Dualidade
 
Escuridão.
O ponto de luz que surge convergindo para um buraco, rodopiando e deixando rastros. Olho para o espelho negro que reflete minha alma e tenho vergonha de encará-la. Talvez minha própria sujeira seja demais para mim. Ou talvez eu apenas despreze a mim mesmo. O lodo negro que cerca meu universo transborda e começa a sufocar. Sinto ar escapando dos pulmões, enquanto do outro lado um estranho gargalha de minha má sorte. Levanto o dedo em riste e meu elogio se perde nas bolhas criadas pelo afogamento.

Não queria ter dito nada demais, apenas “vá tomar no cu”. O suor escorrendo pela testa, a arritmia pulsando como um bumbo fora de ritmo e os olhos vidrados na penumbra denunciam o pesadelo. Acordei ofegante, mais uma vez. Os pensamentos em bola de neve descem montanha abaixo até atingir o alvo, e no caminho eu sou apenas uma árvore deitada pela força do impacto.
Cada dia que passa, sinto o corpo pesando. O choque das batidas tornando-se mais fortes, o sufoco daquela tonelada de neve me impedindo de respirar... Há beleza na morte por sufocamento? Não sei, assim como também não sei dizer se algum dia, alguém já morreu por asfixia causada pelo “eu” interior. Sinto aqueles dedos etéreos roçando a minha garganta sempre que me deito. O filho da puta não espera nem mesmo eu pegar no sono. Um dia fomos um só, mas o mundo nos fez tomar caminhos diferentes. Eu queria ser arquiteto, ele queria ser físico. Não víamos problemas em conviver com nossas diferenças, até o momento em que suas vontades pareceram mais importantes para ele do que as minhas.

Sim, é estranho, mas aconteceu.

Minha vida esmaeceu a medida que eu me decepcionava, enquanto nos recônditos mais profundos da alma, o desgraçado vivia alheio aos estímulos externos. Talvez seja essa a vantagem de ser-não-sendo-você. A falta de tato em relação ao que te cerca, acaba te deixando mais forte. Há tempo para sonhar e construir ideais. Há tempo para devaneios, sons e sabores. O cheiro fétido de boates que conduzem festas estranhas com gente esquisita. O sabor dos tóxicos inebriantes e do sexo em banheiros decadentes e cheio de histórias para contar. Há, ainda mais do que tudo, vantagem em ser um universo rodopiante, repleto de possibilidades. O maldito, lá dentro, escondido dos verdadeiros perigos do mundo real, pode fazer isso. Mas não eu.

Encarando o ventilador que roda no teto, tento agarrar o sono que escapa como areia pelos olhos. A ideia de um homem usando máscara e atirando um pó amarelo em minha cara, parece-me mais assustador do que reconfortante. Talvez eu não sido feito para dormir, e os pesadelos macabros e amedrontadores nada de ruim têm, estão apenas tentando me avisar sobre esse problema inerente. Mas... não sei, talvez seja melhor assim?

E o que seria melhor, afinal?

Isso é o sono falando, tecendo sua teia em minha boca e enrolando a língua em cada volta. Os olhos pesando, o som do vento tornando-se distante, acalentador. Sinto o corpo desaparecendo, flutuando em direção ao estranho sorridente. Ele passa por mim, acena elegantemente, e emerge.

Salta do meu corpo e flutua para fora. Meu eu-não-eu gosta de ver o mundo e sentir sua energia. Sai pelas ruas afora em busca do mundo, e do que ele pode oferecer. É um acalento pela não existência, diz ele. Mas não acredito em uma palavra do que diz. Suas viagens mais me parecem um prelúdio do futuro. Onde descansarei eternamente em uma mar de estrelas, enquanto ele viverá a vida que sempre quis. Boa sorte lidando com o mundo.

Seu universo colorido é muito mais interessante do que minha realidade monocromática, seu bastardo filho da puta.


Conto escrito em parceria com a Pétrya Bischoff.
Jefferson Lemos
Enviado por Jefferson Lemos em 14/02/2015
Reeditado em 14/02/2015
Código do texto: T5137210
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