelo. Imediatamente se lembrou de Raquel, havia encontrado sua filha assim, nua como um bebê, mas com a inocência roubada.
A moça tinha a boca tapada por um dos criminosos, outro passava as mãos por suas partes intimas enquanto o terceiro já se despia.
Não esperou mais, Jorge correu como a muito não fazia, correu até seus pulmões doerem.
Eles foram pegos de surpresa. A faca cortou o ar e a carne, o sangue escorreu, aquele que se despiu tombou urrando de dor.
Os outros olharam sobressaltados, nunca haviam sido pegos e a supressa em seus olhos era grande.
Então viram que o homem que os enfrentava era um velho, apenas um velho com uma faca na mão, e facas eles também tinham.
Rindo, um dos bandidos avançou até Jorge, a agilidade da juventude era um adversário difícil para ele.
- Devia ter ficado em casa vendo televisão vovô! – falou o criminoso enquanto avançava.
Jorge recebeu o primeiro golpe no braço. Seu sangue escorreu e sua fúria cresceu. O jovem era ágil sim, mas era fraco e covarde, se aproveitando disso ele atacou, gritando como uma fera, tomado pela raiva e pelas lembranças de Raquel. Sua faca vibrou e tingiu o preto da noite com o vermelho do sangue do rapaz que via seu pulso cortado.
O terceiro bandido, já tomado pelo medo, mijava nas calças enquanto soltava a mulher, esta chorosa e agradecida por alguém tê-la salvo.
- Calma aí velho, calma aí, não me machuca não – chorava o marginal.
Mas Jorge fez que não ouviu, avançou, esfaqueou o sujeito no estômago, agora estavam todos ali, na sua mão, nenhum morto, mas ridicularizados.
- Menina – disse ele olhando pra moça – some daqui, vai pra casa, desses cuido eu.
- Obrigada – disse a jovem ainda chorando, e antes de sair ainda cuspiu e chutou a cara daquele que lhe tapou a boca.
- Agora vamos cuidar de vocês.
Assim aconteceu. Pela manhã os três foram encontrados, enforcados, corpos pendurados num poste de uma esquina qualquer, soube-se depois que eram filhos de figuras importantes da cidade, jovens honestos, estudiosos, trabalhadores e sem antecedentes criminais. A polícia jurou que pegaria o autor daquela barbárie, já não bastasse os estupros agora tinham um assassino a solta.
Em sua casa Jorge tentava descansar, entretanto uma terrível dor no peito o assolava, o esforço da noite anterior fora monumental para um homem do sua idade. Um cansaço nunca sentido antes tomava conta dele, a tosse, causada pelo enfisema em desenvolvimento, era cada vez pior.
Então ele adormeceu. E acordou.
Quando abriu os olhos viu uma sombra parada a sua frente, e atrás da sombra uma luz ofuscante.
- Pelo que fez, deveria leva-lo comigo hoje – disse a sombra – todavia me entregou três almas e, além disso, um anjo intercedeu por você. Por isso o deixarei.
A sombra sumiu, ficou só a luz, e ela aumentava, se aproximava.
Aos poucos ele reconheceu o anjo, chorou e riu ao mesmo tempo. Estendeu as mãos e esperou que ela viesse.
- Venha pai – disse Raquel – é hora de descansar.
O corpo de Jorge foi encontrado por seus amigos e foi enterrado no mesmo cemitério que sua filha, e no mesmo dia dos três rapazes.
Depois do enterro, quando o cemitério estava vazio, uma jovem veio e deixou flores em sua sepultura.
- Obrigado senhor – disse ela – obrigado por me salvar. Descanse em paz, onde quer que esteja.