O Peso do Mundo
O sol do meio-dia resplandecia nas calçadas sulcadas rumo à Central do Brasil, enquanto Fernando caminhava descontraído ouvindo uma melódica música clássica. Não que fosse um adepto do classicismo, mas havia lido em uma revista que esse tipo de melodia aumentava a capacidade cognitiva. Não era, nem de longe, uma pessoa cética. O calor que o fustigava fazia a camisa aderir ao corpo, abrindo poros até nas unhas. As monções de janeiro haviam chegado com força total, e todo dia após uma tempestade de verão, as temperaturas subiam como um alvo sendo atingido por uma marreta solar.
Durante o dia, o mormaço constante castigava sem misericórdia, incapacitando BTUs inferiores e deixando órfãos os filhos que necessitavam de seu pai “ventilador”. Durante a noite, os resquícios ainda perduravam no ar seco que cobria como uma crosta, impedindo que algum vento atrevido circulasse trazendo qualquer tipo de alívio. O conforto e a satisfação era algo para poucos no Rio de Janeiro.
Mas isso já estava se tornando rotina para Fernando. Ainda se recuperando do ano que passara, seu novo emprego como assistente administrativo estava deslanchando bem. O mês já estava acabando e ainda não havia sido mandado embora. Para o bem ou para o mal, já era um bom começo. Divagava sobre a vida e sobre a placa de vídeo que precisava comprar, quando passou despreocupado em frente a um bar, e viu o noticiário anunciando uma emergência.
Retirou os fones do ouvido e se aproximou. Não sabia bem o porque, mas sentiu que era uma necessidade de ouvir o que tinham a dizer. A repórter já havia começado quando conseguiu escutar.
“...É aconselhável que todos mantenham-se em suas casas e aguardem até que a situação se estabilize. As evidências apontam que as temperaturas irão se elevar além do normal, e uma forte onda poderá ser sentida no momento do impacto.
Não há maiores informações sobre o acontecimento, apenas o aconselhamento estrito de que procurem se abrigar do sol e mantenham-se em ambiente fechado, de preferência com locais onde possam se segurar. Não durará mais do que alguns minutos...”
A transmissão foi interrompida no momento em que Fernando ouviu um baque. Era como se uma bolha de vácuo estivesse se preenchendo, criando a sensação do vazio escapando. A lojinha em que se encontrava contava com um pequeno telhado de amianto, então não pode sentir a temperatura que inflou em segundos. A única prova do acontecimento era observar as pessoas que gritavam e buscavam abrigo. O calor emanou do asfalto e fumaça subia da lataria dos carros.
E foi ai que o mundo perdeu o peso, e a gravidade já não exercia qualquer pressão.
Tudo que era possível flutuar, flutuou. Fernando sentiu-se desapegando, os pés saindo do chão e o corpo ascendendo. Agarrou-se, com toda força que podia, no mastro que segurava o telhado e sentiu suas pernas subindo até ficar de ponta cabeça. Nesse momento, ele já gritava. Mas seus gritos apenas se misturavam a cacofonia infernal criada pelas milhares de vozes que clamavam ao mesmo tempo, pedindo ajuda ou simplesmente entrando em desespero.
Olhou para a rua e viu uma infinidade de pessoas à deriva, subindo cada vez mais, clamando por socorro. Os carros, ônibus, motos e tudo o que estava solto também subiu. De soslaio, viu um grupo saltando da janela do ônibus, e se jogando em direção ao chão. Eles flutuaram levemente até tocar o solo, e logo após começaram a ascender novamente.
Fernando pensava no dia ordinário que vivia até aquele momento, e na coisa impossível que acontecera. Ao seu lado, um grupo de pessoas também se prendia aos mastros. Percebeu os olhares assustados e a completa falta de entendimento no que acontecia. E da mesma forma, pensou que os outros poderiam estar vendo o mesmo nele.
O temor se espalhava pelo ambiente e o sol castigava acima dos quarenta e cinco graus, quando a bolha pareceu esvaziar, e um silêncio fantasmagórico caiu sobre o mundo.
As pernas foram ganhando peso novamente, e Fernando sentiu a terra exercendo sua atração. Caiu batendo os pés no chão, e ouviu o primeiro corpo despencado.
Como chuva, as pessoas à deriva começaram a desabar, e uma inundação escarlate banhou os pavimentos.
Viu um homem cair estourando a cabeça no meio fio. Cérebro se espalhou para todos os lados, unindo-se com o sangue que escorria da mulher caída de bruços no pavimento. Seu rosto já não mais existia. Não demorou muito até um carro popular cair esmagando o que restava de ambos. Antes de fechar os olhos ainda pode ver uma garota descendo a toda velocidade, balançando os braços de forma inútil e caindo com as pernas no chão. Os ossos saltaram pelo joelho e as costas se esmagaram no asfalto quente.
Para ele, o dia ordinário poderia ser apenas mais um. Não aguentava mais ver as cenas que se sucediam em frente ao seu nariz, e ainda apertando os olhos, ouviu quando um corpo caiu ao seu lado, quebrando o telhado e se espatifando. Correu em busca de abrigo. Saltando corpos e com as mãos na cabeça, adiantou-se até uma árvore próxima e parou. Um grupo de pessoas se aglomerava por ali. Apertando-se e chorando, observavam a situação que se desenrolava. Fernando juntou-se a eles e tentou, com todas as suas forças, entender o que acontecia. Mas nada lhe vinha à cabeça.
No dia em Atlas se ausentou, o peso do mundo se foi, e uma chuva de sangue açoitou uma tarde qualquer de verão.