Entrevista com Macário.
Entrevista realizada em 20 de janeiro de 1969 com o Macário Silva Reis, um dos últimos cangaceiros do sertão e único sobrevivente da Chacina de São Sebastião. Macário tinha noventa e dois anos quando concedeu a entrevista. Segundo familiares, a maior parte do relato, cheio de figuras fantásticas, era devido à senilidade.
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A primeira vez em que vi um Macaco à Vapor? Deixe ver... Foi em oitenta e nove... Égua! Faz tempo! Muito tempo.
Eu era um molecote que tinha acabado de fazer doze anos e para fugir da fome, me meti com um bando do cangaço. Como era novo e sem noção, me puseram para fazer os serviços mais leves: entregador de recados, limpador de arma e vigia. Eu era bom na minha lida, sempre o mais ligeiro para entregar os recados, zeloso em tratar das carabinas e jamais dormi durante a vigia. Foi um tempo bom, mas durou pouco.
Não tinham se passado três meses de minha entrada no bando, quando os vi chegando: a tropa de Macacos.
Eles caminhavam em passadas monótonas, pesadas, cheias de chiados, matando o silencio do agreste, deixando profundas marcas no piso seco e rachado. O pó se erguia como nuvens enquanto o mato seco estalava ante o peso do pelotão da Policia Volante em sua marcha rumo à vila de São Sebastião, localidade perdida no tempo, onde o povo ainda vivia uma espécie de era feudal, sem a comodidade da eletricidade ou do rádio.
Era um lugar esquecido por Deus e o Governo Central, que pela distância e pouca valia, acabou por se tornar o reduto do bando de Ariovaldo Zarolha, cangaceiro conhecido por sua valentia e ferocidade. Seria só mais um entre os inúmeros bandos de ladrões que rapinavam a terra seca do agreste, se não tivesse com o tempo amealhado um número grande de jagunços dos mais violentos e sem respeito pela lei.
Nosso bando possuía um total de cento e setenta indivíduos. Apesar de não empunharmos armas modernas, éramos bem organizados e venerávamos de forma religiosa a figura de Ariovaldo. Era um cabra alto, de pele escura e curtida, sempre de cara fechada, de olhos tortos, ferozes, e negros como o abismo do Inferno. Vestia um gibão onde, ao invés de estarem bordados os tão comuns arabescos, haviam chaves e palavras em latim. Em seu chapéu, vários ossos de dedos humanos, chocalhavam durante seu andar firme e ligeiro. No pescoço, trazia um cordão feito com cabelo humano, onde fiadas de dentes rebrilhavam no sol da caatinga. Era uma figura assustadora, mas que de alguma forma cativava a todos os seus jagunços. Todos queriam ser como ele, inclusive eu.
Apesar de ser respeitado e bem quisto por seus homens, não dava liberdades. Era rígido como um pau seco ao tratar com todos, menos com a Mulé de Preto, sua catimbozeira de bolso, segundo me disse Zé Cabeleira, um jagunço vindo de Codó.
Era uma mulher baixa, magra, que vivia encurvada e vestia sempre roupas pretas. Tinha o rosto talhado por rugas profundas, que quase ocultavam seus pequenos olhos cheios de um indisfarçado desdém por todos. Carregava nos lábios um cachimbo feito de barro, cujos rolos de fumaça pareciam não ter fim. Seus cabelos eram ocultados por um lenço de seda preta, onde uma coruja foi pintada com riqueza de detalhes.
Zé Cabeleira, também me contou que nosso chefe tinha o corpo fechado pela idosa, pois era macumbeira no Maranhão. Ainda segundo Zé, nosso chefe por várias vezes foi crivado de balas, mas nenhum mal havia lhe acontecido e por causa disso que Ariovaldo dava tanta atenção e respeitava a véia. Fiquei avexado com a história, mas me fiz de valente e disse que não botava fé. Que tudo era conversa fiada. Coisa de menino novo.
Apesar de ser um bando bem conhecido, só após cometermos a chacina na vila de Bento de Sá, que o Governo Central enviou uma tropa para nos caçar. O crime foi amplamente noticiado pelas rádios e jornais das capitais, ficou sendo conhecido como: O dia das forcas.
Toda a população da pequena vila de cinquenta habitantes havia sido enforcada pelo nosso bando e deixada sob o calor do sertão, como se fosse um arremedo das bandeirolas que costumam enfeitar as feiras e quermesses. Uma cena bizarra, que foi estampada nos periódicos, com um tanto de exagero macabro e sensacionalista, pelos artistas ilustradores.
Nenhum jornal conseguiu determinar o motivo do ato, pois a vila não foi saqueada, as casas e vendas permaneceram como haviam sido deixadas pelos moradores, antes de sua execução. O episódio acabou sendo visto como uma afronta direta ao Governo e uma desumanidade pela Igreja e a população.
Mas nós sabíamos o motivo da chacina: foi para agradar a vontade da Mulé de Preto. Ela pediu que fosse feito, Ariovaldo deu a ordem e nós fizemos. Enforcamos todo o povo, só para agradar a véia. Pelas risadas que ela dava ao ver o povo se estrebuchando, ficou feliz por demais.
Para dar cabo de nós, o Décimo Segundo Destacamento Mecanizado da Polícia Volante foi enviado. Era uma tropa composta por seis soldados veteranos, liderados pelo Cabo Aguiar, homem sisudo e temperamental, cuja valentia era reconhecida até na capital brasileira, no Rio de Janeiro.
Considerado o melhor destacamento mecanizado do nordeste, tinha como equipamento padrão, um modelo inglês de armadura movida a vapor, cujo projeto fora adaptado ao clima da caatinga, quase não superaquecendo e necessitando de três vezes menos água do que o original. Um tipo de arma muito eficiente, mesmo ante a terra tão agreste. O povo do sertão apelidou a geringonça pesadona, muito semelhante a mamulengos, que como chaleira quente vivia a chiar, de “Macaco à Vapor”, termo que com o tempo acabou sendo adotado até pelos militares nordestinos. Somado ao seu alto poder defensivo, os Macacos eram armados com metralhadoras calibre 0.40, armas brancas e rifles elétricos, modelo Tesla 017, carregados por esforço mecânico. Configuravam verdadeiras fortalezas bípedes, um orgulho do poderio bélico do Governo.
O destacamento do Cabo Aguiar foi responsável por algumas das prisões e mortes dos mais famosos cangaceiros, como Zeca Diabo, conhecido como o Cão em Encarnado e Paulo de Feira de Santana, único homem do cangaço que havia sido capaz de usar um Macaco à Vapor capturado de uma patrulha.
A tropa chegou até nossa vila, lá pelas últimas horas da tarde, o sol já começava a baixar e as primeiras estrelas da noite já brilhavam na distância. Quando percebi a macacada arribando, corri feito um pé de vento. Gritei tal como um doente, avisando todos os cabras que a peleja ia começar.
Com ligeireza, todos os jagunços se posicionaram a espera do início do combate. Ariovaldo se acoitou dentro da casa da Mulé de Preto e por uma janela gritava para que o bando só atirasse quando os macacos estivessem dentro da vila, pois só assim teríamos chance. Ficamos esperando que a tropa mecanizada invadisse, mas as horas se passaram e nada. Somente quando a noite já ia alta que ouvimos o maquinário chiar e vimos os lumes dos holofotes se jogarem sobre nós.
Como demônios de aço, as armaduras a vapor invadiram a vila. Os fogos dos disparos rasgavam a penumbra deixando rastros escarlates que gritavam na cadência das metralhadoras, retalhando as carnes dos jagunços e demolindo os casebres de pau-a-pique.
O barulho dos fogos de guerra era ensurdecedor, mas ainda assim, gritos de dor e inúmeras pragas invadiam meus ouvidos. Eu havia me escondido atrás de uma maloca onde a farinha e as misturas eram guardadas. Ao meu lado, Zé Cabeleira chorava feito menino de colo enquanto rezava para Padre Cícero, agarrado ao seu rosário.
Após alguns minutos, as metralhadoras da macacada se silenciaram e os holofotes foram deligados. Na escuridão, os contornos incandescentes das armas, pairavam como se flutuando pela noite. Eu já encarava nossa derrota como algo real, mas então ouvimos Ariovaldo berrar:
“Pau neles, caboclada! Fogo nos Macacos!”
Foi como se alguma magia tivesse sido lançada sobre os sobreviventes. Bradando de ódio, os cangaceiros dispararam contra os tanques bípedes, fazendo com que o aço das armaduras de guerra tilintasse, como um caboclinho rindo da desgraça alheia, perante o esforço inútil. Após a primeira saraivada de balas lançada por nós, a tropa mecanizada novamente se colocou em movimento. As máquinas religaram seus lumes, sacaram gigantescas espadas, cujas formas mais se pareciam com paredes de aço com fios em cada lado, e partiram para cima do nosso bando. Escondido, pude ver como a macacada retalhava os jagunços, lançando pedaços de homens pelo ar noturno e encharcando o chão seco, que como bicho sedento, tragava o rubro com ligeireza.
Congelei ao ver como os corpos eram talhados ao meio, os membros amputados jogados pelo ar e os homens gemendo de dor, tentando colar braços e pernas ao os aproximar dos cotos que lançavam jorros de sangue quente. Sem ação, nem me dei conta de que Zé havia deixado nosso esconderijo e corrido com sua Papo Amarelo, na direção dos Macacos. Ele disparava contra as armaduras a vapor, ignorando a inutilidade de seu ato de valentia. Correu para peitar a morte e como todo vivente, perdeu a peleja. Com um golpe lateral desferido por um soldado da volante, o corpo do jagunço foi partido em dois e seu tórax rebolou pelo ar entre seus últimos urros de raiva e dor. Seu tronco girou no vazio como um cata-vento que gotejasse sangue e tombou em um baque seco, levantando uma nuvem de pó vermelho e uma borrifada da lama criada pelo sangue de nossos companheiros caídos.
Rapidamente o bando foi chacinado, as máquinas do exército pareciam ser pilotadas por açougueiros dementes, que senhores de sua arte em cortar a carne, davam cabo dos homens do cangaço, como se os mesmos fossem gado gordo no cepo do matadouro. Após o fim do ataque, a volante continuou a matar os cabras que encontrava, mesmo aqueles que estavam apenas gozando de seu último sopro no mundo dos viventes, eram esmagados sob os gigantescos pés de aço forjado. Não importou se o jagunço clamou por misericórdia ou se rendeu: todos foram mortos, seja com golpes de espada ou pisoteados.
Tudo parecia perdido, mas então Ariovaldo apareceu no meio da vila. Trazia em suas mãos uma peixeira e a pistola de estimação. Estava babando de ódio apontando a lâmina na direção da tropa mecanizada:
“Cambada de xibungo! Vou cagá no quengo morto de ocês tudo!”
Por alguns minutos, a tropa mecanizada ficou imóvel. As máquinas assassinas apenas focaram suas luzes sobre o corpo do cangaceiro e aguardaram. Foi estranho como apenas há alguns instantes antes, tudo era fogo, gritos e sangue e que naquele momento, pude ouvir o som da aragem da caatinga balançando o mato seco e o voo dos morcegos, que desesperados, evoluíam pelo céu noturno guinchando.
Pensei que os soldados da volante estavam paralisados ante a valentia de Ariovaldo, mas então, após um dos Macacos avançar e varar o corpo do cangaceiro com sua espada ciclópica, quase o dividindo em dois, percebi que apenas não acreditavam na tamanha estupidez do cabra.
Mesmo ferido de morte, o chefe do nosso bando não arregou. Com o sangue vazando pela ferida, boca e nariz, ainda teve forças para gritar:
“Valei-me Ferra Braz!”
Foi a partir desse momento que as coisas ficaram estranhas por demais, e mesmo eu, que testemunhei tudo, às vezes não acredito no que ocorreu.
Tão logo o grito se perdeu na escuridão, o corpo de Ariovaldo começou a soltar chamas, sendo envolto por labaredas raivosas e rolos de uma fumaça espessa subiram aos céus para tombarem sobre nós, mesmo os holofotes das armaduras não conseguiam fazer frente à fumaceira. Um fedor horrível de carne de porco queimada dominou o centro da vila, fazendo meu medo aumentar, mas não era medo da morte, não mais. Era um medo mais profundo, algo primordial.
Lentamente a fumaça foi sendo levada para longe pelo vento do agreste, quando já não era mais uma venda para meus olhos, observei estarrecido o que havia acontecido com o líder do cangaço. De alguma forma, penso que devido a algum catimbó da Mulé de Preto, o corpo de Ariovaldo estava completamente transformado. A carne ainda fumegante crepitava como um bife na frigideira e bolhas inchavam até estourar, lançando sangue queimado e gordura fervente no chão calcinado. Mas o fato de estar quase carbonizado era o de menos, o cabra havia crescido em tamanho e partes de seu corpo mudaram de feitio, mais se pareciam com partes de alguma besta de criação. Tudo nele era não natural e aterrador.
Confesso que me mijei todo. Senti verdadeiro pavor, no entanto, não consegui fazer nada além de observar a cena toda.
Da mesma forma veloz que o cangaceiro pegou fogo, se sucedeu o ataque da coisa que estava ainda trespassada pela espada do Macaco. A criatura segurou a lâmina com uma das mãos e com a outra a socou. Com um baque estridente, como o de um copo de vidro se partindo ao cair no piso duro, a arma se estilhaçou. O cangaceiro ficou com uma parte da espada ainda enterrada no corpo, enquanto a máquina segurava o punho da espada destruída. Em um movimento veloz, o ser fantástico saltou para o alto, na direção do Macaco. Foi um salto de mais de quatro metros e durante a queda, Ariovaldo arrancou a lamina lâmina do peito e a cravou profundamente onde o piloto estava sentado. O pedaço de metal afundou na armadura mecanizada, como se fosse um pedaço de queijo largado sob o sol do verão, fazendo um jorro de vapor ser liberado, para logo em seguida a caldeira explodir em uma bola de fogo que iluminou tudo. A máquina de guerra ficou pegando fogo, cuspindo fumaça, vapor e óleo flamejante, enquanto a luz das chamas criava estranhas sombras na vila cheia de homens mortos e casebres meio demolidos.
Vendo o resultado do ataque, os demais pilotos se lançaram em carga contra o cangaceiro. As enormes espadas zuniram velozmente, visando o corpo demoníaco, cuja velocidade mantinha o metal assassino distante, no entanto, a mesma velocidade trazia para perto as armaduras. Em um salto, de velocidade sobrenatural, a criatura que um dia foi Ariovaldo, socou um dos Macacos, lançando a máquina pelos ares. A unidade da volante tombou sobre um casebre que era habitado por uma família de agricultores e pude ouvir os gritos de desespero de crianças, fugirem do meio da nuvem de pó que se levantou dos escombros criados pelas toneladas de aço.
Continuando o ataque, a besta-fera correu até outra unidade mecanizada e cravou seus punhos na lataria, abrindo um enorme buraco e arrancando de seu interior, entre gritos histéricos, o soldado que a pilotava, para lhe partir em dois. Mesmo despedaçado, o praça da volante ainda gritava, gritos eram semelhantes à de um suíno sendo abatido. Urros de puro desespero ante a morte. Eram horrendos, mas outro som fez com que os brados finais do soldado sumissem. Ariovaldo ria alto, um riso cheio de deboche, proferido por uma garganta que não foi moldada pelo Criador. O demônio ficou rindo dos Macacos restantes, durante um bom tempo, até o momento que o clarão se fez.
Uma forte luminosidade, como a de um relâmpago, iluminou o campo de combate, trazendo a luz do dia por alguns segundos e me cegando momentaneamente. Logo em seguida, o estrondo típico que segue o raio invadiu meus ouvidos. Pisquei várias vezes antes de minha visão ficar liberta das bolas de luz branca que lhe dominou e só então, pude ver o que se sucedia.
Ainda sobre a unidade arrombada, o demônio gania de dor, segurando o coto onde segundos atrás ficava seu braço esquerdo. Sem ainda entender o que havia acontecido, novamente tive os olhos invadidos pela luz cegante e os ouvidos tomados pelo retumbar do trovão. Assim que minhas vistas tiveram sua luz devolvida, vi Ariovaldo, na forma de demônio, jogado no chão. Seu corpo havia sido cortado ao meio e usando do braço que lhe restara, dava golpes cegos enquanto gania de dor e frustração.
Foi nesse momento que entendi o que ocorreu. Os Macacos usaram seus Rifles Tesla, a arma mais poderosa já criada pelo engenho humano até então. Uma maravilha da indústria bélica que era capaz de disparar um raio elétrico semelhante a uma descarga natural.
Usando da arma, calcinaram o cangaceiro, prostrando a besta sobrenatural, quase a destruindo completamente. Mesmo boquiaberto com o poder do armamento da tropa da Volante, tive presença de espírito para fechar os olhos ao ver uma das unidades mirar seu rifle na direção do vencido. Após um breve zunido, percebi o clarão e o trovão apagou todos os demais sons. Quando abri os olhos, uma cratera fumegante ocupava o lugar onde segundos antes, o demônio estava a estrebuchar.
Quatro unidades da polícia ainda estavam operando e vendo o que havia acontecido com Ariovaldo, tive certeza que iria morrer, mas naquela noite, coisas incomuns tiveram liberdade para andar na terra dos viventes. De dentro da casa da Mulé de Preto, um piar, longo e muito agudo, escapou para fora, dominando a vila, agora um campo de guerra. Era um piar cheio de mau agouro, o berro de uma rasga mortalha.
Os soldados da volante focaram os holofotes de suas fortalezas bípedes na direção do casebre, lançando luz porta adentro, mas estranhamente a escuridão parecia não morrer, era como se estivessem tentando iluminar um poço muito profundo, sem fim. Ficaram esperando que algo saísse do meio das trevas durante alguns minutos, assim que perderam a paciência, dispararam com os rifles contra a construção, que explodiu em uma enorme bola de luz branca e fogo.
Tudo parecia ter acabado, mas então do meio das chamas, algo escapou na direção dos militares. Envolta em um manto de fogo, a Mulé de Preto corria na direção dos sobreviventes, mas assim como o cangaceiro, havia mudado. Aumentara de tamanho, sua pele empalideceu até as veias se mostrarem, os cabelos se tornaram negros como carvão, seus dedos se alongaram e as pontas rasgaram a carne, virando garras. A decrepitude foi substituída por um vigor fantástico e uma velocidade sobrenatural, a véia se tornou outro demônio e pelos gritos que largava pela noite, seu ódio era maior que o mar.
Os Macacos foram pegos de surpresa pela catimbozeira e rapidamente três armaduras foram destruídas pelas garras de osso, mais afiadas que o melhor aço, pois talhavam a blindagem como carne tenra. O último militar que estava em pé era o Cabo Aguiar, experiente e malandro o suficiente para se colocar atrás de seus subordinados, preparando o rifle para disparar. Enquanto a mulher-demônio retalhava os praças, ele preparou a mira, mas antes do trovão ser cuspido, o aço da blindagem foi rasgado pela criatura, deixando Aguiar indefeso.
Ao ver o piloto, a Mulé de Preto sorriu, um sorriso semelhante ao de um mascate turco quando consegue vender toda a mercadoria cheia de ágio, um esgar satisfeito e maldoso. Ela agarrou o militar pelo pescoço e o puxou para fora da armadura, deixando os coturnos balançando no ar. Julguei que a peleja havia acabado, tinha como certa nossa vitória, mas o Cabo era um caboclo esperto e conhecedor das crendices do sertão e além. Sacou de algum bolso um maço de cigarros e o lançou longe, ao passo que um gorgolejo fugia de sua boca: Lá... Lá vai... Vai o fumo, minha tia!
No mesmo instante, a criatura o largou e se lançou atrás dos cigarros. Tão logo os tomou nas garras, tentou acender um, usando as brasas deixadas pelo fogo da chacina, mas não conseguia. Ficou absorta nessa labuta, até o momento em que notou a chegada do Cabo e como uma criança confusa, estendeu o rolo de fumo na direção do volante e pediu: Fogo?!
Aguiar, puto nos panos, cerrou os dentes, encostando o cano de uma carabina na testa da besta-fera e vociferou: Tá aqui o fogo, sua rapariga da bixiga!
A cabeça da Mulé de Preto se esfarelou completamente com o disparo, pedaços de osso, pele e couro cabeludo voaram carregados pelo chumbo da arma. O velho militar ao ver o corpo tombar sob seus pés, começou a o chutar, cheio de ódio. Nesse momento, deixei meu esconderijo e fui na direção do ultimo cabra da volante, quando me viu, Cabo Aguiar sorriu e explicou: Era uma Matinta, essas pragas se ralam por um fumo e café. Tive sorte por ser fumante.
Sorri em resposta, me aproximando ainda mais. Aguiar não parecia preocupado com minha presença, isso foi seu erro. Tão logo me encostei no cabra, puxei o revólver e disse:
— Fumante é? Então, tome fumo!
Esvaziei o tambor da arma na cara daquele volante fio de uma rapariga da moléstia, o bando podia ter acabado, mas eu ainda era um cangaceiro.
E depois daquela noite, mais nada me botava medo.
***
Macário faleceu na mesma noite, após conceder a entrevista.
Durante a madrugada podia-se ouvir o grito agourento de uma Rasga Mortalha sobrevoando a casa do falecido.