Gelo Negro - Parte 1
Dawson City, 21 de novembro de 1898.
Ao Governador do Distrito do Alasca
Secretaria do Poder Executivo Distrital
Exmo. Governador do Distrito.
Assunto: Informações acerca do Incidente.
Excelentíssimo Governador John Green Brandy,
Na condição de Investigador Geral do Distrito, venho mui respeitosamente através dessa, comunicar a vossa excelência do total desastre da operação de busca e salvamento dos cidadãos de nosso país.
Assim como requerido, dirigi minha investigação até o sítio onde supostamente ocorreram os alegados fatos de caráter insólito denominados de “Incidente do Gelo Negro” pela mídia canadense.
Pude averiguar in loco a área denominada como Tarngaq Creek e lá descobri documentos produzidos por indivíduos que foram atores no supracitado incidente.
Até o presente momento, as buscas se mostraram infrutíferas e com a aproximação do inverno terão de ser encerradas. Afirmo ser nula qualquer possibilidade positiva dos desaparecidos serem encontrados ainda com vida após o período invernal, pois todos os viveres necessários para tal demanda (agasalhos e mantimentos) foram encontrados no local, completamente destruídos.
Espero que vossa excelência encontre razões suficientes nos documentos em anexo para requerer uma intervenção militar de nossas forças armadas no caso. Penso serem os supracitados anexos, um testemunho de grande apelo por urgência e ação, devido às narrativas tão orgânicas e ominosas neles contidos.
Na esperança de ter sido de algum auxílio, expresso minhas melhores manifestações de respeito e apreço.
Atenciosamente,
Willard Peck
(Investigador Geral da Agência de Inteligência do Distrito do Alasca)
Anexo um: Diário do minerador e pistoleiro Charlie Pace, também conhecido como King Croc.
Anexo dois: Diário de ação do capitão do Décimo Oitavo Destacamento da Polícia Montada do Noroeste, Gustave Du Bois.
***
Anexo Um:
O diário de Charlie “King Croc” Pace.
18 de julho de 1897.
Ontem deixei para trás meu passado. Deixei para trás, o pó e o Sol que curtiram meu couro até ele se vincar como papel velho. Despedi-me de toda imundície e falsidade.
Não há razão para permanecer em uma cidade falida e beirando a morte como Tombstone. O declínio da mineração de prata só vem piorando desde o Incêndio da Grande Central de Bombeamento em 86 e agora os poucos mineiros que trabalham sob a terra, precisam nadar para trazer o metal precioso às vistas da Luz do Criador.
A cada dia que passa lentamente, como os arbustos secos rolando pela força do ar, a população viva diminui e em pouco tempo, o cemitério de Boothill terá mais almas em seus túmulos do que todos os edifícios da cidade.
Sem pessoas, não há paixões, amizades, ódios, amores, violência ou esperança. E sem tudo isso, não existe razão para um homem como eu, pois mortos não descartam a prata de seus bolsos em nome da vingança e do sangue. Eles não pagam pistoleiros.
Tomei a diligência do meio dia até Benson levando apenas minhas armas, a roupa do corpo, quarenta e cinco dólares e muitos rancores como bagagem.
A cada metro sacolejante vencido pelas pesadas rodas do veículo, uma espessa nuvem de pó rubro se erguia no horizonte e dentro de mim um pensamento tomou forma.
Imaginei as areias do deserto engolindo as velhas tábuas dos bordéis e saloons vazios.
Vi a Casa de Óperas de Schieffelien e o Teatro Gaiola, enterrados sob as mesmas areias inclementes. Eles que foram palcos distintos e frequentados por gente tão diversa, enterrados lado a lado, como iguais, em seu ocaso.
Observei a podridão, ganancia, hipocrisia e violência de todo aquele povo mesquinho, obliterados pelo plácido revolver dos grãos rubros do infinito vazio do deserto.
Sorri satisfeito ante as imagens desses sonhos despertos.
Não vislumbrava plano algum antes de minha chegada à movimentada estação férrea do Condado de Prima. Contava apenas com a sorte para guiar meus passos até um novo sítio. Um novo começo.
A imperiosa Dama do Destino não me falhou e uma nova seara surgiu.
Curioso acerca dos horários do trem, entabulei conversa com o velho (e meio senil) agente dos telégrafos e dele recebi a notícia que ladrilharia meus passos até um futuro menos nebuloso.
Ouro foi descoberto em Yukon.
Muito ouro.
19 de julho de 1897.
Munido da informação preciosa sobre o ouro no Yukon, comprei um bilhete rumo ao estado de Washington, mais especificamente para a cidade de Seattle.
O cavalo de aço partiu da estação do Condado de Prima por volta de seis e quarenta e cinco da noite. Não deixei para trás qualquer saudade pela cidade das lápides. Na verdade, espero que seu lema (A cidade durona demais para morrer) seja falso.
Vários desembarques estão previstos, pois baldeações se farão necessárias até que minhas botas se gastem ao rasparem sobre o calçamento da cidade responsável pelo transporte marítimo de toda a madeira utilizada na costa leste do país.
Passei a maior parte do início da noite absorto na paisagem emoldurada pelo pequeno quadrado vítreo ao lado de meu assento. Isso permitiu que a desolação causticada do rubro vazio invadisse minha visão com suas linhas monótonas.
As areias se perdiam na distancia, fazendo terra e céu serem um só na luz do crepúsculo. Tudo parecia solitário e imutável enquanto a locomotiva bufava e chiava sobre sua avenida metálica.
Pequenas estações da companhia telefônica corriam como borrões, quebrando por breves segundos, o apelo letárgico da visão do deserto.
Sem dar conta da passagem do grande maquinário, a noite lançou sobre o vazio escarlate seu manto de trevas, onde distantes salpicos de luz prateada piscavam desconhecendo a luta das feras daquele mundo árido. Uma luta onde a vida se alimenta da morte.
Após algumas horas desse fugaz espetáculo, o tédio unido ao clima mais ameno da noite tornaram minhas pálpebras demasiadamente pesadas e então chegou a hora de mergulhar no reino de Hipnos.
O Yukon e suas montanhas douradas ainda estão perdidos na distancia.
20 de julho de 1897
Mais um dia monótono se perdeu nas areias do tempo, enquanto eu sacolejava na cadência do maquinário.
Imagino se as areias da ampulheta regente da vida das coisas terá o mesmo tom encarnado do piso poeirento do deserto. Creio que sim, pois os homens devem tê-la manchado com o sangue de todas as vítimas de sua natureza cruel.
Nada mudou nas linhas do horizonte.
25 de julho de 1897.
Finalmente o árido deu lugar ao verde. O monstro de aço e vapor, enfim deixou para trás o agreste.
Após algumas paradas em cidades do estado da Califórnia, embarquei no trem da linha até o Oregon. Nunca havia visto tantas árvores e arbustos tão frondosos e de perfume mais doce.
As florestas de tons esmeralda dominam a visão até se encontrarem com as montanhas coroadas de branco, por várias vezes animais selvagens mostraram suas formas, esbeltas e saltitantes, ao largo dos pesados vagões de metal fundido e carvalho lustroso.
O estado dos castores é realmente uma maravilha natural. Seu clima ameno e as ferozes chuvas (parecem cronometradas), ajudam o corpo e espírito a inebriarem-se pelos perfumes dos pinheiros centenários e pelas visões da paisagem quase intocada. Vez por outra, cabanas se revelavam nas janelas. Todas eram construídas de uma maneira muito peculiar e rústica. Troncos empilhados formavam as paredes e telhados das curiosas casas pioneiras que através de chaminés de metal, rocha ou alvenaria permitiam grossos rolos de fumos cinzentos escaparem para o brilhante céu safira.
Cada vez mais, o pensamento de que minha vida perdeu-se na maldita Tombstone domina minha mente.
Em poucos dias estarei em Seattle e então o brilho do Yukon estará quase em minhas mãos.
29 de julho de 1897.
Finalmente cruzei o Rio Columbia e entrei no estado de Washington.
Por mais uma vez, a derradeira, troquei de trem e em dois dias pisarei o solo de Seattle.
A bela paisagem florestal perdeu seu brilho, ao defrontar-se com a sanha predatória das madeireiras e por quase toda linha, pilhas cada vez maiores de madeira morta se desnudavam aos meus olhos.
Bairros de casas humildes cercam os trilhos e ao longe, chaminés de fábricas e serrarias emporcalham o firmamento com sua fuligem oleosa.
Os homens são todos iguais, apenas seus nomes e berços diferem entre si. Sejam eles de Columbia ou Tombstone, por suas paixões destroem, deturpam e ferem tudo que há abaixo das estrelas.
A ganância e o rancor são ervas que encontram solo fértil no lodo do coração dos homens.
Elas encontraram no meu.
Em dois dias, Seattle.
01 de agosto de 1897
Ontem finalmente pisei na estação de Puget Sound.
Ao contrário de minhas previsões, Seattle é tão odiosa quanto Tombstone. A imundície recobre as ruas, permitindo a proliferação de animais virulentos e insetos de maneira espantosa. Tudo gira ao redor da indústria da madeira. Serrarias e movelarias disputam o espaço da cidade e a mão de obra barata dos imigrantes eslavos.
Um fino pó de serra amortalha todos os espaços públicos e lega aos cidadãos uma odiosa irritabilidade crônica.
Seattle é odiosa.
Ao deixar a enlameada estação, procurei um hotel barato para me hospedar até poder embarcar para o Alasca e de lá partir para o território canadense do Yukon.
Ao passar pela Queen, avistei um pequeno prédio onde se lia em uma tabuleta mal pintada, o pouco verdadeiro nome de Hotel Paraíso e nele decidi ficar. Lugar modesto e de preço justo.
O dono, um senhor baixo e de sorriso pouco uniforme, chamado Jugger, me garantiu serem bem aceitos no território, homens com o mesmo tipo de talento que o meu.
Amanhã irei às docas procurar um lugar em um vapor que parta para Skagway.
Falta pouco para o Yukon.
02 de agosto de 1897.
A Fortuna sorriu-me mais uma vez. Durante minha passagem pelo porto de Saettle, conheci um homem chamado McLoud e graças a esse tão fortuito encontro, desembarcarei já contratado.
MacLoud é dono de um pequeno lote nos arredores de Dawson City, a cidade mais próspera do território. A Paris do Ártico, segundo os marinheiros e estivadores.
O lote foi avaliado por prospectores e de acordo com as análises, um veio produtivo com uma estimativa de meio milhão em ouro está enterrado no solo congelado.
McLoud se mostrou muito interessado por minha figura e ao descobrir meu ofício, ofereceu-me emprego como “mantenedor da paz” em sua futura instalação mineradora. Receberei o absurdo salário de vinte dólares americanos por semana.
Já roubei a luz dos olhos de muitos viventes por um décimo de tal soma.
Parto amanhã no vapor Portland ao lado de meu patrão e levo nenhuma saudade de Seattle, essa cópia úmida e fria de Tombstone.
Em breve, o brilho do Yukon estará em minhas mãos.
03 de agosto de 1897.
Embarquei pela manhã no vapor. A velha banheira está inchada de homens desesperados por ouro, dignidade e redenção. Homens muito semelhantes a mim.
Nunca havia sido transportado por um barco e com toda certeza, essa será a primeira e última vez. A grande baleia de metal balança ao ritmo das ondas, em um esforço diabólico para expurgar tudo que há em meu ventre. Sinto um terrível mal estar e nada parece mitigar esse pequeno padecimento.
Mesmo a paisagem parece conspirar contra mim. O mar, com suas águas cinzentas e cheias de blocos frios, parece mesclar-se com o céu boreal de nuvens plúmbeas, deixando tudo com um tristonho tom grafite claro.
O clima piora a cada nó vencido pela embarcação e, vez por outra, um manto alvo recobre todo o tombadilho, mas logo desaparece sob as solas dos brutos amontoados sobre as tábuas salgadas pela maresia.
Mal posso me aguentar de antecipação pela chegada em Skagway. Singrarei esse grande cinza gelado por mais três dias repletos de contrações estomacais.
Espero ainda ter entranhas ao pisar na terra gelada do Alasca.
04 de agosto de 1897.
Sinto-me terrivelmente mal.
Nada digno de nota ocorreu.
07 de agosto de 1897.
Eis que me livrei do marejo e das oscilações do leviatã metálico. Já beirava o insustentável o mal estar gerado pelo balançar ritmado das águas frígidas do Pacífico.
Pisei pelo fim da tarde as placas congeladas do piso portuário da baia de Skagway. Tudo é recoberto por uma grinalda de gelo e por sua influência, humores mais amenos parecem serem negados aos homens. Todos ostentam um semblante duro, mesmo cruel, em suas faces. Os edifícios da cidade são atarracados, parecem meio enterrados no solo congelado. A arquitetura é vulgar, típica da fronteira com suas varandas largas e janelas envidraçadas.
Uma cópia reduzida e gélida da poeirenta Tombstone. Que o Diabo a carregue!
O clima é inclemente, os ventos cortantes vindos do oceano fazem as dormências natas criadas pelas temperaturas boreais, ainda mais insuportáveis e dolorosas. Perdi a sensação tátil de meu rosto e extremidades logo após desembarcar. Gastei oito dólares comprando agasalhos, mas de pouca monta é esse fato, pois McLoud irá me reembolsar.
Descobri entre os posseiros do lugar, que o governo canadense é contrário ao porte de armas de fogo em seu território e mais: todos os viveres de nossa propriedade seriam taxados na alfândega em vinte e cinco por cento de seu valor. Um disparate!
Pasmo com essa situação, indaguei a meu patrão o que haveria de ser feito, pois eu jamais me livraria de meus armamentos.
McLoud deixou claro que não iremos atravessar a fronteira pelas rotas normais, entraremos no território por uma trilha nas montanhas.
Penso ser uma idéia demasiado temerária em vista do clima inóspito, mas já enfrentei por várias vezes o causticante vazio rubro do oeste, onde a morte ronda nossas cabeças nas asas dos agourentos abutres. Não fugirei desse novo vazio regido por uma morte enregelada que galopa lobos e ursos.
Domarei esse deserto alvo e gélido com as chamas de minha Peace Maker.
Amanhã cedo partiremos pelas montanhas, rumo ao brilho áureo do Yukon.
08 de agosto de 1897.
Partimos de Skragway pela manhã e para minha total surpresa, fomos transportados por cães. Imitando os costumes dos nativos, os pioneiros dessa terra os usam em viagens de longa distância. Os canídeos são atrelados, como uma parelha, a um trenó por cabrestos de couro e impelidos por comandos e estalares de chicote, arrastam cargas pelos caminhos enregelados do sertão boreal.
São animais realmente impressionantes, de um porte e resistência jamais vistos em seus parentes californianos. Os nativos chamam-lhes de “Malamutes” e segundo MacLoud, essa raça foi criada com o propósito exclusivo de servir como animal de tração.
São de uma constituição muscular bem distribuída, de pelagem espessa e obediência inigualável.
Recebem alimento apenas uma vez ao dia e apesar dessa dieta espartana, demonstram uma energia e ímpeto sem iguais.
Viajamos por uma trilha na montanha, que passa por uma área inabitada e pouco patrulhada da fronteira. Provavelmente, levaremos cinco ou seis dias até alcançarmos a cidade de Dawnson. Essa demora se dará principalmente pelo fato de os dias serem muito curtos na região, apenas sete horas de luz do Sol iluminam as densas florestas coníferas.
Tão logo a luz passou a se afogar no crepúsculo, nós montamos acampamento e após alimentarmos os doze cães, jantamos um caldo de batatas e queijo, acompanhado por pão preto e café amargo.
Na distância, os uivos de várias alcateias saltaram da escuridão das florestas milenares, sempre misteriosas e umbrais. Confesso ter me sentido incomodado com a quantidade de animais sugeridos pelos ecos da cantilena noturna.
Por medida de segurança, dormimos em turnos para manter o fogo alto e assim evitar problemas com as bestas lupinas.
Fiquei responsável pela primeira metade da noite e na solidão do sertão polar, pude ver um fenômeno fantasmagórico. No céu entre as miríades sem fim, um fogo vivo cortava o manto da noite em formas e formatos convulsionantes. Em um primeiro momento, pensei ter alucinado, mas o fenômeno manteve-se por toda minha vigília e só quando o patrão rendeu-me que tive novamente a paz necessária para largar a coronha de minha arma.
Segundo MacLoud, esse fenômeno é chamado de “Aurora Boreal” e mau algum é capaz de fazer. Seu poder máximo reside em maravilhar os homens. Ao que consta, as tribos selvagens encaram essas estranhas luzes noturnas como a luta de antigos espíritos do bem e do mal.
Crendices ordinárias de mentes menores, mas ainda assim, cheias de certo lirismo pueril.
Em breve, o brilho espectral dos céus se refletirá no metal precioso em minhas mãos. Em breve, o ouro do Yukon será uma realidade.
09 de agosto de 1897.
Cobrimos uma grande distância hoje. A paisagem, branca e inamistosa, pouco diferiu daquela que cruzamos até o momento. Um sentimento de enorme pequenez invadiu-me a alma durante nossa marcha rumo ao distante sitio, onde o metal precioso acena, e troquei poucas palavras com meu companheiro de viagem.
Assim que a pálida luz do sol tombou, atrás dos relevos impassíveis dos ciclópicos planaltos rochosos, montamos acampamento e enquanto cozíamos nossa ceia, fomos invadidos por uma inquietude indeterminada. Os briosos malamutes encolheram-se chorosos ao redor do lume da fogueira e mesmo os ruídos das feras da floresta sumiram de forma antinatural.
Um silêncio sepulcral recobriu o deserto congelado.
Receosos, mantivemos nossos punhos cerrados sobre as coronhas de nossas armas enquanto o fogo abulia a mistura dentro da velha panela enegrecida e para nosso assombro, uma figura sentou-se ante as chamas crepitantes.
O homem, magro e de olhar cansado, pareceu alheio a nossa presença e usando de uma voz vaga e chorosa, começou um estranho monólogo que pareceu crivar-se em meus ouvidos e imprimir-se à ferro e fogo em minha alma:
“Cruzamos em inúmeras ocasiões essa terra arredia em razão de nosso dever como homens do correio. Paul Harrison, George McTeney e eu. Apesar de termos livre trânsito pelas fronteiras, sempre tomamos essa trilha pouco usada, pois carregamos entre nossos fardos objetos e mensagens de valor tanto sentimental quanto monetário.
O inverno tem sido amargo e as bestas tornam-se ainda mais selvagens e temerárias quando a fome as assenhora.
Um bando de lobos famintos nos deu caça assim que entramos nesse quinhão de pinhos e rochas.
Usando de nossas carabinas, abatemos algumas das feras, mas ao invés de dissuadi-las, nossos atos pareceram as incitar.
Mesmo fustigando nossos impávidos huskies até talhar-lhes os lombos, fomos cercados pela gigantesca alcateia, e assombrados por sua pouco familiar sanha por sangue, nos descuidamos do manejo do trenó. Essa falta foi o nosso ocaso.
Uma rocha saliente ergueu-nos no ar e ao cairmos, fomos engolidos pelas presas canídeas que precediam nossa aniquilação.
Por um mero capricho da fortuna, fui jogado sobre os galhos de um pinheiro e acoitado sobre seu regaço, assisti impotente o medonho banquete dos animais. Os lobos retalharam as carnes de George, Paul e de todos os cães. Os brados de desespero dos homens e o ganir desalentado dos cães me assombrarão até o último degelo das eras.
Mesmo após seu sinistro repasto, as criaturas mantiveram-se vigilantes e uivando de forma cruel, permaneceram à minha espera sob as sobras do pinheiro.”
Ao terminar de proferir a última sentença, o sujeito ergue-se e novamente mergulhou na escuridão. Mesmo boquiabertos ante esse agourento relato, nos munimos de nossas armas e de tocos em chamas da fogueira, para seguimos o agente dos correios, ou melhor, suas pegadas impressas na neve. Após três jardas, encontramos meio soterrados pela neve recente, os restos da infeliz viagem e para nosso total assombro, empoleirado entre os galhos de uma árvore, o corpo congelado do homem que acabara de nos encarar sob a luz crepitante das chamas. Improvisamos covas e recolhemos a carga, ela será entregue em honra aos falecidos.
Não conseguirei pregar os olhos durante o curso de toda a noite.
Essa é realmente uma terra de prodígios incomuns.