O morto do Véio Chicó.

Toda manhã, lentamente a luz invade o sertão, trazendo a quentura e o desassossego para a alma dos viventes. O calor faz os bichos da noite se aquietarem nos buracos, pois seu tributo é pesado demais para os que vivem fora do abraço do Véio Chicó.

Tributo esse, que talha o chão e mata os açudes, bestas e homens, aos lhes tirar o sumo da vida até só restar o mato branco de seco e o couro duro, tratado pelo Sol.

Mas isso só incomoda quem não avéve sob as leis de Chicó, esse véio tinhoso que rasga o sertão e pouco caso faz do Astro Rei. A seara do sertanejo e a imagem de sua alma estão incrustadas no Nilo do Sertão... Mas não só isso: estou eu, também.

E veja bem, seu moço, já avivo faz por demais de tempo no fundo dele, vendo as horas passarem e os dias serem anunciados pelo brilho distante em sua crista cortada por barcos tangidos, como as criações, pelos homens curtidos pelas labutas e vicissitudes do sertão.

Mas o sinhô deve de se estar perguntado quem sou, né não? Pois já lhe conto.

Eu era um caboclo que por não ter pouso desde cedo, se tornou um cabra por demais ruim. Um verdadeiro bexiguento de tão mau. Matei, roubei e inté tirei a virtude de umas tantas moças na base da porrada. Era tão lazarento, que passaram a me chamar de Homi-Lobo.

Durante sete anos cruzei o sertão todinho, fazendo do pior para com os homens e sempre com um sorriso na cara. Gostava de fazer o mal e de ser temido pela gente.

E apesar de ter essa vida torta, avivi feliz por demais, inté o dia que encontrei minha desgraça. Desgraça em forma de muié, a mais faceira de todas. Uma cabocla com olhos de cigana, pele de cobre, cabelos como a noite e sorriso branco, mais que leite puro.

Se chamava Ana Luiza e por causa dela, virei o que sou. O que sou? Se afobegue não, pois já lhe conto. Tenha paciência.

Conheci Ana quando enveredei inté uma vila chamada Cabrobó, ali perto de Feira de Santana. Estava em uma birosca enchendo a cara de cana e o bucho de paçoca de queijo e charque, quando ela entrou para comprar um litro de azeite pra lamparina. Fiquei acabrunhado com sua formosura, mas estranhamente não passou pelo quengo a ideia de me forçar dentro dela.

Algo estranho tilintou em mim, acho que foi o tal amor, essa praga véia que as mulé falam durante toda hora e os forrozeiros entoam em qualquer arrasta pé.

Com um cuidado que nunca tive antes, me acheguei da pequena e com o tempo acabei por ser escravo de sua vontade. Pense só, eu que era chamado de Homi-Lobo, virei um cachorrinho por causa de um rabo de saia. Pôde isso?

Pior que pôde.

Para agradar Ana, larguei a vida de cabra e tomei tento. Virei um jagunço de respeito na fazenda um coroné da região. Ainda era temido, mas não fazia ruindade sem motivo, seguia a vontade do patrão. Com os cobres que ganhava, tentava agradar minha cabocla. Dava de um tudo pra ela, bastava dizer que eu arrumava. Era um boi no cabresto.

Fui feliz dessa forma durante um bom tempo, mas a felicidade é uma rapariga por demais mimada, vice? Logo a desgraça sentou sobre mim. Sentou assim que pedi Ana em casamento.

No dia que cheguei à casa de sua avó para lhe pedir a bença, a véia me colocou pra correr, pois neta dela num ia casar com um jagunço matador como eu. Oxi! Fiquei por demais aporrinhado, mas como era família de minha amada, deixei quieto.

Mais tarde, naquele mesmo dia, Ana me encontrou e chorando disse que queria se ajuntar mais eu, mas só poderia fazer isso se sua avó deixasse e o único jeito disso acontecer era se ela fosse comer mato pelo fundo.

Sem pestanejar, rumei pra casa da véia com o intuito de lhe ver estrebuchar até se lascar todinha, mas no fim, quem se lascou fui eu.

Varei pela porta com a peixeira já prontinha para rasgar a véia, mas antes de mergulha o aço todo no couro gasto, ela me espraguejou:

“Morro, cabra xibungo da muléstia! Ma tu não há de encontrar descanso! Nem o Céu ou o Inferno hão de abrir as portas pra você! Há de ser uma visagem até o Dia do Juízo! Em nome do Pé Preto e do Ferrabraz eu te amaldiçoo!”

Rapaz, não era que a quenga véia era catimbózeira?

Assim que terminei o serviço, sai da casa e para minha surpresa, um pipoco de tiro quebrou o silêncio da noite. Do meio do mato, um tiro bem dado, me arrebentou o peito. Cai na mesma hora, feito uma saca de farinha.

Enquanto a luz da vida fugia, pude ver muito bem o que se assucedeu. Do meio da caatinga, duas figuras vinham sorrindo, Ana e Zé Tatu, um xibungo que vivia de caçar passarinho pra modé vender na feira. Quando chegaram perto de mim, riram quase até estourarem e então se beijaram!

Mesmo meio morto, fiquei espantado com tamanha trairagem. Gemi de raiva e vendo isso, Ana começou a contar a verdade.

A rapariga nunca me amou, só deixou me aproximar, para poder de se livrar da avó, catimbózeira afamada que lhe trazia presa sob sua vontade. Precisava de um trouxa pra se livar da avó e assim conseguir a liberdade e os cobres que a idosa guardava. E era uma tabacada de tantos cobres, vice?

Para que ninguém descobrisse a trairagem deles, ataram minhas mãos e pés com uma corda grossa, dessas que os barqueiros amarram a carga, enfiaram no meu bucho um tanto de pedras e então me jogaram no fundo do Chicó. Assim eu levaria toda a culpa pela morte da véia e ainda seria taxado de frouxo por ter fugido. Pense num caboclo que ficou cheio de ódio.

Tu deve de tá se perguntando: Mar como esse caboclo tá contando essa patuscada, se morreu?

Verdade, morri, mas se lembra da praga?

Pois é... Ela pegou.

Morri, mas não morri. Virei uma visagem e agora estou aqui, no fundo gelado e barrento desse grande rio. Sendo companheiro dos peixes, esperando.

Esperando o que? Oxi?! Que as cordas fiquem podres, pra modé eu me livrar das pedras, sair do fundo do Véio Chicó e caça aquele xibungo cagão e a rapariga, mulher-dama, fia de uma cachorra, pra quem fui o mais fiel dos cabras.

Mas inté lá, fico aqui. Vendo os dias passarem, na escuridão gelada do rio que é o Nilo do sertanejo.

***

Durante mais de três anos fiquei debaixo das águas do Véio Chicó. Por todo esse tempo amarguei a friagem, solidão e ódio, mas agora estou liberto no mundo dos viventes pra modé me vingar daquela rapariga safada.

Mas sendo uma visagem, só posso andar durante a noite, quando o Sol se vai e o mal do mundo fica mais forte...

Mentira, macho!

Só ando de noite porque, já que morri, se fico muito tempo embaixo da quentura do dia, esturrico como couro véio e tenho certeza que se deixar, fico duro como um pau.

E não posso permitir que uma moléstia dessas suceda antes de pegar os dois safados e os fazer comerem o pão que o cão pisou!

Dessa feita, passo os dias a perambular pelo fundo do rio e durante as noites, procuro por pistas que me levem até Ana e Zé Tatu. Vez por outra o povo que áveve perto do rio me encontra, mas isso pouco me importa, pois acabam fugindo e tudo cai na conta do Caboclinho D’água.

Ainda não tive sorte, mas vou achar os dois, pois o rio passa por todo o sertão e tenho tempo para esperar.

Todo o tempo do mundo.

TTAlbuquerque
Enviado por TTAlbuquerque em 15/12/2014
Código do texto: T5070246
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